À margem da História

Opinião|Lula não espera investigações do golpe de janeiro para trazer militares de volta à cena política


Operação de GLO nos portos e aeroportos do Rio e São Paulo expõe o debate histórico sobre a presença dos agentes das Forças Armadas na vida pública

Por Leonencio Nossa

De farda ou à paisana, os militares têm uma História de invasões de palácios em Brasília. A primeira insurreição na capital ocorreu na distante e fria madrugada de 12 de setembro de 1963. Naquele dia, sargentos da Aeronáutica e fuzileiros da Marinha bloquearam os acessos à sede do poder, ocuparam a Praça dos Três Poderes, cortaram os telefones interurbanos e prenderam o presidente da Câmara e ministros do Supremo Tribunal Federal. A classe reagia a uma decisão da Corte, tomada na véspera, de anular os mandatos parlamentares de agentes de baixa patente. A Constituição em vigor proibia. Os candidatos dos quartéis recorreram, então, a instâncias do Judiciário para disputar as eleições e acabaram eleitos.

No final da tarde, as forças legalistas neutralizaram os revoltosos. Mais de 500 deles foram presos. O presidente João Goulart estava fora da cidade. Ao voltar, evitou medidas duras contra o movimento. Uma parte dos líderes do levante pertencia às fileiras do seu partido, o PTB, e estava ligada especialmente à ala chefiada pelo cunhado Leonel Brizola. A revolta de poucas horas deixou um militar morto e acirrou o clima político, que desaguaria no golpe que derrubou o governo seis meses depois. Jango tinha um perfil contemporizador, mostraria o tempo.

Quando tanques retornaram à Praça dos Três Poderes no início de abril de 1964, numa segunda investida militar, agora sob a ordem da cúpula da caserna, o gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto estava vazio. O presidente acompanhava a situação do Rio Grande do Sul, portanto, em território brasileiro, quando o Congresso considerou que a cadeira dele estava vaga e deu início à ditadura. Ele não quis sangue e retirou-se para o Uruguai. O novo regime expulsou dos quartéis as lideranças da revolta dos sargentos – a propósito, só os generais quatro estrelas podiam se meter na política.

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Ação das forças legalistas surpreendeu os insurretos e sufocou a rebelião dos sargentos da Aeronáutica e fuzileiros da Marinha em setembro de 1963, em Brasília  Foto: Acervo/Estadão - 12/09/1963

O ciclo das Forças Armadas no poder durou 21 anos. Quando a ditadura começou a desmoronar, nos primeiros anos da década de 1980, o Brasil enfrentava uma inflação galopante e via surgir facções criminosas nos grandes presídios e o aumento do tráfico de drogas, que tinha o Rio como escala. A estrutura da segurança pública não respondia às novas demandas para conter um crime cada vez mais internacional, que avançava num país mais urbano. O caos não era um legado apenas militar. Governadores civis estavam também perdidos nesse enfrentamento.

Ao mesmo tempo, as autoridades da transição não sabiam bem quais limites que os militares das Forças Armadas deveriam ter tanto na política quanto na segurança. Era consenso, porém, que eles tinham funções diferentes das polícias.

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Na democracia, ficou estabelecido que militares de todas as patentes poderiam disputar cargos eletivos, sem exigências de quarentenas. Uma anomalia foi a garantia de candidatura mesmo de quem desacata autoridades ou participa de greves e motins nos quartéis – o sujeito lidera uma insurreição num dia e, meses depois, aparece em campanha eleitoral. Um candidato fardado com o discurso da revolta contra tudo e contra todos tem uma exposição maior nas disputas em que o debate da segurança pública costuma prevalecer. Ele torna-se mais competitivo até mesmo que um outro militar que não quebra hierarquias e se dedica apenas a estudar os problemas do setor. A propósito, em mais de três décadas de democracia, a bancada da bala no Congresso parece que foi mais personalista que produtiva quanto a projetos realmente estruturais de combate ao crime

Uma lei complementar, de junho de 1999, estabeleceu que, diante do esgotamento das polícias, o presidente da República tem o poder de definir formas de emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem. Um decreto, de 2001, complementou como seriam as operações de GLO. Nessas ações, os militares da Aeronáutica, do Exército e da Marinha passaram a ter poder de polícia.

Pelo entendimento entre civis e representantes das Forças Armadas, ainda no tempo da Constituinte, o uso das tropas só deveria ocorrer em casos de algum risco para o Estado. Afinal, havia ainda o elevado custo financeiro com o deslocamento de pessoal e a manutenção da estrutura de apoio, um gasto astronômico num país em que a maioria dos agentes do sistema de segurança pública reclama de baixo salário. Mas o que se viu, dali em diante, foi uma banalização do uso das tropas pelo poder civil e o uso da política pelo poder militar.

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De 1992 até agora, os sucessivos governos eleitos convocaram 146 operações para resolver problemas imediatos de segurança pública, atuar em conflitos agrários, ajudar no policiamento de grandes eventos e garantir tranquilidade nos processos eleitorais. Os militares foram “guardiões” do voto em todas as 14 eleições gerais realizadas dali em diante. Neste caso, a Justiça Eleitoral foi a que mais cobrou a presença de tropas nos municípios de violência política.

O poder civil, seja o Executivo, seja o Judiciário, lucrou ao recorrer à solução paliativa de uso das forças em meio a crises de segurança ou de criminalidade política. Em contrapartida, o poder militar ganhou vitrine. Não há pesquisas sobre a contribuição exata das operações de GLO para o elevado grau de confiança da população conquistado pelas Forças Armadas no período democrático que chegou ao índice de 68% numa enquete, de 2014, da Fundação Getúlio Vargas. O Congresso e os partidos políticos não atingiram 20% no mesmo levantamento.

A complexidade brasileira não permite avaliações conclusivas sobre a eficácia das operações. É possível dizer, porém, que mesmo governos civis fortes politicamente, como os de Fernando Henrique Cardoso e os dois primeiros de Lula, ajudaram na imagem de tutela das Forças Armadas em relação ao poder civil estabelecido pelas urnas. Em oito anos de mandato, o tucano convocou 47 operações de GLO. Com mesmo tempo de governo, Lula usou o instrumento 40 vezes, Dilma Rousseff, presidente por seis anos, 17, e Michel Temer, em dois anos e meio, 15 vezes. Por sua vez, Jair Bolsonaro recorreu em dez oportunidades - além, claro, de militarizar boa parte dos cargos civis da Esplanada dos Ministérios.

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Em 2018, Temer chegou a usar o Exército na intervenção da segurança pública do Rio - a aliança dele com os militares foi além, com a entrega inclusive da pasta da Defesa, sempre ocupada por civis. Como no caso das operações de GLO, a eficácia do remédio e seus efeitos colaterais virou um debate sem fim. Mas a autoestima de militares e governantes civis sempre esteve em alta. Quando terminou seu trabalho de interventor, o general Walter Braga Netto disse, no final daquele ano, que a “missão” tinha sido cumprida. Faltou responder quem matou a vereadora e seu motorista.

Foi simbólico que, após a intervenção militar que nada alterou a dinâmica das milícias e do tráfico na cidade, ao menos numa impressão, começasse o governo com mais militares no primeiro escalão do atual período democrático. Braga Netto foi ministro da Casa Civil e da Defesa e até candidato a vice na chapa de Bolsonaro nas eleições presidenciais do ano passado. No Rio, o crime organizado continuou vivo.

Operação com a presença da Marinha no Complexo do Lins, na Zona Norte do Rio, em 2013, durante governo Dilma Rousseff Foto: Jadson Marques
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Na semana em que a Justiça Eleitoral tirou o general Walter Braga Netto da disputa à prefeitura do Rio, Lula e seus ministros da Justiça, Flávio Dino, e da Defesa, José Múcio, anunciaram um decreto que autoriza uma operação de Garantia da Lei e da Ordem nos portos de Itaguaí, Rio e Santos e nos aeroportos do Galeão e de Guarulhos. É o 41º em três mandatos do petista. Com poder de polícia, agentes da Aeronáutica e da Marinha estarão no combate ao tráfico de drogas e de armas. Um parêntese: desta vez, militares não foram para as ruas se queixar da decisão que tornou um oficial inelegível e organizações civis pouco reclamaram do uso mais uma vez do instrumento que virou bengala.

É natural que um governo busque apoio da Marinha e da Aeronáutica para combater o crime organizado nos acessos por mar e por aeroportos, sobretudo, quando a percepção é de que o Estado virou mesmo refém de facções em lugares específicos do País. Possivelmente, a operação de agora seja a que mais se enquadra nas exigências da Constituição. Isso, então, pode revelar o fracasso de civis e militares em suas funções ou em áreas que não deveriam estar.

Um lado e outro lucram com o uso político das operações. Aliás, o empoderamento da caserna com missões de segurança pública em tempos de regime democrático ocorre em todo o mundo e está constatado na literatura política de países da Europa. A prática de uso militar nas ruas, porém, vira grande problema quando evidencia a falta de capacidade de um governo em enfrentar o crime.

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Não há cena mais forte que tanques e tropas nas ruas. Mas a memória nacional guarda também o assassinato do músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, fuzilado com 82 tiros, por militares do Exército, em abril 2019, quando ia de carro com a família para um chá de bebê. O catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, de 27, que foi tentar ajudar a família, também acabou morto. Não houve abordagem por parte dos agentes.

O debate sobre a presença dos militares na vida política sempre foi enviesado. No Legislativo, em especial, o setor pode contribuir para a melhoria das áreas de segurança pública e soberania nacional. O bizarro mesmo é a convocação de generais para cuidar da saúde da população, intermediar conflitos no campo ou resolver problemas bancários de um presidente.

A possibilidade de os militares terem um candidato da caserna eleito presidente da República, uma garantia do sistema representativo, não impediu que oficiais à paisana estivessem numa terceira invasão dos palácios da História de Brasília. A propósito, o processo de investigação do 8 de janeiro poderia ser um momento oportuno para, punições à parte, se definir limites da atuação deles.

Passados quase dez meses da última tentativa de golpe, a cúpula das Forças Armadas e a Justiça Militar não disseram nem mesmo o que farão com os oficiais que participaram do ato. O andamento dos processos e sindicâncias abertos virou segredo de Estado. O coronel da reserva do Exército Adriano Camargo Testoni, personalizou bem os réus dos quartéis e da reserva. Num vídeo divulgado em suas redes, usou palavras duras contra colegas e chefes de farda. Ele vestia uma camisa da CBF.

De farda ou à paisana, os militares têm uma História de invasões de palácios em Brasília. A primeira insurreição na capital ocorreu na distante e fria madrugada de 12 de setembro de 1963. Naquele dia, sargentos da Aeronáutica e fuzileiros da Marinha bloquearam os acessos à sede do poder, ocuparam a Praça dos Três Poderes, cortaram os telefones interurbanos e prenderam o presidente da Câmara e ministros do Supremo Tribunal Federal. A classe reagia a uma decisão da Corte, tomada na véspera, de anular os mandatos parlamentares de agentes de baixa patente. A Constituição em vigor proibia. Os candidatos dos quartéis recorreram, então, a instâncias do Judiciário para disputar as eleições e acabaram eleitos.

No final da tarde, as forças legalistas neutralizaram os revoltosos. Mais de 500 deles foram presos. O presidente João Goulart estava fora da cidade. Ao voltar, evitou medidas duras contra o movimento. Uma parte dos líderes do levante pertencia às fileiras do seu partido, o PTB, e estava ligada especialmente à ala chefiada pelo cunhado Leonel Brizola. A revolta de poucas horas deixou um militar morto e acirrou o clima político, que desaguaria no golpe que derrubou o governo seis meses depois. Jango tinha um perfil contemporizador, mostraria o tempo.

Quando tanques retornaram à Praça dos Três Poderes no início de abril de 1964, numa segunda investida militar, agora sob a ordem da cúpula da caserna, o gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto estava vazio. O presidente acompanhava a situação do Rio Grande do Sul, portanto, em território brasileiro, quando o Congresso considerou que a cadeira dele estava vaga e deu início à ditadura. Ele não quis sangue e retirou-se para o Uruguai. O novo regime expulsou dos quartéis as lideranças da revolta dos sargentos – a propósito, só os generais quatro estrelas podiam se meter na política.

Ação das forças legalistas surpreendeu os insurretos e sufocou a rebelião dos sargentos da Aeronáutica e fuzileiros da Marinha em setembro de 1963, em Brasília  Foto: Acervo/Estadão - 12/09/1963

O ciclo das Forças Armadas no poder durou 21 anos. Quando a ditadura começou a desmoronar, nos primeiros anos da década de 1980, o Brasil enfrentava uma inflação galopante e via surgir facções criminosas nos grandes presídios e o aumento do tráfico de drogas, que tinha o Rio como escala. A estrutura da segurança pública não respondia às novas demandas para conter um crime cada vez mais internacional, que avançava num país mais urbano. O caos não era um legado apenas militar. Governadores civis estavam também perdidos nesse enfrentamento.

Ao mesmo tempo, as autoridades da transição não sabiam bem quais limites que os militares das Forças Armadas deveriam ter tanto na política quanto na segurança. Era consenso, porém, que eles tinham funções diferentes das polícias.

Na democracia, ficou estabelecido que militares de todas as patentes poderiam disputar cargos eletivos, sem exigências de quarentenas. Uma anomalia foi a garantia de candidatura mesmo de quem desacata autoridades ou participa de greves e motins nos quartéis – o sujeito lidera uma insurreição num dia e, meses depois, aparece em campanha eleitoral. Um candidato fardado com o discurso da revolta contra tudo e contra todos tem uma exposição maior nas disputas em que o debate da segurança pública costuma prevalecer. Ele torna-se mais competitivo até mesmo que um outro militar que não quebra hierarquias e se dedica apenas a estudar os problemas do setor. A propósito, em mais de três décadas de democracia, a bancada da bala no Congresso parece que foi mais personalista que produtiva quanto a projetos realmente estruturais de combate ao crime

Uma lei complementar, de junho de 1999, estabeleceu que, diante do esgotamento das polícias, o presidente da República tem o poder de definir formas de emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem. Um decreto, de 2001, complementou como seriam as operações de GLO. Nessas ações, os militares da Aeronáutica, do Exército e da Marinha passaram a ter poder de polícia.

Pelo entendimento entre civis e representantes das Forças Armadas, ainda no tempo da Constituinte, o uso das tropas só deveria ocorrer em casos de algum risco para o Estado. Afinal, havia ainda o elevado custo financeiro com o deslocamento de pessoal e a manutenção da estrutura de apoio, um gasto astronômico num país em que a maioria dos agentes do sistema de segurança pública reclama de baixo salário. Mas o que se viu, dali em diante, foi uma banalização do uso das tropas pelo poder civil e o uso da política pelo poder militar.

De 1992 até agora, os sucessivos governos eleitos convocaram 146 operações para resolver problemas imediatos de segurança pública, atuar em conflitos agrários, ajudar no policiamento de grandes eventos e garantir tranquilidade nos processos eleitorais. Os militares foram “guardiões” do voto em todas as 14 eleições gerais realizadas dali em diante. Neste caso, a Justiça Eleitoral foi a que mais cobrou a presença de tropas nos municípios de violência política.

O poder civil, seja o Executivo, seja o Judiciário, lucrou ao recorrer à solução paliativa de uso das forças em meio a crises de segurança ou de criminalidade política. Em contrapartida, o poder militar ganhou vitrine. Não há pesquisas sobre a contribuição exata das operações de GLO para o elevado grau de confiança da população conquistado pelas Forças Armadas no período democrático que chegou ao índice de 68% numa enquete, de 2014, da Fundação Getúlio Vargas. O Congresso e os partidos políticos não atingiram 20% no mesmo levantamento.

A complexidade brasileira não permite avaliações conclusivas sobre a eficácia das operações. É possível dizer, porém, que mesmo governos civis fortes politicamente, como os de Fernando Henrique Cardoso e os dois primeiros de Lula, ajudaram na imagem de tutela das Forças Armadas em relação ao poder civil estabelecido pelas urnas. Em oito anos de mandato, o tucano convocou 47 operações de GLO. Com mesmo tempo de governo, Lula usou o instrumento 40 vezes, Dilma Rousseff, presidente por seis anos, 17, e Michel Temer, em dois anos e meio, 15 vezes. Por sua vez, Jair Bolsonaro recorreu em dez oportunidades - além, claro, de militarizar boa parte dos cargos civis da Esplanada dos Ministérios.

Em 2018, Temer chegou a usar o Exército na intervenção da segurança pública do Rio - a aliança dele com os militares foi além, com a entrega inclusive da pasta da Defesa, sempre ocupada por civis. Como no caso das operações de GLO, a eficácia do remédio e seus efeitos colaterais virou um debate sem fim. Mas a autoestima de militares e governantes civis sempre esteve em alta. Quando terminou seu trabalho de interventor, o general Walter Braga Netto disse, no final daquele ano, que a “missão” tinha sido cumprida. Faltou responder quem matou a vereadora e seu motorista.

Foi simbólico que, após a intervenção militar que nada alterou a dinâmica das milícias e do tráfico na cidade, ao menos numa impressão, começasse o governo com mais militares no primeiro escalão do atual período democrático. Braga Netto foi ministro da Casa Civil e da Defesa e até candidato a vice na chapa de Bolsonaro nas eleições presidenciais do ano passado. No Rio, o crime organizado continuou vivo.

Operação com a presença da Marinha no Complexo do Lins, na Zona Norte do Rio, em 2013, durante governo Dilma Rousseff Foto: Jadson Marques

Na semana em que a Justiça Eleitoral tirou o general Walter Braga Netto da disputa à prefeitura do Rio, Lula e seus ministros da Justiça, Flávio Dino, e da Defesa, José Múcio, anunciaram um decreto que autoriza uma operação de Garantia da Lei e da Ordem nos portos de Itaguaí, Rio e Santos e nos aeroportos do Galeão e de Guarulhos. É o 41º em três mandatos do petista. Com poder de polícia, agentes da Aeronáutica e da Marinha estarão no combate ao tráfico de drogas e de armas. Um parêntese: desta vez, militares não foram para as ruas se queixar da decisão que tornou um oficial inelegível e organizações civis pouco reclamaram do uso mais uma vez do instrumento que virou bengala.

É natural que um governo busque apoio da Marinha e da Aeronáutica para combater o crime organizado nos acessos por mar e por aeroportos, sobretudo, quando a percepção é de que o Estado virou mesmo refém de facções em lugares específicos do País. Possivelmente, a operação de agora seja a que mais se enquadra nas exigências da Constituição. Isso, então, pode revelar o fracasso de civis e militares em suas funções ou em áreas que não deveriam estar.

Um lado e outro lucram com o uso político das operações. Aliás, o empoderamento da caserna com missões de segurança pública em tempos de regime democrático ocorre em todo o mundo e está constatado na literatura política de países da Europa. A prática de uso militar nas ruas, porém, vira grande problema quando evidencia a falta de capacidade de um governo em enfrentar o crime.

Não há cena mais forte que tanques e tropas nas ruas. Mas a memória nacional guarda também o assassinato do músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, fuzilado com 82 tiros, por militares do Exército, em abril 2019, quando ia de carro com a família para um chá de bebê. O catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, de 27, que foi tentar ajudar a família, também acabou morto. Não houve abordagem por parte dos agentes.

O debate sobre a presença dos militares na vida política sempre foi enviesado. No Legislativo, em especial, o setor pode contribuir para a melhoria das áreas de segurança pública e soberania nacional. O bizarro mesmo é a convocação de generais para cuidar da saúde da população, intermediar conflitos no campo ou resolver problemas bancários de um presidente.

A possibilidade de os militares terem um candidato da caserna eleito presidente da República, uma garantia do sistema representativo, não impediu que oficiais à paisana estivessem numa terceira invasão dos palácios da História de Brasília. A propósito, o processo de investigação do 8 de janeiro poderia ser um momento oportuno para, punições à parte, se definir limites da atuação deles.

Passados quase dez meses da última tentativa de golpe, a cúpula das Forças Armadas e a Justiça Militar não disseram nem mesmo o que farão com os oficiais que participaram do ato. O andamento dos processos e sindicâncias abertos virou segredo de Estado. O coronel da reserva do Exército Adriano Camargo Testoni, personalizou bem os réus dos quartéis e da reserva. Num vídeo divulgado em suas redes, usou palavras duras contra colegas e chefes de farda. Ele vestia uma camisa da CBF.

De farda ou à paisana, os militares têm uma História de invasões de palácios em Brasília. A primeira insurreição na capital ocorreu na distante e fria madrugada de 12 de setembro de 1963. Naquele dia, sargentos da Aeronáutica e fuzileiros da Marinha bloquearam os acessos à sede do poder, ocuparam a Praça dos Três Poderes, cortaram os telefones interurbanos e prenderam o presidente da Câmara e ministros do Supremo Tribunal Federal. A classe reagia a uma decisão da Corte, tomada na véspera, de anular os mandatos parlamentares de agentes de baixa patente. A Constituição em vigor proibia. Os candidatos dos quartéis recorreram, então, a instâncias do Judiciário para disputar as eleições e acabaram eleitos.

No final da tarde, as forças legalistas neutralizaram os revoltosos. Mais de 500 deles foram presos. O presidente João Goulart estava fora da cidade. Ao voltar, evitou medidas duras contra o movimento. Uma parte dos líderes do levante pertencia às fileiras do seu partido, o PTB, e estava ligada especialmente à ala chefiada pelo cunhado Leonel Brizola. A revolta de poucas horas deixou um militar morto e acirrou o clima político, que desaguaria no golpe que derrubou o governo seis meses depois. Jango tinha um perfil contemporizador, mostraria o tempo.

Quando tanques retornaram à Praça dos Três Poderes no início de abril de 1964, numa segunda investida militar, agora sob a ordem da cúpula da caserna, o gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto estava vazio. O presidente acompanhava a situação do Rio Grande do Sul, portanto, em território brasileiro, quando o Congresso considerou que a cadeira dele estava vaga e deu início à ditadura. Ele não quis sangue e retirou-se para o Uruguai. O novo regime expulsou dos quartéis as lideranças da revolta dos sargentos – a propósito, só os generais quatro estrelas podiam se meter na política.

Ação das forças legalistas surpreendeu os insurretos e sufocou a rebelião dos sargentos da Aeronáutica e fuzileiros da Marinha em setembro de 1963, em Brasília  Foto: Acervo/Estadão - 12/09/1963

O ciclo das Forças Armadas no poder durou 21 anos. Quando a ditadura começou a desmoronar, nos primeiros anos da década de 1980, o Brasil enfrentava uma inflação galopante e via surgir facções criminosas nos grandes presídios e o aumento do tráfico de drogas, que tinha o Rio como escala. A estrutura da segurança pública não respondia às novas demandas para conter um crime cada vez mais internacional, que avançava num país mais urbano. O caos não era um legado apenas militar. Governadores civis estavam também perdidos nesse enfrentamento.

Ao mesmo tempo, as autoridades da transição não sabiam bem quais limites que os militares das Forças Armadas deveriam ter tanto na política quanto na segurança. Era consenso, porém, que eles tinham funções diferentes das polícias.

Na democracia, ficou estabelecido que militares de todas as patentes poderiam disputar cargos eletivos, sem exigências de quarentenas. Uma anomalia foi a garantia de candidatura mesmo de quem desacata autoridades ou participa de greves e motins nos quartéis – o sujeito lidera uma insurreição num dia e, meses depois, aparece em campanha eleitoral. Um candidato fardado com o discurso da revolta contra tudo e contra todos tem uma exposição maior nas disputas em que o debate da segurança pública costuma prevalecer. Ele torna-se mais competitivo até mesmo que um outro militar que não quebra hierarquias e se dedica apenas a estudar os problemas do setor. A propósito, em mais de três décadas de democracia, a bancada da bala no Congresso parece que foi mais personalista que produtiva quanto a projetos realmente estruturais de combate ao crime

Uma lei complementar, de junho de 1999, estabeleceu que, diante do esgotamento das polícias, o presidente da República tem o poder de definir formas de emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem. Um decreto, de 2001, complementou como seriam as operações de GLO. Nessas ações, os militares da Aeronáutica, do Exército e da Marinha passaram a ter poder de polícia.

Pelo entendimento entre civis e representantes das Forças Armadas, ainda no tempo da Constituinte, o uso das tropas só deveria ocorrer em casos de algum risco para o Estado. Afinal, havia ainda o elevado custo financeiro com o deslocamento de pessoal e a manutenção da estrutura de apoio, um gasto astronômico num país em que a maioria dos agentes do sistema de segurança pública reclama de baixo salário. Mas o que se viu, dali em diante, foi uma banalização do uso das tropas pelo poder civil e o uso da política pelo poder militar.

De 1992 até agora, os sucessivos governos eleitos convocaram 146 operações para resolver problemas imediatos de segurança pública, atuar em conflitos agrários, ajudar no policiamento de grandes eventos e garantir tranquilidade nos processos eleitorais. Os militares foram “guardiões” do voto em todas as 14 eleições gerais realizadas dali em diante. Neste caso, a Justiça Eleitoral foi a que mais cobrou a presença de tropas nos municípios de violência política.

O poder civil, seja o Executivo, seja o Judiciário, lucrou ao recorrer à solução paliativa de uso das forças em meio a crises de segurança ou de criminalidade política. Em contrapartida, o poder militar ganhou vitrine. Não há pesquisas sobre a contribuição exata das operações de GLO para o elevado grau de confiança da população conquistado pelas Forças Armadas no período democrático que chegou ao índice de 68% numa enquete, de 2014, da Fundação Getúlio Vargas. O Congresso e os partidos políticos não atingiram 20% no mesmo levantamento.

A complexidade brasileira não permite avaliações conclusivas sobre a eficácia das operações. É possível dizer, porém, que mesmo governos civis fortes politicamente, como os de Fernando Henrique Cardoso e os dois primeiros de Lula, ajudaram na imagem de tutela das Forças Armadas em relação ao poder civil estabelecido pelas urnas. Em oito anos de mandato, o tucano convocou 47 operações de GLO. Com mesmo tempo de governo, Lula usou o instrumento 40 vezes, Dilma Rousseff, presidente por seis anos, 17, e Michel Temer, em dois anos e meio, 15 vezes. Por sua vez, Jair Bolsonaro recorreu em dez oportunidades - além, claro, de militarizar boa parte dos cargos civis da Esplanada dos Ministérios.

Em 2018, Temer chegou a usar o Exército na intervenção da segurança pública do Rio - a aliança dele com os militares foi além, com a entrega inclusive da pasta da Defesa, sempre ocupada por civis. Como no caso das operações de GLO, a eficácia do remédio e seus efeitos colaterais virou um debate sem fim. Mas a autoestima de militares e governantes civis sempre esteve em alta. Quando terminou seu trabalho de interventor, o general Walter Braga Netto disse, no final daquele ano, que a “missão” tinha sido cumprida. Faltou responder quem matou a vereadora e seu motorista.

Foi simbólico que, após a intervenção militar que nada alterou a dinâmica das milícias e do tráfico na cidade, ao menos numa impressão, começasse o governo com mais militares no primeiro escalão do atual período democrático. Braga Netto foi ministro da Casa Civil e da Defesa e até candidato a vice na chapa de Bolsonaro nas eleições presidenciais do ano passado. No Rio, o crime organizado continuou vivo.

Operação com a presença da Marinha no Complexo do Lins, na Zona Norte do Rio, em 2013, durante governo Dilma Rousseff Foto: Jadson Marques

Na semana em que a Justiça Eleitoral tirou o general Walter Braga Netto da disputa à prefeitura do Rio, Lula e seus ministros da Justiça, Flávio Dino, e da Defesa, José Múcio, anunciaram um decreto que autoriza uma operação de Garantia da Lei e da Ordem nos portos de Itaguaí, Rio e Santos e nos aeroportos do Galeão e de Guarulhos. É o 41º em três mandatos do petista. Com poder de polícia, agentes da Aeronáutica e da Marinha estarão no combate ao tráfico de drogas e de armas. Um parêntese: desta vez, militares não foram para as ruas se queixar da decisão que tornou um oficial inelegível e organizações civis pouco reclamaram do uso mais uma vez do instrumento que virou bengala.

É natural que um governo busque apoio da Marinha e da Aeronáutica para combater o crime organizado nos acessos por mar e por aeroportos, sobretudo, quando a percepção é de que o Estado virou mesmo refém de facções em lugares específicos do País. Possivelmente, a operação de agora seja a que mais se enquadra nas exigências da Constituição. Isso, então, pode revelar o fracasso de civis e militares em suas funções ou em áreas que não deveriam estar.

Um lado e outro lucram com o uso político das operações. Aliás, o empoderamento da caserna com missões de segurança pública em tempos de regime democrático ocorre em todo o mundo e está constatado na literatura política de países da Europa. A prática de uso militar nas ruas, porém, vira grande problema quando evidencia a falta de capacidade de um governo em enfrentar o crime.

Não há cena mais forte que tanques e tropas nas ruas. Mas a memória nacional guarda também o assassinato do músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, fuzilado com 82 tiros, por militares do Exército, em abril 2019, quando ia de carro com a família para um chá de bebê. O catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, de 27, que foi tentar ajudar a família, também acabou morto. Não houve abordagem por parte dos agentes.

O debate sobre a presença dos militares na vida política sempre foi enviesado. No Legislativo, em especial, o setor pode contribuir para a melhoria das áreas de segurança pública e soberania nacional. O bizarro mesmo é a convocação de generais para cuidar da saúde da população, intermediar conflitos no campo ou resolver problemas bancários de um presidente.

A possibilidade de os militares terem um candidato da caserna eleito presidente da República, uma garantia do sistema representativo, não impediu que oficiais à paisana estivessem numa terceira invasão dos palácios da História de Brasília. A propósito, o processo de investigação do 8 de janeiro poderia ser um momento oportuno para, punições à parte, se definir limites da atuação deles.

Passados quase dez meses da última tentativa de golpe, a cúpula das Forças Armadas e a Justiça Militar não disseram nem mesmo o que farão com os oficiais que participaram do ato. O andamento dos processos e sindicâncias abertos virou segredo de Estado. O coronel da reserva do Exército Adriano Camargo Testoni, personalizou bem os réus dos quartéis e da reserva. Num vídeo divulgado em suas redes, usou palavras duras contra colegas e chefes de farda. Ele vestia uma camisa da CBF.

De farda ou à paisana, os militares têm uma História de invasões de palácios em Brasília. A primeira insurreição na capital ocorreu na distante e fria madrugada de 12 de setembro de 1963. Naquele dia, sargentos da Aeronáutica e fuzileiros da Marinha bloquearam os acessos à sede do poder, ocuparam a Praça dos Três Poderes, cortaram os telefones interurbanos e prenderam o presidente da Câmara e ministros do Supremo Tribunal Federal. A classe reagia a uma decisão da Corte, tomada na véspera, de anular os mandatos parlamentares de agentes de baixa patente. A Constituição em vigor proibia. Os candidatos dos quartéis recorreram, então, a instâncias do Judiciário para disputar as eleições e acabaram eleitos.

No final da tarde, as forças legalistas neutralizaram os revoltosos. Mais de 500 deles foram presos. O presidente João Goulart estava fora da cidade. Ao voltar, evitou medidas duras contra o movimento. Uma parte dos líderes do levante pertencia às fileiras do seu partido, o PTB, e estava ligada especialmente à ala chefiada pelo cunhado Leonel Brizola. A revolta de poucas horas deixou um militar morto e acirrou o clima político, que desaguaria no golpe que derrubou o governo seis meses depois. Jango tinha um perfil contemporizador, mostraria o tempo.

Quando tanques retornaram à Praça dos Três Poderes no início de abril de 1964, numa segunda investida militar, agora sob a ordem da cúpula da caserna, o gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto estava vazio. O presidente acompanhava a situação do Rio Grande do Sul, portanto, em território brasileiro, quando o Congresso considerou que a cadeira dele estava vaga e deu início à ditadura. Ele não quis sangue e retirou-se para o Uruguai. O novo regime expulsou dos quartéis as lideranças da revolta dos sargentos – a propósito, só os generais quatro estrelas podiam se meter na política.

Ação das forças legalistas surpreendeu os insurretos e sufocou a rebelião dos sargentos da Aeronáutica e fuzileiros da Marinha em setembro de 1963, em Brasília  Foto: Acervo/Estadão - 12/09/1963

O ciclo das Forças Armadas no poder durou 21 anos. Quando a ditadura começou a desmoronar, nos primeiros anos da década de 1980, o Brasil enfrentava uma inflação galopante e via surgir facções criminosas nos grandes presídios e o aumento do tráfico de drogas, que tinha o Rio como escala. A estrutura da segurança pública não respondia às novas demandas para conter um crime cada vez mais internacional, que avançava num país mais urbano. O caos não era um legado apenas militar. Governadores civis estavam também perdidos nesse enfrentamento.

Ao mesmo tempo, as autoridades da transição não sabiam bem quais limites que os militares das Forças Armadas deveriam ter tanto na política quanto na segurança. Era consenso, porém, que eles tinham funções diferentes das polícias.

Na democracia, ficou estabelecido que militares de todas as patentes poderiam disputar cargos eletivos, sem exigências de quarentenas. Uma anomalia foi a garantia de candidatura mesmo de quem desacata autoridades ou participa de greves e motins nos quartéis – o sujeito lidera uma insurreição num dia e, meses depois, aparece em campanha eleitoral. Um candidato fardado com o discurso da revolta contra tudo e contra todos tem uma exposição maior nas disputas em que o debate da segurança pública costuma prevalecer. Ele torna-se mais competitivo até mesmo que um outro militar que não quebra hierarquias e se dedica apenas a estudar os problemas do setor. A propósito, em mais de três décadas de democracia, a bancada da bala no Congresso parece que foi mais personalista que produtiva quanto a projetos realmente estruturais de combate ao crime

Uma lei complementar, de junho de 1999, estabeleceu que, diante do esgotamento das polícias, o presidente da República tem o poder de definir formas de emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem. Um decreto, de 2001, complementou como seriam as operações de GLO. Nessas ações, os militares da Aeronáutica, do Exército e da Marinha passaram a ter poder de polícia.

Pelo entendimento entre civis e representantes das Forças Armadas, ainda no tempo da Constituinte, o uso das tropas só deveria ocorrer em casos de algum risco para o Estado. Afinal, havia ainda o elevado custo financeiro com o deslocamento de pessoal e a manutenção da estrutura de apoio, um gasto astronômico num país em que a maioria dos agentes do sistema de segurança pública reclama de baixo salário. Mas o que se viu, dali em diante, foi uma banalização do uso das tropas pelo poder civil e o uso da política pelo poder militar.

De 1992 até agora, os sucessivos governos eleitos convocaram 146 operações para resolver problemas imediatos de segurança pública, atuar em conflitos agrários, ajudar no policiamento de grandes eventos e garantir tranquilidade nos processos eleitorais. Os militares foram “guardiões” do voto em todas as 14 eleições gerais realizadas dali em diante. Neste caso, a Justiça Eleitoral foi a que mais cobrou a presença de tropas nos municípios de violência política.

O poder civil, seja o Executivo, seja o Judiciário, lucrou ao recorrer à solução paliativa de uso das forças em meio a crises de segurança ou de criminalidade política. Em contrapartida, o poder militar ganhou vitrine. Não há pesquisas sobre a contribuição exata das operações de GLO para o elevado grau de confiança da população conquistado pelas Forças Armadas no período democrático que chegou ao índice de 68% numa enquete, de 2014, da Fundação Getúlio Vargas. O Congresso e os partidos políticos não atingiram 20% no mesmo levantamento.

A complexidade brasileira não permite avaliações conclusivas sobre a eficácia das operações. É possível dizer, porém, que mesmo governos civis fortes politicamente, como os de Fernando Henrique Cardoso e os dois primeiros de Lula, ajudaram na imagem de tutela das Forças Armadas em relação ao poder civil estabelecido pelas urnas. Em oito anos de mandato, o tucano convocou 47 operações de GLO. Com mesmo tempo de governo, Lula usou o instrumento 40 vezes, Dilma Rousseff, presidente por seis anos, 17, e Michel Temer, em dois anos e meio, 15 vezes. Por sua vez, Jair Bolsonaro recorreu em dez oportunidades - além, claro, de militarizar boa parte dos cargos civis da Esplanada dos Ministérios.

Em 2018, Temer chegou a usar o Exército na intervenção da segurança pública do Rio - a aliança dele com os militares foi além, com a entrega inclusive da pasta da Defesa, sempre ocupada por civis. Como no caso das operações de GLO, a eficácia do remédio e seus efeitos colaterais virou um debate sem fim. Mas a autoestima de militares e governantes civis sempre esteve em alta. Quando terminou seu trabalho de interventor, o general Walter Braga Netto disse, no final daquele ano, que a “missão” tinha sido cumprida. Faltou responder quem matou a vereadora e seu motorista.

Foi simbólico que, após a intervenção militar que nada alterou a dinâmica das milícias e do tráfico na cidade, ao menos numa impressão, começasse o governo com mais militares no primeiro escalão do atual período democrático. Braga Netto foi ministro da Casa Civil e da Defesa e até candidato a vice na chapa de Bolsonaro nas eleições presidenciais do ano passado. No Rio, o crime organizado continuou vivo.

Operação com a presença da Marinha no Complexo do Lins, na Zona Norte do Rio, em 2013, durante governo Dilma Rousseff Foto: Jadson Marques

Na semana em que a Justiça Eleitoral tirou o general Walter Braga Netto da disputa à prefeitura do Rio, Lula e seus ministros da Justiça, Flávio Dino, e da Defesa, José Múcio, anunciaram um decreto que autoriza uma operação de Garantia da Lei e da Ordem nos portos de Itaguaí, Rio e Santos e nos aeroportos do Galeão e de Guarulhos. É o 41º em três mandatos do petista. Com poder de polícia, agentes da Aeronáutica e da Marinha estarão no combate ao tráfico de drogas e de armas. Um parêntese: desta vez, militares não foram para as ruas se queixar da decisão que tornou um oficial inelegível e organizações civis pouco reclamaram do uso mais uma vez do instrumento que virou bengala.

É natural que um governo busque apoio da Marinha e da Aeronáutica para combater o crime organizado nos acessos por mar e por aeroportos, sobretudo, quando a percepção é de que o Estado virou mesmo refém de facções em lugares específicos do País. Possivelmente, a operação de agora seja a que mais se enquadra nas exigências da Constituição. Isso, então, pode revelar o fracasso de civis e militares em suas funções ou em áreas que não deveriam estar.

Um lado e outro lucram com o uso político das operações. Aliás, o empoderamento da caserna com missões de segurança pública em tempos de regime democrático ocorre em todo o mundo e está constatado na literatura política de países da Europa. A prática de uso militar nas ruas, porém, vira grande problema quando evidencia a falta de capacidade de um governo em enfrentar o crime.

Não há cena mais forte que tanques e tropas nas ruas. Mas a memória nacional guarda também o assassinato do músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, fuzilado com 82 tiros, por militares do Exército, em abril 2019, quando ia de carro com a família para um chá de bebê. O catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, de 27, que foi tentar ajudar a família, também acabou morto. Não houve abordagem por parte dos agentes.

O debate sobre a presença dos militares na vida política sempre foi enviesado. No Legislativo, em especial, o setor pode contribuir para a melhoria das áreas de segurança pública e soberania nacional. O bizarro mesmo é a convocação de generais para cuidar da saúde da população, intermediar conflitos no campo ou resolver problemas bancários de um presidente.

A possibilidade de os militares terem um candidato da caserna eleito presidente da República, uma garantia do sistema representativo, não impediu que oficiais à paisana estivessem numa terceira invasão dos palácios da História de Brasília. A propósito, o processo de investigação do 8 de janeiro poderia ser um momento oportuno para, punições à parte, se definir limites da atuação deles.

Passados quase dez meses da última tentativa de golpe, a cúpula das Forças Armadas e a Justiça Militar não disseram nem mesmo o que farão com os oficiais que participaram do ato. O andamento dos processos e sindicâncias abertos virou segredo de Estado. O coronel da reserva do Exército Adriano Camargo Testoni, personalizou bem os réus dos quartéis e da reserva. Num vídeo divulgado em suas redes, usou palavras duras contra colegas e chefes de farda. Ele vestia uma camisa da CBF.

De farda ou à paisana, os militares têm uma História de invasões de palácios em Brasília. A primeira insurreição na capital ocorreu na distante e fria madrugada de 12 de setembro de 1963. Naquele dia, sargentos da Aeronáutica e fuzileiros da Marinha bloquearam os acessos à sede do poder, ocuparam a Praça dos Três Poderes, cortaram os telefones interurbanos e prenderam o presidente da Câmara e ministros do Supremo Tribunal Federal. A classe reagia a uma decisão da Corte, tomada na véspera, de anular os mandatos parlamentares de agentes de baixa patente. A Constituição em vigor proibia. Os candidatos dos quartéis recorreram, então, a instâncias do Judiciário para disputar as eleições e acabaram eleitos.

No final da tarde, as forças legalistas neutralizaram os revoltosos. Mais de 500 deles foram presos. O presidente João Goulart estava fora da cidade. Ao voltar, evitou medidas duras contra o movimento. Uma parte dos líderes do levante pertencia às fileiras do seu partido, o PTB, e estava ligada especialmente à ala chefiada pelo cunhado Leonel Brizola. A revolta de poucas horas deixou um militar morto e acirrou o clima político, que desaguaria no golpe que derrubou o governo seis meses depois. Jango tinha um perfil contemporizador, mostraria o tempo.

Quando tanques retornaram à Praça dos Três Poderes no início de abril de 1964, numa segunda investida militar, agora sob a ordem da cúpula da caserna, o gabinete do terceiro andar do Palácio do Planalto estava vazio. O presidente acompanhava a situação do Rio Grande do Sul, portanto, em território brasileiro, quando o Congresso considerou que a cadeira dele estava vaga e deu início à ditadura. Ele não quis sangue e retirou-se para o Uruguai. O novo regime expulsou dos quartéis as lideranças da revolta dos sargentos – a propósito, só os generais quatro estrelas podiam se meter na política.

Ação das forças legalistas surpreendeu os insurretos e sufocou a rebelião dos sargentos da Aeronáutica e fuzileiros da Marinha em setembro de 1963, em Brasília  Foto: Acervo/Estadão - 12/09/1963

O ciclo das Forças Armadas no poder durou 21 anos. Quando a ditadura começou a desmoronar, nos primeiros anos da década de 1980, o Brasil enfrentava uma inflação galopante e via surgir facções criminosas nos grandes presídios e o aumento do tráfico de drogas, que tinha o Rio como escala. A estrutura da segurança pública não respondia às novas demandas para conter um crime cada vez mais internacional, que avançava num país mais urbano. O caos não era um legado apenas militar. Governadores civis estavam também perdidos nesse enfrentamento.

Ao mesmo tempo, as autoridades da transição não sabiam bem quais limites que os militares das Forças Armadas deveriam ter tanto na política quanto na segurança. Era consenso, porém, que eles tinham funções diferentes das polícias.

Na democracia, ficou estabelecido que militares de todas as patentes poderiam disputar cargos eletivos, sem exigências de quarentenas. Uma anomalia foi a garantia de candidatura mesmo de quem desacata autoridades ou participa de greves e motins nos quartéis – o sujeito lidera uma insurreição num dia e, meses depois, aparece em campanha eleitoral. Um candidato fardado com o discurso da revolta contra tudo e contra todos tem uma exposição maior nas disputas em que o debate da segurança pública costuma prevalecer. Ele torna-se mais competitivo até mesmo que um outro militar que não quebra hierarquias e se dedica apenas a estudar os problemas do setor. A propósito, em mais de três décadas de democracia, a bancada da bala no Congresso parece que foi mais personalista que produtiva quanto a projetos realmente estruturais de combate ao crime

Uma lei complementar, de junho de 1999, estabeleceu que, diante do esgotamento das polícias, o presidente da República tem o poder de definir formas de emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem. Um decreto, de 2001, complementou como seriam as operações de GLO. Nessas ações, os militares da Aeronáutica, do Exército e da Marinha passaram a ter poder de polícia.

Pelo entendimento entre civis e representantes das Forças Armadas, ainda no tempo da Constituinte, o uso das tropas só deveria ocorrer em casos de algum risco para o Estado. Afinal, havia ainda o elevado custo financeiro com o deslocamento de pessoal e a manutenção da estrutura de apoio, um gasto astronômico num país em que a maioria dos agentes do sistema de segurança pública reclama de baixo salário. Mas o que se viu, dali em diante, foi uma banalização do uso das tropas pelo poder civil e o uso da política pelo poder militar.

De 1992 até agora, os sucessivos governos eleitos convocaram 146 operações para resolver problemas imediatos de segurança pública, atuar em conflitos agrários, ajudar no policiamento de grandes eventos e garantir tranquilidade nos processos eleitorais. Os militares foram “guardiões” do voto em todas as 14 eleições gerais realizadas dali em diante. Neste caso, a Justiça Eleitoral foi a que mais cobrou a presença de tropas nos municípios de violência política.

O poder civil, seja o Executivo, seja o Judiciário, lucrou ao recorrer à solução paliativa de uso das forças em meio a crises de segurança ou de criminalidade política. Em contrapartida, o poder militar ganhou vitrine. Não há pesquisas sobre a contribuição exata das operações de GLO para o elevado grau de confiança da população conquistado pelas Forças Armadas no período democrático que chegou ao índice de 68% numa enquete, de 2014, da Fundação Getúlio Vargas. O Congresso e os partidos políticos não atingiram 20% no mesmo levantamento.

A complexidade brasileira não permite avaliações conclusivas sobre a eficácia das operações. É possível dizer, porém, que mesmo governos civis fortes politicamente, como os de Fernando Henrique Cardoso e os dois primeiros de Lula, ajudaram na imagem de tutela das Forças Armadas em relação ao poder civil estabelecido pelas urnas. Em oito anos de mandato, o tucano convocou 47 operações de GLO. Com mesmo tempo de governo, Lula usou o instrumento 40 vezes, Dilma Rousseff, presidente por seis anos, 17, e Michel Temer, em dois anos e meio, 15 vezes. Por sua vez, Jair Bolsonaro recorreu em dez oportunidades - além, claro, de militarizar boa parte dos cargos civis da Esplanada dos Ministérios.

Em 2018, Temer chegou a usar o Exército na intervenção da segurança pública do Rio - a aliança dele com os militares foi além, com a entrega inclusive da pasta da Defesa, sempre ocupada por civis. Como no caso das operações de GLO, a eficácia do remédio e seus efeitos colaterais virou um debate sem fim. Mas a autoestima de militares e governantes civis sempre esteve em alta. Quando terminou seu trabalho de interventor, o general Walter Braga Netto disse, no final daquele ano, que a “missão” tinha sido cumprida. Faltou responder quem matou a vereadora e seu motorista.

Foi simbólico que, após a intervenção militar que nada alterou a dinâmica das milícias e do tráfico na cidade, ao menos numa impressão, começasse o governo com mais militares no primeiro escalão do atual período democrático. Braga Netto foi ministro da Casa Civil e da Defesa e até candidato a vice na chapa de Bolsonaro nas eleições presidenciais do ano passado. No Rio, o crime organizado continuou vivo.

Operação com a presença da Marinha no Complexo do Lins, na Zona Norte do Rio, em 2013, durante governo Dilma Rousseff Foto: Jadson Marques

Na semana em que a Justiça Eleitoral tirou o general Walter Braga Netto da disputa à prefeitura do Rio, Lula e seus ministros da Justiça, Flávio Dino, e da Defesa, José Múcio, anunciaram um decreto que autoriza uma operação de Garantia da Lei e da Ordem nos portos de Itaguaí, Rio e Santos e nos aeroportos do Galeão e de Guarulhos. É o 41º em três mandatos do petista. Com poder de polícia, agentes da Aeronáutica e da Marinha estarão no combate ao tráfico de drogas e de armas. Um parêntese: desta vez, militares não foram para as ruas se queixar da decisão que tornou um oficial inelegível e organizações civis pouco reclamaram do uso mais uma vez do instrumento que virou bengala.

É natural que um governo busque apoio da Marinha e da Aeronáutica para combater o crime organizado nos acessos por mar e por aeroportos, sobretudo, quando a percepção é de que o Estado virou mesmo refém de facções em lugares específicos do País. Possivelmente, a operação de agora seja a que mais se enquadra nas exigências da Constituição. Isso, então, pode revelar o fracasso de civis e militares em suas funções ou em áreas que não deveriam estar.

Um lado e outro lucram com o uso político das operações. Aliás, o empoderamento da caserna com missões de segurança pública em tempos de regime democrático ocorre em todo o mundo e está constatado na literatura política de países da Europa. A prática de uso militar nas ruas, porém, vira grande problema quando evidencia a falta de capacidade de um governo em enfrentar o crime.

Não há cena mais forte que tanques e tropas nas ruas. Mas a memória nacional guarda também o assassinato do músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, fuzilado com 82 tiros, por militares do Exército, em abril 2019, quando ia de carro com a família para um chá de bebê. O catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, de 27, que foi tentar ajudar a família, também acabou morto. Não houve abordagem por parte dos agentes.

O debate sobre a presença dos militares na vida política sempre foi enviesado. No Legislativo, em especial, o setor pode contribuir para a melhoria das áreas de segurança pública e soberania nacional. O bizarro mesmo é a convocação de generais para cuidar da saúde da população, intermediar conflitos no campo ou resolver problemas bancários de um presidente.

A possibilidade de os militares terem um candidato da caserna eleito presidente da República, uma garantia do sistema representativo, não impediu que oficiais à paisana estivessem numa terceira invasão dos palácios da História de Brasília. A propósito, o processo de investigação do 8 de janeiro poderia ser um momento oportuno para, punições à parte, se definir limites da atuação deles.

Passados quase dez meses da última tentativa de golpe, a cúpula das Forças Armadas e a Justiça Militar não disseram nem mesmo o que farão com os oficiais que participaram do ato. O andamento dos processos e sindicâncias abertos virou segredo de Estado. O coronel da reserva do Exército Adriano Camargo Testoni, personalizou bem os réus dos quartéis e da reserva. Num vídeo divulgado em suas redes, usou palavras duras contra colegas e chefes de farda. Ele vestia uma camisa da CBF.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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