Num baile promovido pela Aeronáutica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse para os comandantes das Forças Armadas que não havia “problema” algum em manter os arquivos da ditadura fechados. Ele avaliou que a questão não era do Executivo, mas do Congresso. “Temos de superar este momento”, afirmou. Era madrugada de 24 de outubro de 2004.
No começo do primeiro e do segundo governos de Lula, os militares eram coadjuvantes e não tinham a força política que ganhariam anos depois com a eleição de Jair Bolsonaro para se contrapor a uma eventual decisão pela abertura dos arquivos da Guerrilha do Araguaia (1972 a 1974). Agora, no rastro da lambança da tentativa de golpe de 8 de janeiro, que envolveu oficiais, a caserna rejeitaria uma ordem? Até o momento, o presidente em seu terceiro mandato nada disse sobre o tema.
Ao contrário do que o presidente pregou na festa ocorrida há 18 anos, a questão não é do Congresso, mas do Executivo, o guardião dos documentos. A história é assim: no momento da repressão nas cidades, no final dos anos 1960, cerca de cem militantes comunistas aceitaram o convite do PCdoB para formar uma guerrilha nas margens do Rio Araguaia, no sudeste do Pará e no norte do atual Estado do Tocantins. Muitos só queriam escapar da morte. Em 1972, o Exército jogou uma tropa fardada na mata e recrutou guias locais. Foram duas campanhas contra a guerrilha, fracassadas. No ano seguinte, uma operação de inteligência identificou três agrupamentos guerrilheiros. O trabalho serviu de base para a terceira campanha, formada apenas por agentes descaracterizados e preparados para a guerra na selva.
É a documentação sobre essa última campanha – relatórios militares, fotos de guerrilheiros, depoimentos de prisioneiros e possíveis dados de sepultamentos – que forma o conjunto dos chamados arquivos secretos do Araguaia. O acervo está nas salas dos centros de inteligência da Aeronáutica, da Marinha e do Exército, em Brasília. O Estadão foi o primeiro jornal a noticiar a existência da guerrilha ainda em 1972 e depois revelar o arquivo do Major Curió, em 2009, que comprovou a execução de 41 guerrilheiros presos, mudando a versão oficial de que todos morreram em combate.
Há quase duas décadas, o Brasil ouve a frase de que não deve olhar pelo retrovisor, quase um mantra nacional nos momentos de instabilidade política. É fácil você concordar com esse discurso se não faz parte de uma família que aguarda as informações sigilosas para saber o que ocorreu com seu filho e enterrá-lo. Muitas delas não suportaram a angústia e promoveram sepultamentos simbólicos de caixas apenas com sapatos e fotos.
Em plena ditadura, mães iniciaram uma batalha pelo direito aos corpos dos filhos. Não buscavam auxílios financeiros. Aos poucos, foram perdendo a guerra para o tempo. Maria Leonor Pereira Marques, em Belo Horizonte, encerrou sua luta há seis meses. Dias antes de morrer aos 93 anos, lembrava do filho Paulo Roberto Pereira Marques, o Amaury, que montou uma farmacinha na margem do Araguaia e acabou executado pelo Exército. Maria Leonor passou noites numa máquina de costura para suportar a sensação de não enterrá-lo. Cansou de ouvir que “este não é o melhor momento” para falar dos arquivos. Nunca é a hora, parece. Sempre o País tem um problema político para resolver.
É possível que o Palácio do Planalto considere que a situação nos quartéis ainda é de convulsão. Numa ótica política, pode achar ainda que a maioria da população não foi formada para se preocupar com a História e vê qualquer atenção à memória nacional como algo irrelevante e distante de sua realidade.
Mas, ideologias e pragmatismo à parte, enterrar um filho não é vingança. A Lei da Anistia perdoou, mas não estabeleceu o sigilo dos arquivos.
“É um problema histórico”, observa Júlio Marques, irmão do guerrilheiro Amaury.
Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, também morto em 1974 no Araguaia, observa que, nestes anos todos, os partidos nunca quiseram mexer no assunto. “Lula nunca enfrentou essa questão, e acho que não vai enfrentar agora. Ele só quer conversar com as Mães de Maio”, afirma, referindo-se a encontros do petista com as mães dos mortos políticos da Argentina.
Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, morto em 1974 no Araguaia
Na campanha de 2018, o economista Samuel Pessôa chegou a afirmar que a “insistência” dos repórteres em temas da ditadura era um erro e que os profissionais confundiam seus próprios valores e o que era pauta.
A busca da História não impede país algum avançar, pelo contrário. Às vezes, falar do passado serve mesmo é para não esquecermos o atraso autoritário que se apresentou como uma nova política num tempo muito antigo ou recente.