À margem da História

Opinião|Lula vai desperdiçar terceira chance de abrir os arquivos militares?


Um acordo para manter documentos da ditadura sob sigilo feito pelo presidente com as Forças Armadas, há 18 anos, continua valendo

Por Leonencio Nossa
Atualização:

Num baile promovido pela Aeronáutica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse para os comandantes das Forças Armadas que não havia “problema” algum em manter os arquivos da ditadura fechados. Ele avaliou que a questão não era do Executivo, mas do Congresso. “Temos de superar este momento”, afirmou. Era madrugada de 24 de outubro de 2004.

No começo do primeiro e do segundo governos de Lula, os militares eram coadjuvantes e não tinham a força política que ganhariam anos depois com a eleição de Jair Bolsonaro para se contrapor a uma eventual decisão pela abertura dos arquivos da Guerrilha do Araguaia (1972 a 1974). Agora, no rastro da lambança da tentativa de golpe de 8 de janeiro, que envolveu oficiais, a caserna rejeitaria uma ordem? Até o momento, o presidente em seu terceiro mandato nada disse sobre o tema.

Uma foto do arquivo pessoal do ex-tenente Guilherme Xavier Neto mostra moradores do Araguaia cercados por militares, em 1972 Foto: Reprodução: Leonencio Nossa/Estadão
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Ao contrário do que o presidente pregou na festa ocorrida há 18 anos, a questão não é do Congresso, mas do Executivo, o guardião dos documentos. A história é assim: no momento da repressão nas cidades, no final dos anos 1960, cerca de cem militantes comunistas aceitaram o convite do PCdoB para formar uma guerrilha nas margens do Rio Araguaia, no sudeste do Pará e no norte do atual Estado do Tocantins. Muitos só queriam escapar da morte. Em 1972, o Exército jogou uma tropa fardada na mata e recrutou guias locais. Foram duas campanhas contra a guerrilha, fracassadas. No ano seguinte, uma operação de inteligência identificou três agrupamentos guerrilheiros. O trabalho serviu de base para a terceira campanha, formada apenas por agentes descaracterizados e preparados para a guerra na selva.

É a documentação sobre essa última campanha – relatórios militares, fotos de guerrilheiros, depoimentos de prisioneiros e possíveis dados de sepultamentos – que forma o conjunto dos chamados arquivos secretos do Araguaia. O acervo está nas salas dos centros de inteligência da Aeronáutica, da Marinha e do Exército, em Brasília. O Estadão foi o primeiro jornal a noticiar a existência da guerrilha ainda em 1972 e depois revelar o arquivo do Major Curió, em 2009, que comprovou a execução de 41 guerrilheiros presos, mudando a versão oficial de que todos morreram em combate.

Estadão em 1972 e 2004; jornal foi o primeiro a noticiar a existência da guerrilha (à esq.); no primeiro mandato, Lula negou abrir arquivos (à dir.) Foto: Reprodução/Estadão
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Há quase duas décadas, o Brasil ouve a frase de que não deve olhar pelo retrovisor, quase um mantra nacional nos momentos de instabilidade política. É fácil você concordar com esse discurso se não faz parte de uma família que aguarda as informações sigilosas para saber o que ocorreu com seu filho e enterrá-lo. Muitas delas não suportaram a angústia e promoveram sepultamentos simbólicos de caixas apenas com sapatos e fotos.

Em plena ditadura, mães iniciaram uma batalha pelo direito aos corpos dos filhos. Não buscavam auxílios financeiros. Aos poucos, foram perdendo a guerra para o tempo. Maria Leonor Pereira Marques, em Belo Horizonte, encerrou sua luta há seis meses. Dias antes de morrer aos 93 anos, lembrava do filho Paulo Roberto Pereira Marques, o Amaury, que montou uma farmacinha na margem do Araguaia e acabou executado pelo Exército. Maria Leonor passou noites numa máquina de costura para suportar a sensação de não enterrá-lo. Cansou de ouvir que “este não é o melhor momento” para falar dos arquivos. Nunca é a hora, parece. Sempre o País tem um problema político para resolver.

Maria Leonor Pereira Marques e o filho Paulo Roberto, que seria guerrilheiro no Araguaia Foto: Arquivo Pessoal/Júlio Marques
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É possível que o Palácio do Planalto considere que a situação nos quartéis ainda é de convulsão. Numa ótica política, pode achar ainda que a maioria da população não foi formada para se preocupar com a História e vê qualquer atenção à memória nacional como algo irrelevante e distante de sua realidade.

Mas, ideologias e pragmatismo à parte, enterrar um filho não é vingança. A Lei da Anistia perdoou, mas não estabeleceu o sigilo dos arquivos.

“É um problema histórico”, observa Júlio Marques, irmão do guerrilheiro Amaury.

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Em seu primeiro mandato, Lula participou de baile da Aeronáutica, em outubro de 2004, oferecido pelo comandante da Força, Luiz Carlos Bueno, último da direita Foto: Ricardo Stuckert/PR

Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, também morto em 1974 no Araguaia, observa que, nestes anos todos, os partidos nunca quiseram mexer no assunto. “Lula nunca enfrentou essa questão, e acho que não vai enfrentar agora. Ele só quer conversar com as Mães de Maio”, afirma, referindo-se a encontros do petista com as mães dos mortos políticos da Argentina.

Lula nunca enfrentou essa questão, e acho que não vai enfrentar agora. Ele só quer conversar com as Mães de Maio

Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, morto em 1974 no Araguaia

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Na campanha de 2018, o economista Samuel Pessôa chegou a afirmar que a “insistência” dos repórteres em temas da ditadura era um erro e que os profissionais confundiam seus próprios valores e o que era pauta.

A busca da História não impede país algum avançar, pelo contrário. Às vezes, falar do passado serve mesmo é para não esquecermos o atraso autoritário que se apresentou como uma nova política num tempo muito antigo ou recente.

Num baile promovido pela Aeronáutica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse para os comandantes das Forças Armadas que não havia “problema” algum em manter os arquivos da ditadura fechados. Ele avaliou que a questão não era do Executivo, mas do Congresso. “Temos de superar este momento”, afirmou. Era madrugada de 24 de outubro de 2004.

No começo do primeiro e do segundo governos de Lula, os militares eram coadjuvantes e não tinham a força política que ganhariam anos depois com a eleição de Jair Bolsonaro para se contrapor a uma eventual decisão pela abertura dos arquivos da Guerrilha do Araguaia (1972 a 1974). Agora, no rastro da lambança da tentativa de golpe de 8 de janeiro, que envolveu oficiais, a caserna rejeitaria uma ordem? Até o momento, o presidente em seu terceiro mandato nada disse sobre o tema.

Uma foto do arquivo pessoal do ex-tenente Guilherme Xavier Neto mostra moradores do Araguaia cercados por militares, em 1972 Foto: Reprodução: Leonencio Nossa/Estadão

Ao contrário do que o presidente pregou na festa ocorrida há 18 anos, a questão não é do Congresso, mas do Executivo, o guardião dos documentos. A história é assim: no momento da repressão nas cidades, no final dos anos 1960, cerca de cem militantes comunistas aceitaram o convite do PCdoB para formar uma guerrilha nas margens do Rio Araguaia, no sudeste do Pará e no norte do atual Estado do Tocantins. Muitos só queriam escapar da morte. Em 1972, o Exército jogou uma tropa fardada na mata e recrutou guias locais. Foram duas campanhas contra a guerrilha, fracassadas. No ano seguinte, uma operação de inteligência identificou três agrupamentos guerrilheiros. O trabalho serviu de base para a terceira campanha, formada apenas por agentes descaracterizados e preparados para a guerra na selva.

É a documentação sobre essa última campanha – relatórios militares, fotos de guerrilheiros, depoimentos de prisioneiros e possíveis dados de sepultamentos – que forma o conjunto dos chamados arquivos secretos do Araguaia. O acervo está nas salas dos centros de inteligência da Aeronáutica, da Marinha e do Exército, em Brasília. O Estadão foi o primeiro jornal a noticiar a existência da guerrilha ainda em 1972 e depois revelar o arquivo do Major Curió, em 2009, que comprovou a execução de 41 guerrilheiros presos, mudando a versão oficial de que todos morreram em combate.

Estadão em 1972 e 2004; jornal foi o primeiro a noticiar a existência da guerrilha (à esq.); no primeiro mandato, Lula negou abrir arquivos (à dir.) Foto: Reprodução/Estadão

Há quase duas décadas, o Brasil ouve a frase de que não deve olhar pelo retrovisor, quase um mantra nacional nos momentos de instabilidade política. É fácil você concordar com esse discurso se não faz parte de uma família que aguarda as informações sigilosas para saber o que ocorreu com seu filho e enterrá-lo. Muitas delas não suportaram a angústia e promoveram sepultamentos simbólicos de caixas apenas com sapatos e fotos.

Em plena ditadura, mães iniciaram uma batalha pelo direito aos corpos dos filhos. Não buscavam auxílios financeiros. Aos poucos, foram perdendo a guerra para o tempo. Maria Leonor Pereira Marques, em Belo Horizonte, encerrou sua luta há seis meses. Dias antes de morrer aos 93 anos, lembrava do filho Paulo Roberto Pereira Marques, o Amaury, que montou uma farmacinha na margem do Araguaia e acabou executado pelo Exército. Maria Leonor passou noites numa máquina de costura para suportar a sensação de não enterrá-lo. Cansou de ouvir que “este não é o melhor momento” para falar dos arquivos. Nunca é a hora, parece. Sempre o País tem um problema político para resolver.

Maria Leonor Pereira Marques e o filho Paulo Roberto, que seria guerrilheiro no Araguaia Foto: Arquivo Pessoal/Júlio Marques

É possível que o Palácio do Planalto considere que a situação nos quartéis ainda é de convulsão. Numa ótica política, pode achar ainda que a maioria da população não foi formada para se preocupar com a História e vê qualquer atenção à memória nacional como algo irrelevante e distante de sua realidade.

Mas, ideologias e pragmatismo à parte, enterrar um filho não é vingança. A Lei da Anistia perdoou, mas não estabeleceu o sigilo dos arquivos.

“É um problema histórico”, observa Júlio Marques, irmão do guerrilheiro Amaury.

Em seu primeiro mandato, Lula participou de baile da Aeronáutica, em outubro de 2004, oferecido pelo comandante da Força, Luiz Carlos Bueno, último da direita Foto: Ricardo Stuckert/PR

Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, também morto em 1974 no Araguaia, observa que, nestes anos todos, os partidos nunca quiseram mexer no assunto. “Lula nunca enfrentou essa questão, e acho que não vai enfrentar agora. Ele só quer conversar com as Mães de Maio”, afirma, referindo-se a encontros do petista com as mães dos mortos políticos da Argentina.

Lula nunca enfrentou essa questão, e acho que não vai enfrentar agora. Ele só quer conversar com as Mães de Maio

Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, morto em 1974 no Araguaia

Na campanha de 2018, o economista Samuel Pessôa chegou a afirmar que a “insistência” dos repórteres em temas da ditadura era um erro e que os profissionais confundiam seus próprios valores e o que era pauta.

A busca da História não impede país algum avançar, pelo contrário. Às vezes, falar do passado serve mesmo é para não esquecermos o atraso autoritário que se apresentou como uma nova política num tempo muito antigo ou recente.

Num baile promovido pela Aeronáutica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse para os comandantes das Forças Armadas que não havia “problema” algum em manter os arquivos da ditadura fechados. Ele avaliou que a questão não era do Executivo, mas do Congresso. “Temos de superar este momento”, afirmou. Era madrugada de 24 de outubro de 2004.

No começo do primeiro e do segundo governos de Lula, os militares eram coadjuvantes e não tinham a força política que ganhariam anos depois com a eleição de Jair Bolsonaro para se contrapor a uma eventual decisão pela abertura dos arquivos da Guerrilha do Araguaia (1972 a 1974). Agora, no rastro da lambança da tentativa de golpe de 8 de janeiro, que envolveu oficiais, a caserna rejeitaria uma ordem? Até o momento, o presidente em seu terceiro mandato nada disse sobre o tema.

Uma foto do arquivo pessoal do ex-tenente Guilherme Xavier Neto mostra moradores do Araguaia cercados por militares, em 1972 Foto: Reprodução: Leonencio Nossa/Estadão

Ao contrário do que o presidente pregou na festa ocorrida há 18 anos, a questão não é do Congresso, mas do Executivo, o guardião dos documentos. A história é assim: no momento da repressão nas cidades, no final dos anos 1960, cerca de cem militantes comunistas aceitaram o convite do PCdoB para formar uma guerrilha nas margens do Rio Araguaia, no sudeste do Pará e no norte do atual Estado do Tocantins. Muitos só queriam escapar da morte. Em 1972, o Exército jogou uma tropa fardada na mata e recrutou guias locais. Foram duas campanhas contra a guerrilha, fracassadas. No ano seguinte, uma operação de inteligência identificou três agrupamentos guerrilheiros. O trabalho serviu de base para a terceira campanha, formada apenas por agentes descaracterizados e preparados para a guerra na selva.

É a documentação sobre essa última campanha – relatórios militares, fotos de guerrilheiros, depoimentos de prisioneiros e possíveis dados de sepultamentos – que forma o conjunto dos chamados arquivos secretos do Araguaia. O acervo está nas salas dos centros de inteligência da Aeronáutica, da Marinha e do Exército, em Brasília. O Estadão foi o primeiro jornal a noticiar a existência da guerrilha ainda em 1972 e depois revelar o arquivo do Major Curió, em 2009, que comprovou a execução de 41 guerrilheiros presos, mudando a versão oficial de que todos morreram em combate.

Estadão em 1972 e 2004; jornal foi o primeiro a noticiar a existência da guerrilha (à esq.); no primeiro mandato, Lula negou abrir arquivos (à dir.) Foto: Reprodução/Estadão

Há quase duas décadas, o Brasil ouve a frase de que não deve olhar pelo retrovisor, quase um mantra nacional nos momentos de instabilidade política. É fácil você concordar com esse discurso se não faz parte de uma família que aguarda as informações sigilosas para saber o que ocorreu com seu filho e enterrá-lo. Muitas delas não suportaram a angústia e promoveram sepultamentos simbólicos de caixas apenas com sapatos e fotos.

Em plena ditadura, mães iniciaram uma batalha pelo direito aos corpos dos filhos. Não buscavam auxílios financeiros. Aos poucos, foram perdendo a guerra para o tempo. Maria Leonor Pereira Marques, em Belo Horizonte, encerrou sua luta há seis meses. Dias antes de morrer aos 93 anos, lembrava do filho Paulo Roberto Pereira Marques, o Amaury, que montou uma farmacinha na margem do Araguaia e acabou executado pelo Exército. Maria Leonor passou noites numa máquina de costura para suportar a sensação de não enterrá-lo. Cansou de ouvir que “este não é o melhor momento” para falar dos arquivos. Nunca é a hora, parece. Sempre o País tem um problema político para resolver.

Maria Leonor Pereira Marques e o filho Paulo Roberto, que seria guerrilheiro no Araguaia Foto: Arquivo Pessoal/Júlio Marques

É possível que o Palácio do Planalto considere que a situação nos quartéis ainda é de convulsão. Numa ótica política, pode achar ainda que a maioria da população não foi formada para se preocupar com a História e vê qualquer atenção à memória nacional como algo irrelevante e distante de sua realidade.

Mas, ideologias e pragmatismo à parte, enterrar um filho não é vingança. A Lei da Anistia perdoou, mas não estabeleceu o sigilo dos arquivos.

“É um problema histórico”, observa Júlio Marques, irmão do guerrilheiro Amaury.

Em seu primeiro mandato, Lula participou de baile da Aeronáutica, em outubro de 2004, oferecido pelo comandante da Força, Luiz Carlos Bueno, último da direita Foto: Ricardo Stuckert/PR

Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, também morto em 1974 no Araguaia, observa que, nestes anos todos, os partidos nunca quiseram mexer no assunto. “Lula nunca enfrentou essa questão, e acho que não vai enfrentar agora. Ele só quer conversar com as Mães de Maio”, afirma, referindo-se a encontros do petista com as mães dos mortos políticos da Argentina.

Lula nunca enfrentou essa questão, e acho que não vai enfrentar agora. Ele só quer conversar com as Mães de Maio

Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, morto em 1974 no Araguaia

Na campanha de 2018, o economista Samuel Pessôa chegou a afirmar que a “insistência” dos repórteres em temas da ditadura era um erro e que os profissionais confundiam seus próprios valores e o que era pauta.

A busca da História não impede país algum avançar, pelo contrário. Às vezes, falar do passado serve mesmo é para não esquecermos o atraso autoritário que se apresentou como uma nova política num tempo muito antigo ou recente.

Num baile promovido pela Aeronáutica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse para os comandantes das Forças Armadas que não havia “problema” algum em manter os arquivos da ditadura fechados. Ele avaliou que a questão não era do Executivo, mas do Congresso. “Temos de superar este momento”, afirmou. Era madrugada de 24 de outubro de 2004.

No começo do primeiro e do segundo governos de Lula, os militares eram coadjuvantes e não tinham a força política que ganhariam anos depois com a eleição de Jair Bolsonaro para se contrapor a uma eventual decisão pela abertura dos arquivos da Guerrilha do Araguaia (1972 a 1974). Agora, no rastro da lambança da tentativa de golpe de 8 de janeiro, que envolveu oficiais, a caserna rejeitaria uma ordem? Até o momento, o presidente em seu terceiro mandato nada disse sobre o tema.

Uma foto do arquivo pessoal do ex-tenente Guilherme Xavier Neto mostra moradores do Araguaia cercados por militares, em 1972 Foto: Reprodução: Leonencio Nossa/Estadão

Ao contrário do que o presidente pregou na festa ocorrida há 18 anos, a questão não é do Congresso, mas do Executivo, o guardião dos documentos. A história é assim: no momento da repressão nas cidades, no final dos anos 1960, cerca de cem militantes comunistas aceitaram o convite do PCdoB para formar uma guerrilha nas margens do Rio Araguaia, no sudeste do Pará e no norte do atual Estado do Tocantins. Muitos só queriam escapar da morte. Em 1972, o Exército jogou uma tropa fardada na mata e recrutou guias locais. Foram duas campanhas contra a guerrilha, fracassadas. No ano seguinte, uma operação de inteligência identificou três agrupamentos guerrilheiros. O trabalho serviu de base para a terceira campanha, formada apenas por agentes descaracterizados e preparados para a guerra na selva.

É a documentação sobre essa última campanha – relatórios militares, fotos de guerrilheiros, depoimentos de prisioneiros e possíveis dados de sepultamentos – que forma o conjunto dos chamados arquivos secretos do Araguaia. O acervo está nas salas dos centros de inteligência da Aeronáutica, da Marinha e do Exército, em Brasília. O Estadão foi o primeiro jornal a noticiar a existência da guerrilha ainda em 1972 e depois revelar o arquivo do Major Curió, em 2009, que comprovou a execução de 41 guerrilheiros presos, mudando a versão oficial de que todos morreram em combate.

Estadão em 1972 e 2004; jornal foi o primeiro a noticiar a existência da guerrilha (à esq.); no primeiro mandato, Lula negou abrir arquivos (à dir.) Foto: Reprodução/Estadão

Há quase duas décadas, o Brasil ouve a frase de que não deve olhar pelo retrovisor, quase um mantra nacional nos momentos de instabilidade política. É fácil você concordar com esse discurso se não faz parte de uma família que aguarda as informações sigilosas para saber o que ocorreu com seu filho e enterrá-lo. Muitas delas não suportaram a angústia e promoveram sepultamentos simbólicos de caixas apenas com sapatos e fotos.

Em plena ditadura, mães iniciaram uma batalha pelo direito aos corpos dos filhos. Não buscavam auxílios financeiros. Aos poucos, foram perdendo a guerra para o tempo. Maria Leonor Pereira Marques, em Belo Horizonte, encerrou sua luta há seis meses. Dias antes de morrer aos 93 anos, lembrava do filho Paulo Roberto Pereira Marques, o Amaury, que montou uma farmacinha na margem do Araguaia e acabou executado pelo Exército. Maria Leonor passou noites numa máquina de costura para suportar a sensação de não enterrá-lo. Cansou de ouvir que “este não é o melhor momento” para falar dos arquivos. Nunca é a hora, parece. Sempre o País tem um problema político para resolver.

Maria Leonor Pereira Marques e o filho Paulo Roberto, que seria guerrilheiro no Araguaia Foto: Arquivo Pessoal/Júlio Marques

É possível que o Palácio do Planalto considere que a situação nos quartéis ainda é de convulsão. Numa ótica política, pode achar ainda que a maioria da população não foi formada para se preocupar com a História e vê qualquer atenção à memória nacional como algo irrelevante e distante de sua realidade.

Mas, ideologias e pragmatismo à parte, enterrar um filho não é vingança. A Lei da Anistia perdoou, mas não estabeleceu o sigilo dos arquivos.

“É um problema histórico”, observa Júlio Marques, irmão do guerrilheiro Amaury.

Em seu primeiro mandato, Lula participou de baile da Aeronáutica, em outubro de 2004, oferecido pelo comandante da Força, Luiz Carlos Bueno, último da direita Foto: Ricardo Stuckert/PR

Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, também morto em 1974 no Araguaia, observa que, nestes anos todos, os partidos nunca quiseram mexer no assunto. “Lula nunca enfrentou essa questão, e acho que não vai enfrentar agora. Ele só quer conversar com as Mães de Maio”, afirma, referindo-se a encontros do petista com as mães dos mortos políticos da Argentina.

Lula nunca enfrentou essa questão, e acho que não vai enfrentar agora. Ele só quer conversar com as Mães de Maio

Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, morto em 1974 no Araguaia

Na campanha de 2018, o economista Samuel Pessôa chegou a afirmar que a “insistência” dos repórteres em temas da ditadura era um erro e que os profissionais confundiam seus próprios valores e o que era pauta.

A busca da História não impede país algum avançar, pelo contrário. Às vezes, falar do passado serve mesmo é para não esquecermos o atraso autoritário que se apresentou como uma nova política num tempo muito antigo ou recente.

Num baile promovido pela Aeronáutica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse para os comandantes das Forças Armadas que não havia “problema” algum em manter os arquivos da ditadura fechados. Ele avaliou que a questão não era do Executivo, mas do Congresso. “Temos de superar este momento”, afirmou. Era madrugada de 24 de outubro de 2004.

No começo do primeiro e do segundo governos de Lula, os militares eram coadjuvantes e não tinham a força política que ganhariam anos depois com a eleição de Jair Bolsonaro para se contrapor a uma eventual decisão pela abertura dos arquivos da Guerrilha do Araguaia (1972 a 1974). Agora, no rastro da lambança da tentativa de golpe de 8 de janeiro, que envolveu oficiais, a caserna rejeitaria uma ordem? Até o momento, o presidente em seu terceiro mandato nada disse sobre o tema.

Uma foto do arquivo pessoal do ex-tenente Guilherme Xavier Neto mostra moradores do Araguaia cercados por militares, em 1972 Foto: Reprodução: Leonencio Nossa/Estadão

Ao contrário do que o presidente pregou na festa ocorrida há 18 anos, a questão não é do Congresso, mas do Executivo, o guardião dos documentos. A história é assim: no momento da repressão nas cidades, no final dos anos 1960, cerca de cem militantes comunistas aceitaram o convite do PCdoB para formar uma guerrilha nas margens do Rio Araguaia, no sudeste do Pará e no norte do atual Estado do Tocantins. Muitos só queriam escapar da morte. Em 1972, o Exército jogou uma tropa fardada na mata e recrutou guias locais. Foram duas campanhas contra a guerrilha, fracassadas. No ano seguinte, uma operação de inteligência identificou três agrupamentos guerrilheiros. O trabalho serviu de base para a terceira campanha, formada apenas por agentes descaracterizados e preparados para a guerra na selva.

É a documentação sobre essa última campanha – relatórios militares, fotos de guerrilheiros, depoimentos de prisioneiros e possíveis dados de sepultamentos – que forma o conjunto dos chamados arquivos secretos do Araguaia. O acervo está nas salas dos centros de inteligência da Aeronáutica, da Marinha e do Exército, em Brasília. O Estadão foi o primeiro jornal a noticiar a existência da guerrilha ainda em 1972 e depois revelar o arquivo do Major Curió, em 2009, que comprovou a execução de 41 guerrilheiros presos, mudando a versão oficial de que todos morreram em combate.

Estadão em 1972 e 2004; jornal foi o primeiro a noticiar a existência da guerrilha (à esq.); no primeiro mandato, Lula negou abrir arquivos (à dir.) Foto: Reprodução/Estadão

Há quase duas décadas, o Brasil ouve a frase de que não deve olhar pelo retrovisor, quase um mantra nacional nos momentos de instabilidade política. É fácil você concordar com esse discurso se não faz parte de uma família que aguarda as informações sigilosas para saber o que ocorreu com seu filho e enterrá-lo. Muitas delas não suportaram a angústia e promoveram sepultamentos simbólicos de caixas apenas com sapatos e fotos.

Em plena ditadura, mães iniciaram uma batalha pelo direito aos corpos dos filhos. Não buscavam auxílios financeiros. Aos poucos, foram perdendo a guerra para o tempo. Maria Leonor Pereira Marques, em Belo Horizonte, encerrou sua luta há seis meses. Dias antes de morrer aos 93 anos, lembrava do filho Paulo Roberto Pereira Marques, o Amaury, que montou uma farmacinha na margem do Araguaia e acabou executado pelo Exército. Maria Leonor passou noites numa máquina de costura para suportar a sensação de não enterrá-lo. Cansou de ouvir que “este não é o melhor momento” para falar dos arquivos. Nunca é a hora, parece. Sempre o País tem um problema político para resolver.

Maria Leonor Pereira Marques e o filho Paulo Roberto, que seria guerrilheiro no Araguaia Foto: Arquivo Pessoal/Júlio Marques

É possível que o Palácio do Planalto considere que a situação nos quartéis ainda é de convulsão. Numa ótica política, pode achar ainda que a maioria da população não foi formada para se preocupar com a História e vê qualquer atenção à memória nacional como algo irrelevante e distante de sua realidade.

Mas, ideologias e pragmatismo à parte, enterrar um filho não é vingança. A Lei da Anistia perdoou, mas não estabeleceu o sigilo dos arquivos.

“É um problema histórico”, observa Júlio Marques, irmão do guerrilheiro Amaury.

Em seu primeiro mandato, Lula participou de baile da Aeronáutica, em outubro de 2004, oferecido pelo comandante da Força, Luiz Carlos Bueno, último da direita Foto: Ricardo Stuckert/PR

Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, também morto em 1974 no Araguaia, observa que, nestes anos todos, os partidos nunca quiseram mexer no assunto. “Lula nunca enfrentou essa questão, e acho que não vai enfrentar agora. Ele só quer conversar com as Mães de Maio”, afirma, referindo-se a encontros do petista com as mães dos mortos políticos da Argentina.

Lula nunca enfrentou essa questão, e acho que não vai enfrentar agora. Ele só quer conversar com as Mães de Maio

Eliane Castro, irmã de Antonio Teodoro de Castro, o Raul, morto em 1974 no Araguaia

Na campanha de 2018, o economista Samuel Pessôa chegou a afirmar que a “insistência” dos repórteres em temas da ditadura era um erro e que os profissionais confundiam seus próprios valores e o que era pauta.

A busca da História não impede país algum avançar, pelo contrário. Às vezes, falar do passado serve mesmo é para não esquecermos o atraso autoritário que se apresentou como uma nova política num tempo muito antigo ou recente.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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