À margem da História

Opinião|Milei é um novo Bolsonaro; na Argentina, novidade é a ausência dos militares


No país vizinho, campo e cidade se dividem e política e economia causam frustrações; experiência democrática atinge período de longevidade

Por Leonencio Nossa
Atualização:

O escritor Domingo Sarmiento publicou, em 1845, Facundo, civilización y barbárie. O livro retrata uma Argentina dividida entre a cidade, civilizada, e o Pampa, violento. É a vida de um general e caudilho de La Rioja assassinado por inimigos. No Brasil, Os sertões, de Euclides da Cunha, mais de cinco décadas depois, descreve um massacre de sertanejos pelo Exército na Bahia e usa a mesma dicotomia para mostrar uma nação que pode rachar até pelo fato de uns viverem perto do mar e outros longe.

Os dois escritores tiveram destinos diferentes. Seus países, nem tanto. Num caso de crime passional, Euclides morreu anos depois. Por sua vez, Sarmiento foi eleito presidente, revolucionou o ensino argentino, criando colégios e bibliotecas. Ele deixou outro livro, de tom racista. O mandato dele, entretanto, ficou na História por elevar o ensino e serviu de marco para o início do período de ouro.

Javier Milei, candidato à Presidência na Argentina, é o favorito na corrida presidencial Foto: Natacha Pisarenko / AP
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Esse tempo foi incrível. Entre 1870 e 1930, os portenhos tinham renda per capita maior que a dos norte-americanos. A exportação de produtos primários – grãos, lã, couro e carne bovina – atraiu banqueiros ingleses e artistas franceses e italianos. Toda companhia de ópera que se apresentava nessa época no Rio de Janeiro tinha interesse apenas em ganhar platas a mais em escala exigida pela longa travessia do Atlântico.

Mergulhada em dinheiro, a Argentina construiu estradas de ferro, viu chegar uma massa de imigrantes e cresceu. El Gran Apogeo encobriu a concentração de terra e as diferenças entre a elite agrária e as manchas urbanas.

Evita Peron e o presidente da Argentina Juan Peron na década de 1950 Foto: AP/AP
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Veio a Primeira Guerra: o mundo deixou de importar. Quando o conflito terminou, a cidade e o campo não se entendiam. Em 1919, o presidente Hipólito Yrigoyen reprimiu greves anarquistas em Buenos Aires, conquistou apoios e se afastou do setor rural que dominava o Congresso. Num segundo mandato, em setembro de 1930, um tenente-general, José Félix Uriburu, deu um golpe. “Isso marcou o final da época de ouro”, conta Eleonora Gosman, correspondente do jornal Perfil, maior conhecedora da relação entre os dois países.

O golpe de Uriburu selou uma aliança decisiva entre militares e o sempre influente setor agrícola, sem conexão com forças progressistas urbanas.

Menos de um mês depois, a troca de poder no Brasil foi ao contrário. A elite do café perdeu o poder para setores exportadores e industriais e um golpe pôs Getúlio Vargas no Palácio do Catete.

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A Argentina das commodities e dos golpistas sofreu o impacto de mais uma Guerra Mundial. Em 1946, Juan Domingo Perón foi eleito. Também oriundo da caserna, ele buscou referências no fascismo de Mussolini. Mas é difícil dizer que fez um governo fascista.

O presidente adotou uma política econômica nacionalista que aproveitou a alta das reservas cambiais e o populismo. A figura da segunda mulher dele, Evita, ganhou contornos de santa. Começava assim o peronismo, movimento de massas e força política predominante.

Em setembro de 1955, Perón foi deposto pelo general Eduardo Lonardi, que, por sua vez, acabou derrubado pelo tenente-general Pedro Aramburu.

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Em 1958, um civil foi eleito. Como Juscelino no Brasil, Arturo Frondizi desenvolveu a indústria automobilística e investiu em estradas e hidrelétricas, além da exploração de petróleo. Ele enfrentou seis tentativas de golpe e caiu em março de 1962. Dois anos depois, em outro março, o brasileiro João Goulart era derrubado - também pelos militares.

Juramento do general Jorge Videla ao assumir em 1976 a presidência na Argentina durante a ditadura militar naquele país Foto: EFE / Prensa Latina

Perón voltou em 1973. Morreu menos de um ano depois da posse. Sua terceira mulher, a vice Isabelita, uma ex-dançarina, assumiu só para esquentar a cadeira para os generais, que dariam mais um golpe nove anos após a ruptura feita pelos militares brasileiros.

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Durante a ditadura, entre 1976 e 1983, a Argentina ganhou uma Copa do Mundo e o regime fez uma guerra contra o Reino Unido, implantou uma máquina repressiva que resultou em 30 mil mortos ou desaparecidos políticos e criou um caos financeiro. Ao menos o sistema de ensino de Sarmiento continuava preservado.

Numa onda recente de protestos, em 2001, os argentinos gritaram “que se vayan todos” - “fora todos (os políticos)”. As batidas de panela resultaram em cinco presidentes em menos de duas semanas. Na sequência, vieram os governos de Néstor Kirchner e sua mulher, Cristina, peronistas, e, aqui, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, além de seus opositores. Se ouviria muita batida de panela nos dois países.

Agora, o extremista Javier Milei, um outsider, vencedor da eleição primária na Argentina no último domingo, uma prévia da disputa presidencial, capturou o grito de ordem. Milei adota o mecanismo que Steve Bannon usou com Jair Bolsonaro em 2018. “O processo é o mesmo. Quando se pensa em Brasil e Argentina, só é preciso saber quem vai fazer algo primeiro”, diz Eleonora.

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Isso quer dizer o seguinte: se o pior vencer, terá dificuldades para preencher os cargos da máquina do governo e o país dependerá de nomes de quem o poder econômico escolher para os ministérios. Aqui, o Centrão governou para Bolsonaro, ganhou dinheiro e segurou arroubos. A medida “peronista” do Auxílio Brasil, aprovado por todos os campos políticos, ajudou brasileiros na pandemia - e garantiu Bolsonaro no segundo turno. No mesmo período, Messi enfim venceu uma Copa. Os estragos provocados pelo governo Bolsonaro em todo o tecido social, econômico e político ainda estão sendo contabilizados, mas são muitos.

Na Argentina, ao menos os militares não voltam – quiçá surpresas sanitárias. É algo novo que um extremista com chances reais de poder venha sem a companhia de generais. Há um consenso sobre o passado da ditadura. “Esqueça, os militares não existem”, afirma Eleonora.

Cristina Kirchner e o presidente Lula em encontro em 2016 em São Paulo Foto: PAULO WHITAKER / REUTERS

Mas, além de disparar a metralhadora de olhos fechados, Milei tem o adicional de atacar o que sobrou do período de ouro: as escolas de Domingo Sarmiento.

O fim da educação gratuita não é bandeira só dele. É também da candidata de direita Patrícia Bullrich, ligada ao ex-presidente Mauricio Macri.

Há anos, Eleonora costuma ouvir de seus colegas pelo mundo a pergunta sobre o que ocorre na Argentina. Diante da eterna indagação, ela costuma ressaltar que os argentinos estão “mais uma vez” muito desiludidos. Eleonora prefere apresentar dúvidas que visões otimistas e fatalistas. Afinal, nas últimas décadas, brasileiros e argentinos vivem um tempo de decepção, mas também de democracia.

O escritor Domingo Sarmiento publicou, em 1845, Facundo, civilización y barbárie. O livro retrata uma Argentina dividida entre a cidade, civilizada, e o Pampa, violento. É a vida de um general e caudilho de La Rioja assassinado por inimigos. No Brasil, Os sertões, de Euclides da Cunha, mais de cinco décadas depois, descreve um massacre de sertanejos pelo Exército na Bahia e usa a mesma dicotomia para mostrar uma nação que pode rachar até pelo fato de uns viverem perto do mar e outros longe.

Os dois escritores tiveram destinos diferentes. Seus países, nem tanto. Num caso de crime passional, Euclides morreu anos depois. Por sua vez, Sarmiento foi eleito presidente, revolucionou o ensino argentino, criando colégios e bibliotecas. Ele deixou outro livro, de tom racista. O mandato dele, entretanto, ficou na História por elevar o ensino e serviu de marco para o início do período de ouro.

Javier Milei, candidato à Presidência na Argentina, é o favorito na corrida presidencial Foto: Natacha Pisarenko / AP

Esse tempo foi incrível. Entre 1870 e 1930, os portenhos tinham renda per capita maior que a dos norte-americanos. A exportação de produtos primários – grãos, lã, couro e carne bovina – atraiu banqueiros ingleses e artistas franceses e italianos. Toda companhia de ópera que se apresentava nessa época no Rio de Janeiro tinha interesse apenas em ganhar platas a mais em escala exigida pela longa travessia do Atlântico.

Mergulhada em dinheiro, a Argentina construiu estradas de ferro, viu chegar uma massa de imigrantes e cresceu. El Gran Apogeo encobriu a concentração de terra e as diferenças entre a elite agrária e as manchas urbanas.

Evita Peron e o presidente da Argentina Juan Peron na década de 1950 Foto: AP/AP

Veio a Primeira Guerra: o mundo deixou de importar. Quando o conflito terminou, a cidade e o campo não se entendiam. Em 1919, o presidente Hipólito Yrigoyen reprimiu greves anarquistas em Buenos Aires, conquistou apoios e se afastou do setor rural que dominava o Congresso. Num segundo mandato, em setembro de 1930, um tenente-general, José Félix Uriburu, deu um golpe. “Isso marcou o final da época de ouro”, conta Eleonora Gosman, correspondente do jornal Perfil, maior conhecedora da relação entre os dois países.

O golpe de Uriburu selou uma aliança decisiva entre militares e o sempre influente setor agrícola, sem conexão com forças progressistas urbanas.

Menos de um mês depois, a troca de poder no Brasil foi ao contrário. A elite do café perdeu o poder para setores exportadores e industriais e um golpe pôs Getúlio Vargas no Palácio do Catete.

A Argentina das commodities e dos golpistas sofreu o impacto de mais uma Guerra Mundial. Em 1946, Juan Domingo Perón foi eleito. Também oriundo da caserna, ele buscou referências no fascismo de Mussolini. Mas é difícil dizer que fez um governo fascista.

O presidente adotou uma política econômica nacionalista que aproveitou a alta das reservas cambiais e o populismo. A figura da segunda mulher dele, Evita, ganhou contornos de santa. Começava assim o peronismo, movimento de massas e força política predominante.

Em setembro de 1955, Perón foi deposto pelo general Eduardo Lonardi, que, por sua vez, acabou derrubado pelo tenente-general Pedro Aramburu.

Em 1958, um civil foi eleito. Como Juscelino no Brasil, Arturo Frondizi desenvolveu a indústria automobilística e investiu em estradas e hidrelétricas, além da exploração de petróleo. Ele enfrentou seis tentativas de golpe e caiu em março de 1962. Dois anos depois, em outro março, o brasileiro João Goulart era derrubado - também pelos militares.

Juramento do general Jorge Videla ao assumir em 1976 a presidência na Argentina durante a ditadura militar naquele país Foto: EFE / Prensa Latina

Perón voltou em 1973. Morreu menos de um ano depois da posse. Sua terceira mulher, a vice Isabelita, uma ex-dançarina, assumiu só para esquentar a cadeira para os generais, que dariam mais um golpe nove anos após a ruptura feita pelos militares brasileiros.

Durante a ditadura, entre 1976 e 1983, a Argentina ganhou uma Copa do Mundo e o regime fez uma guerra contra o Reino Unido, implantou uma máquina repressiva que resultou em 30 mil mortos ou desaparecidos políticos e criou um caos financeiro. Ao menos o sistema de ensino de Sarmiento continuava preservado.

Numa onda recente de protestos, em 2001, os argentinos gritaram “que se vayan todos” - “fora todos (os políticos)”. As batidas de panela resultaram em cinco presidentes em menos de duas semanas. Na sequência, vieram os governos de Néstor Kirchner e sua mulher, Cristina, peronistas, e, aqui, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, além de seus opositores. Se ouviria muita batida de panela nos dois países.

Agora, o extremista Javier Milei, um outsider, vencedor da eleição primária na Argentina no último domingo, uma prévia da disputa presidencial, capturou o grito de ordem. Milei adota o mecanismo que Steve Bannon usou com Jair Bolsonaro em 2018. “O processo é o mesmo. Quando se pensa em Brasil e Argentina, só é preciso saber quem vai fazer algo primeiro”, diz Eleonora.

Isso quer dizer o seguinte: se o pior vencer, terá dificuldades para preencher os cargos da máquina do governo e o país dependerá de nomes de quem o poder econômico escolher para os ministérios. Aqui, o Centrão governou para Bolsonaro, ganhou dinheiro e segurou arroubos. A medida “peronista” do Auxílio Brasil, aprovado por todos os campos políticos, ajudou brasileiros na pandemia - e garantiu Bolsonaro no segundo turno. No mesmo período, Messi enfim venceu uma Copa. Os estragos provocados pelo governo Bolsonaro em todo o tecido social, econômico e político ainda estão sendo contabilizados, mas são muitos.

Na Argentina, ao menos os militares não voltam – quiçá surpresas sanitárias. É algo novo que um extremista com chances reais de poder venha sem a companhia de generais. Há um consenso sobre o passado da ditadura. “Esqueça, os militares não existem”, afirma Eleonora.

Cristina Kirchner e o presidente Lula em encontro em 2016 em São Paulo Foto: PAULO WHITAKER / REUTERS

Mas, além de disparar a metralhadora de olhos fechados, Milei tem o adicional de atacar o que sobrou do período de ouro: as escolas de Domingo Sarmiento.

O fim da educação gratuita não é bandeira só dele. É também da candidata de direita Patrícia Bullrich, ligada ao ex-presidente Mauricio Macri.

Há anos, Eleonora costuma ouvir de seus colegas pelo mundo a pergunta sobre o que ocorre na Argentina. Diante da eterna indagação, ela costuma ressaltar que os argentinos estão “mais uma vez” muito desiludidos. Eleonora prefere apresentar dúvidas que visões otimistas e fatalistas. Afinal, nas últimas décadas, brasileiros e argentinos vivem um tempo de decepção, mas também de democracia.

O escritor Domingo Sarmiento publicou, em 1845, Facundo, civilización y barbárie. O livro retrata uma Argentina dividida entre a cidade, civilizada, e o Pampa, violento. É a vida de um general e caudilho de La Rioja assassinado por inimigos. No Brasil, Os sertões, de Euclides da Cunha, mais de cinco décadas depois, descreve um massacre de sertanejos pelo Exército na Bahia e usa a mesma dicotomia para mostrar uma nação que pode rachar até pelo fato de uns viverem perto do mar e outros longe.

Os dois escritores tiveram destinos diferentes. Seus países, nem tanto. Num caso de crime passional, Euclides morreu anos depois. Por sua vez, Sarmiento foi eleito presidente, revolucionou o ensino argentino, criando colégios e bibliotecas. Ele deixou outro livro, de tom racista. O mandato dele, entretanto, ficou na História por elevar o ensino e serviu de marco para o início do período de ouro.

Javier Milei, candidato à Presidência na Argentina, é o favorito na corrida presidencial Foto: Natacha Pisarenko / AP

Esse tempo foi incrível. Entre 1870 e 1930, os portenhos tinham renda per capita maior que a dos norte-americanos. A exportação de produtos primários – grãos, lã, couro e carne bovina – atraiu banqueiros ingleses e artistas franceses e italianos. Toda companhia de ópera que se apresentava nessa época no Rio de Janeiro tinha interesse apenas em ganhar platas a mais em escala exigida pela longa travessia do Atlântico.

Mergulhada em dinheiro, a Argentina construiu estradas de ferro, viu chegar uma massa de imigrantes e cresceu. El Gran Apogeo encobriu a concentração de terra e as diferenças entre a elite agrária e as manchas urbanas.

Evita Peron e o presidente da Argentina Juan Peron na década de 1950 Foto: AP/AP

Veio a Primeira Guerra: o mundo deixou de importar. Quando o conflito terminou, a cidade e o campo não se entendiam. Em 1919, o presidente Hipólito Yrigoyen reprimiu greves anarquistas em Buenos Aires, conquistou apoios e se afastou do setor rural que dominava o Congresso. Num segundo mandato, em setembro de 1930, um tenente-general, José Félix Uriburu, deu um golpe. “Isso marcou o final da época de ouro”, conta Eleonora Gosman, correspondente do jornal Perfil, maior conhecedora da relação entre os dois países.

O golpe de Uriburu selou uma aliança decisiva entre militares e o sempre influente setor agrícola, sem conexão com forças progressistas urbanas.

Menos de um mês depois, a troca de poder no Brasil foi ao contrário. A elite do café perdeu o poder para setores exportadores e industriais e um golpe pôs Getúlio Vargas no Palácio do Catete.

A Argentina das commodities e dos golpistas sofreu o impacto de mais uma Guerra Mundial. Em 1946, Juan Domingo Perón foi eleito. Também oriundo da caserna, ele buscou referências no fascismo de Mussolini. Mas é difícil dizer que fez um governo fascista.

O presidente adotou uma política econômica nacionalista que aproveitou a alta das reservas cambiais e o populismo. A figura da segunda mulher dele, Evita, ganhou contornos de santa. Começava assim o peronismo, movimento de massas e força política predominante.

Em setembro de 1955, Perón foi deposto pelo general Eduardo Lonardi, que, por sua vez, acabou derrubado pelo tenente-general Pedro Aramburu.

Em 1958, um civil foi eleito. Como Juscelino no Brasil, Arturo Frondizi desenvolveu a indústria automobilística e investiu em estradas e hidrelétricas, além da exploração de petróleo. Ele enfrentou seis tentativas de golpe e caiu em março de 1962. Dois anos depois, em outro março, o brasileiro João Goulart era derrubado - também pelos militares.

Juramento do general Jorge Videla ao assumir em 1976 a presidência na Argentina durante a ditadura militar naquele país Foto: EFE / Prensa Latina

Perón voltou em 1973. Morreu menos de um ano depois da posse. Sua terceira mulher, a vice Isabelita, uma ex-dançarina, assumiu só para esquentar a cadeira para os generais, que dariam mais um golpe nove anos após a ruptura feita pelos militares brasileiros.

Durante a ditadura, entre 1976 e 1983, a Argentina ganhou uma Copa do Mundo e o regime fez uma guerra contra o Reino Unido, implantou uma máquina repressiva que resultou em 30 mil mortos ou desaparecidos políticos e criou um caos financeiro. Ao menos o sistema de ensino de Sarmiento continuava preservado.

Numa onda recente de protestos, em 2001, os argentinos gritaram “que se vayan todos” - “fora todos (os políticos)”. As batidas de panela resultaram em cinco presidentes em menos de duas semanas. Na sequência, vieram os governos de Néstor Kirchner e sua mulher, Cristina, peronistas, e, aqui, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, além de seus opositores. Se ouviria muita batida de panela nos dois países.

Agora, o extremista Javier Milei, um outsider, vencedor da eleição primária na Argentina no último domingo, uma prévia da disputa presidencial, capturou o grito de ordem. Milei adota o mecanismo que Steve Bannon usou com Jair Bolsonaro em 2018. “O processo é o mesmo. Quando se pensa em Brasil e Argentina, só é preciso saber quem vai fazer algo primeiro”, diz Eleonora.

Isso quer dizer o seguinte: se o pior vencer, terá dificuldades para preencher os cargos da máquina do governo e o país dependerá de nomes de quem o poder econômico escolher para os ministérios. Aqui, o Centrão governou para Bolsonaro, ganhou dinheiro e segurou arroubos. A medida “peronista” do Auxílio Brasil, aprovado por todos os campos políticos, ajudou brasileiros na pandemia - e garantiu Bolsonaro no segundo turno. No mesmo período, Messi enfim venceu uma Copa. Os estragos provocados pelo governo Bolsonaro em todo o tecido social, econômico e político ainda estão sendo contabilizados, mas são muitos.

Na Argentina, ao menos os militares não voltam – quiçá surpresas sanitárias. É algo novo que um extremista com chances reais de poder venha sem a companhia de generais. Há um consenso sobre o passado da ditadura. “Esqueça, os militares não existem”, afirma Eleonora.

Cristina Kirchner e o presidente Lula em encontro em 2016 em São Paulo Foto: PAULO WHITAKER / REUTERS

Mas, além de disparar a metralhadora de olhos fechados, Milei tem o adicional de atacar o que sobrou do período de ouro: as escolas de Domingo Sarmiento.

O fim da educação gratuita não é bandeira só dele. É também da candidata de direita Patrícia Bullrich, ligada ao ex-presidente Mauricio Macri.

Há anos, Eleonora costuma ouvir de seus colegas pelo mundo a pergunta sobre o que ocorre na Argentina. Diante da eterna indagação, ela costuma ressaltar que os argentinos estão “mais uma vez” muito desiludidos. Eleonora prefere apresentar dúvidas que visões otimistas e fatalistas. Afinal, nas últimas décadas, brasileiros e argentinos vivem um tempo de decepção, mas também de democracia.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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