Em janeiro de 1957, o navio Almirante Custódio de Melo deixou o porto do Rio rumo a Port Said, na costa do Egito, com uma leva de 531 soldados e oficiais para uma missão de paz das Nações Unidas no Oriente Médio. No ano anterior, o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser nacionalizou o Canal de Suez. Forças de Israel, apoiadas pela França e pelo Reino Unido, invadiram a Península do Sinai, numa segunda guerra contemporânea entre árabes e judeus – a primeira foi na década anterior, quando houve a partilha da Palestina.
Os israelenses venceram a disputa contra os egípcios. Mas foram pressionados pelos americanos a devolver os territórios ocupados. Foi nesse contexto que o governo de Juscelino Kubitschek, a pedido da ONU, aprovou no Congresso o envio de tropas para ajudar num cessar-fogo na região.
A viagem marítima dos militares brasileiros durou 11 dias. De Port Said, no Mediterrâneo, o contingente entrou em vagões de trem para Rafah, no Sul da Faixa de Gaza, onde o Batalhão Expedicionário, conhecido por Batalhão Suez, montou um quartel-general.
O Exército havia retirado dos seus depósitos roupas e saboneteiras doadas, ainda nos anos 1940, pelos Estados Unidos, que não tinham sido aproveitadas na 2ª Guerra. “No deserto, aquela roupa feita para os pracinhas na Itália esquentava durante o dia e esfriava à noite”, lembra Wanderlei Braga, um dos primeiros soldados escalados para a missão de paz da ONU. “A gente tinha que aguentar um calor de quase 50 graus. Depois das 18 horas, a temperatura caía para zero.”
A Força de Emergência das Nações Unidas, UNEF, na sigla em inglês, contava constantemente com um total de seis mil homens, incluindo soldados e oficiais de 11 países.
A comunicação entre integrantes da missão internacional começou com troca de gentilezas e bebidas. Os brasileiros davam garrafas de cachaça aos canadenses, que, em troca, ofereciam uísque. “Muita gente levou caixa de Pitu escondida. Só uma manguaça para aguentar aquele calor e aquele frio insuportável”, lembra Braga. Era uma situação de guerra sem abrir fogo, tensa e dramática. “Ninguém podia atirar. Era missão de paz.”
De boinas azuis, os brasileiros abriram uma vala para marcar uma linha divisória de 100 quilômetros de extensão por dez de largura. Eles ficaram responsáveis pela vigilância e controle de um trecho de 32 quilômetros.
Os soldados e oficiais viviam no Acampamento Brasil, formado por barracas de lona com paredes de meio metro de tijolos. Além das mudanças repentinas de temperatura, a tropa tinha de enfrentar escorpiões e aranhas nas roupas e botas. O tracoma, doença provocada pela areia nos olhos, era outro drama. A cada ano, o contingente brasileiro era trocado.
As intempéries eram constantes. No dia 27 de março de 1958, o soldado pernambucano Miguel Brás da Silva, de 21 anos, sofreu um acidente. Um fogão a gás explodiu e ele sofreu queimadura. Morreu cinco dias depois no hospital civil de Port Said.
A pobreza extrema dos palestinos tornava mais complexa a atuação dos boinas azuis. Furtos de comida e mesmo de armas eram constantes. Famílias palestinas estavam sempre em busca de alimentos nas lixeiras do acampamento dos brasileiros.
Ao colaborar no esforço de paz conflagrada por egípcios e israelenses, Juscelino garantiu uma experiência internacional ao Exército no pós-guerra e marcou posição na política externa.
Guerras dos Seis Dias
No começo de junho de 1967, dez anos depois do início da missão e de 12 contingentes, o Exército brasileiro recebeu ultimato do governo egípcio para deixar a linha de divisa. Nasser articulava com vizinhos árabes uma nova investida contra Israel. Não havia logística para a retirada da tropa de uma hora para outra.
Às 9 horas da manhã do dia 5, o Batalhão Suez foi surpreendido por um bombardeio aéreo de Israel no campo de pouso de El Rarish. Era o início da Guerra dos Seis Dias, tempo que durou o conflito. Às 17 horas, soldados israelenses entraram em Rafah com metralhadoras. O enfermeiro gaúcho Carlos Adalberto Ilha de Macedo, de 20 anos, saía da trincheira onde estava quando recebeu um tiro no pescoço e morreu. Outros cinco brasileiros ficaram feridos.
Os israelenses teriam confundido os brasileiros com guerrilheiros palestinos e metralharam o Acampamento Brasil. Mas, mesmo após perceber a identidade correta dos homens de boinas azuis, eles tomaram as armas e pilharam soldados e oficiais. Na volta para casa, os brasileiros do Batalhão Suez tiveram que atravessar um deserto repleto de carcaças de caminhões, destroços de aviões, crianças e mulheres mutiladas, corpos espalhados na areia.
A força de paz da ONU encerrou seu trabalho no final dos anos 1960. Os oficiais brasileiros, no entanto, tinham muito a comemorar a experiência de uma década no Sinai. As imagens do Exército no outro lado do mundo valorizaram uma geração militar do pós-guerra, depois do feito único dos veteranos da FEB na Itália.
Ainda durante a missão de paz no Oriente Médio, um golpe instaurou uma ditadura no Brasil. Dois boinas azuis tiveram mais tarde, nos anos 1970, destaque no curso do regime militar, mas em lados diferentes. Um deles foi o capitão Carlos Lamarca, integrante do contingente de 1962, entrou para a luta armada e acabou fuzilado pelo Exército no sertão da Bahia. O outro, o general Antônio Bandeira, comandante no Sinai, liderou uma operação de combate à Guerrilha do Araguaia, no Pará.
Ao longo do tempo, a História dos brasileiros das missões de paz no Oriente Médio foi praticamente esquecida. Agora mesmo, o novo capítulo da guerra entre árabes e israelenses, aberto com o ataque do Hamas a assentamentos judeus, no dia 7 de outubro, expôs o desconhecimento no assunto até de políticos que recebem cotas para pagar uma assessoria de auxílio em temas complexos.
Nas redes sociais, o senador Sergio Moro (União-PR) escreveu, no último dia 15, que o “Brasil não tem relevância internacional suficiente para fazer qualquer diferença na guerra”. “A crise serve apenas para Lula exercitar a sua megalomania diplomática e para revelar o quanto a ideologia comprometeu a capacidade de parte da política brasileira de condenar atos terroristas”, disse.
Três dias depois, o Brasil recebeu apoio de 12 países, no Conselho de Segurança da ONU, a favor de uma resolução que condenava o Hamas e propunha uma pausa dos ataques de Israel a Gaza. Rússia e Reino Unidos se abstiveram e apenas os Estados Unidos votaram contra — tinham poder de veto.
Moro desconhece ou quis ignorar a tradição diplomática brasileira de tentar acordos de paz na ONU - e a posição de neutralidade do Itamaraty, que sempre dispensou a verborragia. Isso está longe de ser algo que começou no atual governo. Talvez um senador não precisa mesmo saber detalhes do passado da política externa e das Forças Armadas. Mas sua assessoria ganha para evitar que o velho complexo de inferioridade nacional jogue no lixo, por exemplo, a História de mais de seis mil soldados e oficiais brasileiros que foram para o deserto. A atuação deles ainda precisa ser estudada.
Na estratégia de disparar a metralhadora contra o o Palácio do Planalto, o ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro personalizou um país que pouco se importa com sua memória — e que agora é engolfado, como nações ainda mais desenvolvidas, pelas narrativas produzidas pela polarização, pelas redes sociais, pela mesquinharia política. Também não está preocupado em garantir um mínimo de espaço nos fóruns diplomáticos internacionais e, consequentemente, comerciais e econômicos.
Os boinas azuis brasileiros podem contar sobre adultos e crianças desarmados com fome, sede e medo em um conflito. É o lado que sempre precisou de socorro. Agora, na guerra atual, mais de 8.500 civis foram mortos, sendo sete mil palestinos por forças do primeiro-ministro Benjamim Netanyahu e 1.400 israelenses pelo Hamas. Mulheres e pequenos são a maioria dos assassinados.