À margem da História

Opinião|Morte de preso na cadeia serve para alimentar a vaidade do tribunal


No País, somente os executores de um crime político são investigados e condenados, embora os mandantes sejam conhecidos e estejam por aí, livres

Por Leonencio Nossa

É uma tradição no interior do Brasil. Quase sempre o executor de um crime senta sozinho no banco dos réus. O autor intelectual costuma ser uma figura invisível, por quem pairam dúvidas, uma espécie de lenda, símbolo da lei do mais forte, que tudo pode, integrante do círculo dos que não devem ser condenados, sob o risco de turbulência.

Limitar ao cabra, ao jagunço, ao pistoleiro a responsabilidade de um crime é uma prática cômoda na concertação do jogo político de um pequeno reduto. A polícia diz à família da vítima que quem apontou o gatilho está preso. Na sequência, a Justiça afirma que o matador foi condenado. Por fim, o carcereiro diz que na sua cadeia não há privilégios. Todos repetem que se fez Justiça. Então, não é preciso ir à casa do chefete local, colocar algema no sujeito e levá-lo para o tribunal.

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Em parte dos casos, os investigadores podem não ter meios para concluir um inquérito, não conseguem chegar de fato ao mandante. Quem mata, porém, tem pólvora na mão, erra na fuga, deixa provas no caminho. Torna-se alvo principal e único de uma investigação quando não interessa revelar quem mandou matar. Diante do delegado, o executor não sabe nem mesmo quem foi o autor do crime, pois negociou com um intermediário.

A solução de um crime político torna-se ainda mais complicada quando o mandante na verdade é um consórcio. É assim especialmente nos assassinatos no campo. Um grupo de grileiros se reúne, aponta qual liderança de pequenos agricultores é um obstáculo às suas pretensões por determinada terra, dá a sentença de morte e, a partir daí, entra em cena uma cadeia de criminosos. O autor intelectual de uma invasão de uma terra indígena ou de uma área ocupada há anos por pequenos camponeses costuma ser uma névoa, um vulto. O grileiro nunca apareceu no lugar. Só se movimentou por meio de telefonemas e de uma rede de contatos que inclui advogados, agrimensores, funcionários de cartórios e servidores públicos do município.

Os mandantes de crimes dificilmente vão parar na prisão Foto: CONSTANÇA REZENDE/ESTADÃO
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Os pistoleiros devem pagar pelos seus atos, mas a punição deles não significa que o caso está solucionado. Pelo contrário. Deixar solto um autor intelectual e manter sob cárcere quem recebeu a ordem traz um sentimento de injustiça. Se prendeu pessoas com intuito apenas de dar uma satisfação à família e à comunidade e, assim, criar a ideia de que a Justiça fez seu papel. Mas a tradição de denúncias que não apontam o mandante tornou a impunidade uma marca mesmo para definir o assassinato político.

O senhor juiz posará esguio no papel de homem da lei e da ordem, com peito estufado pelo dever cumprido. A comunidade onde o crime ocorreu ficará aliviada pelo fato de alguém estar cumprindo pena, não necessariamente o autor intelectual do crime – pois, como o mandante é uma figura popular, não haverá tumultos e conturbações no lugar: a Justiça deixou o sujeito quieto – mas todo mundo sabe que foi ele ou eles, muita gente viu. Uma câmera de segurança estava ligada no poste da esquina quando o autor intelectual orientou seus aliados a cometerem o crime. Tudo foi registrado, e agora está nas redes sociais.

Dias antes, um dos mandantes chegou a dizer que era para os seus simpatizantes não perderem a fé. Haveria uma solução. Outro mandante, o maior deles, falou frases de ameaças, que foram repetidas pelos pistoleiros no dia do crime. Os filhos do grande chefe, que parece ter integrado o consórcio, também se movimentaram, usaram suas redes de conversas no município para convocar os executores. Também andam livres nas ruas. Um delegado muito ligado ao consórcio do crime viajou no dia do atentado para a cidade vizinha, mas está enrolado até o pescoço. Todos, no entanto, seguem a vida, como se nada tivesse ocorrido.

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Foi o caso, no entanto, que um homem morreu na prisão. Tinha problemas de saúde, os carcereiros sabiam disso. A Justiça foi mesmo dura, implacável. É assim que tem que ser, dizem alguns. A morte do preso não pode ser vista como violação de direitos humanos, pois o sujeito estava do lado errado da História, afirmam outros.

Os autos do processo permitem que as pessoas da cidade voltem a lembrar com raiva das imagens do crime. Está tudo lá. E o tudo lá tem um único culpado. O morto foi o executor, o intermediário e o mandante do crime. Não tem ninguém acima dele na cadeia de comando. Por isso, sua memória responderá pelos atos do condenado, que precisa estar preso na outra dimensão.

Passam-se os dias, vem o esquecimento. O crime foi respondido com o rigor da morte. A Justiça cumpriu seu papel. Todos demonstram estar aliviados, compensados, no fundo felizes. O juiz continuará com o peito estufado. Foi para isso que todo o processo serviu. Um magistrado dará aquele respiro longo, olhará com altivez o infinito e irá se considerar a personalização do bem. Quem sabe seus amigos na grande cidade vão ler uma notinha de jornal sobre seu feito de levar para o xadrez o Joãozão, o Grandalhão, o Vicentão, o Manuelzão – a cidade e a política estão limpas.

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Esquecer a autoria intelectual de um crime é uma realidade apenas dos municípios do interior mais distante das metrópoles, onde o Poder Judiciário foca somente no executor. Afinal, nunca está claro que o mandante mandou praticar o crime, mesmo quando o radialista da emissora local divulga o caso ao vivo, passo a passo. Ou então faz uma entrevista com uma testemunha. O jornalista, então, que responda à Justiça pelas declarações sem provas do entrevistado. “Teje preso!”

Os homens da lei investigam, processam e julgam, mas até onde é possível. A propósito, um processo que não mostra o mandante é perspectiva de poder.

É uma tradição no interior do Brasil. Quase sempre o executor de um crime senta sozinho no banco dos réus. O autor intelectual costuma ser uma figura invisível, por quem pairam dúvidas, uma espécie de lenda, símbolo da lei do mais forte, que tudo pode, integrante do círculo dos que não devem ser condenados, sob o risco de turbulência.

Limitar ao cabra, ao jagunço, ao pistoleiro a responsabilidade de um crime é uma prática cômoda na concertação do jogo político de um pequeno reduto. A polícia diz à família da vítima que quem apontou o gatilho está preso. Na sequência, a Justiça afirma que o matador foi condenado. Por fim, o carcereiro diz que na sua cadeia não há privilégios. Todos repetem que se fez Justiça. Então, não é preciso ir à casa do chefete local, colocar algema no sujeito e levá-lo para o tribunal.

Em parte dos casos, os investigadores podem não ter meios para concluir um inquérito, não conseguem chegar de fato ao mandante. Quem mata, porém, tem pólvora na mão, erra na fuga, deixa provas no caminho. Torna-se alvo principal e único de uma investigação quando não interessa revelar quem mandou matar. Diante do delegado, o executor não sabe nem mesmo quem foi o autor do crime, pois negociou com um intermediário.

A solução de um crime político torna-se ainda mais complicada quando o mandante na verdade é um consórcio. É assim especialmente nos assassinatos no campo. Um grupo de grileiros se reúne, aponta qual liderança de pequenos agricultores é um obstáculo às suas pretensões por determinada terra, dá a sentença de morte e, a partir daí, entra em cena uma cadeia de criminosos. O autor intelectual de uma invasão de uma terra indígena ou de uma área ocupada há anos por pequenos camponeses costuma ser uma névoa, um vulto. O grileiro nunca apareceu no lugar. Só se movimentou por meio de telefonemas e de uma rede de contatos que inclui advogados, agrimensores, funcionários de cartórios e servidores públicos do município.

Os mandantes de crimes dificilmente vão parar na prisão Foto: CONSTANÇA REZENDE/ESTADÃO

Os pistoleiros devem pagar pelos seus atos, mas a punição deles não significa que o caso está solucionado. Pelo contrário. Deixar solto um autor intelectual e manter sob cárcere quem recebeu a ordem traz um sentimento de injustiça. Se prendeu pessoas com intuito apenas de dar uma satisfação à família e à comunidade e, assim, criar a ideia de que a Justiça fez seu papel. Mas a tradição de denúncias que não apontam o mandante tornou a impunidade uma marca mesmo para definir o assassinato político.

O senhor juiz posará esguio no papel de homem da lei e da ordem, com peito estufado pelo dever cumprido. A comunidade onde o crime ocorreu ficará aliviada pelo fato de alguém estar cumprindo pena, não necessariamente o autor intelectual do crime – pois, como o mandante é uma figura popular, não haverá tumultos e conturbações no lugar: a Justiça deixou o sujeito quieto – mas todo mundo sabe que foi ele ou eles, muita gente viu. Uma câmera de segurança estava ligada no poste da esquina quando o autor intelectual orientou seus aliados a cometerem o crime. Tudo foi registrado, e agora está nas redes sociais.

Dias antes, um dos mandantes chegou a dizer que era para os seus simpatizantes não perderem a fé. Haveria uma solução. Outro mandante, o maior deles, falou frases de ameaças, que foram repetidas pelos pistoleiros no dia do crime. Os filhos do grande chefe, que parece ter integrado o consórcio, também se movimentaram, usaram suas redes de conversas no município para convocar os executores. Também andam livres nas ruas. Um delegado muito ligado ao consórcio do crime viajou no dia do atentado para a cidade vizinha, mas está enrolado até o pescoço. Todos, no entanto, seguem a vida, como se nada tivesse ocorrido.

Foi o caso, no entanto, que um homem morreu na prisão. Tinha problemas de saúde, os carcereiros sabiam disso. A Justiça foi mesmo dura, implacável. É assim que tem que ser, dizem alguns. A morte do preso não pode ser vista como violação de direitos humanos, pois o sujeito estava do lado errado da História, afirmam outros.

Os autos do processo permitem que as pessoas da cidade voltem a lembrar com raiva das imagens do crime. Está tudo lá. E o tudo lá tem um único culpado. O morto foi o executor, o intermediário e o mandante do crime. Não tem ninguém acima dele na cadeia de comando. Por isso, sua memória responderá pelos atos do condenado, que precisa estar preso na outra dimensão.

Passam-se os dias, vem o esquecimento. O crime foi respondido com o rigor da morte. A Justiça cumpriu seu papel. Todos demonstram estar aliviados, compensados, no fundo felizes. O juiz continuará com o peito estufado. Foi para isso que todo o processo serviu. Um magistrado dará aquele respiro longo, olhará com altivez o infinito e irá se considerar a personalização do bem. Quem sabe seus amigos na grande cidade vão ler uma notinha de jornal sobre seu feito de levar para o xadrez o Joãozão, o Grandalhão, o Vicentão, o Manuelzão – a cidade e a política estão limpas.

Esquecer a autoria intelectual de um crime é uma realidade apenas dos municípios do interior mais distante das metrópoles, onde o Poder Judiciário foca somente no executor. Afinal, nunca está claro que o mandante mandou praticar o crime, mesmo quando o radialista da emissora local divulga o caso ao vivo, passo a passo. Ou então faz uma entrevista com uma testemunha. O jornalista, então, que responda à Justiça pelas declarações sem provas do entrevistado. “Teje preso!”

Os homens da lei investigam, processam e julgam, mas até onde é possível. A propósito, um processo que não mostra o mandante é perspectiva de poder.

É uma tradição no interior do Brasil. Quase sempre o executor de um crime senta sozinho no banco dos réus. O autor intelectual costuma ser uma figura invisível, por quem pairam dúvidas, uma espécie de lenda, símbolo da lei do mais forte, que tudo pode, integrante do círculo dos que não devem ser condenados, sob o risco de turbulência.

Limitar ao cabra, ao jagunço, ao pistoleiro a responsabilidade de um crime é uma prática cômoda na concertação do jogo político de um pequeno reduto. A polícia diz à família da vítima que quem apontou o gatilho está preso. Na sequência, a Justiça afirma que o matador foi condenado. Por fim, o carcereiro diz que na sua cadeia não há privilégios. Todos repetem que se fez Justiça. Então, não é preciso ir à casa do chefete local, colocar algema no sujeito e levá-lo para o tribunal.

Em parte dos casos, os investigadores podem não ter meios para concluir um inquérito, não conseguem chegar de fato ao mandante. Quem mata, porém, tem pólvora na mão, erra na fuga, deixa provas no caminho. Torna-se alvo principal e único de uma investigação quando não interessa revelar quem mandou matar. Diante do delegado, o executor não sabe nem mesmo quem foi o autor do crime, pois negociou com um intermediário.

A solução de um crime político torna-se ainda mais complicada quando o mandante na verdade é um consórcio. É assim especialmente nos assassinatos no campo. Um grupo de grileiros se reúne, aponta qual liderança de pequenos agricultores é um obstáculo às suas pretensões por determinada terra, dá a sentença de morte e, a partir daí, entra em cena uma cadeia de criminosos. O autor intelectual de uma invasão de uma terra indígena ou de uma área ocupada há anos por pequenos camponeses costuma ser uma névoa, um vulto. O grileiro nunca apareceu no lugar. Só se movimentou por meio de telefonemas e de uma rede de contatos que inclui advogados, agrimensores, funcionários de cartórios e servidores públicos do município.

Os mandantes de crimes dificilmente vão parar na prisão Foto: CONSTANÇA REZENDE/ESTADÃO

Os pistoleiros devem pagar pelos seus atos, mas a punição deles não significa que o caso está solucionado. Pelo contrário. Deixar solto um autor intelectual e manter sob cárcere quem recebeu a ordem traz um sentimento de injustiça. Se prendeu pessoas com intuito apenas de dar uma satisfação à família e à comunidade e, assim, criar a ideia de que a Justiça fez seu papel. Mas a tradição de denúncias que não apontam o mandante tornou a impunidade uma marca mesmo para definir o assassinato político.

O senhor juiz posará esguio no papel de homem da lei e da ordem, com peito estufado pelo dever cumprido. A comunidade onde o crime ocorreu ficará aliviada pelo fato de alguém estar cumprindo pena, não necessariamente o autor intelectual do crime – pois, como o mandante é uma figura popular, não haverá tumultos e conturbações no lugar: a Justiça deixou o sujeito quieto – mas todo mundo sabe que foi ele ou eles, muita gente viu. Uma câmera de segurança estava ligada no poste da esquina quando o autor intelectual orientou seus aliados a cometerem o crime. Tudo foi registrado, e agora está nas redes sociais.

Dias antes, um dos mandantes chegou a dizer que era para os seus simpatizantes não perderem a fé. Haveria uma solução. Outro mandante, o maior deles, falou frases de ameaças, que foram repetidas pelos pistoleiros no dia do crime. Os filhos do grande chefe, que parece ter integrado o consórcio, também se movimentaram, usaram suas redes de conversas no município para convocar os executores. Também andam livres nas ruas. Um delegado muito ligado ao consórcio do crime viajou no dia do atentado para a cidade vizinha, mas está enrolado até o pescoço. Todos, no entanto, seguem a vida, como se nada tivesse ocorrido.

Foi o caso, no entanto, que um homem morreu na prisão. Tinha problemas de saúde, os carcereiros sabiam disso. A Justiça foi mesmo dura, implacável. É assim que tem que ser, dizem alguns. A morte do preso não pode ser vista como violação de direitos humanos, pois o sujeito estava do lado errado da História, afirmam outros.

Os autos do processo permitem que as pessoas da cidade voltem a lembrar com raiva das imagens do crime. Está tudo lá. E o tudo lá tem um único culpado. O morto foi o executor, o intermediário e o mandante do crime. Não tem ninguém acima dele na cadeia de comando. Por isso, sua memória responderá pelos atos do condenado, que precisa estar preso na outra dimensão.

Passam-se os dias, vem o esquecimento. O crime foi respondido com o rigor da morte. A Justiça cumpriu seu papel. Todos demonstram estar aliviados, compensados, no fundo felizes. O juiz continuará com o peito estufado. Foi para isso que todo o processo serviu. Um magistrado dará aquele respiro longo, olhará com altivez o infinito e irá se considerar a personalização do bem. Quem sabe seus amigos na grande cidade vão ler uma notinha de jornal sobre seu feito de levar para o xadrez o Joãozão, o Grandalhão, o Vicentão, o Manuelzão – a cidade e a política estão limpas.

Esquecer a autoria intelectual de um crime é uma realidade apenas dos municípios do interior mais distante das metrópoles, onde o Poder Judiciário foca somente no executor. Afinal, nunca está claro que o mandante mandou praticar o crime, mesmo quando o radialista da emissora local divulga o caso ao vivo, passo a passo. Ou então faz uma entrevista com uma testemunha. O jornalista, então, que responda à Justiça pelas declarações sem provas do entrevistado. “Teje preso!”

Os homens da lei investigam, processam e julgam, mas até onde é possível. A propósito, um processo que não mostra o mandante é perspectiva de poder.

É uma tradição no interior do Brasil. Quase sempre o executor de um crime senta sozinho no banco dos réus. O autor intelectual costuma ser uma figura invisível, por quem pairam dúvidas, uma espécie de lenda, símbolo da lei do mais forte, que tudo pode, integrante do círculo dos que não devem ser condenados, sob o risco de turbulência.

Limitar ao cabra, ao jagunço, ao pistoleiro a responsabilidade de um crime é uma prática cômoda na concertação do jogo político de um pequeno reduto. A polícia diz à família da vítima que quem apontou o gatilho está preso. Na sequência, a Justiça afirma que o matador foi condenado. Por fim, o carcereiro diz que na sua cadeia não há privilégios. Todos repetem que se fez Justiça. Então, não é preciso ir à casa do chefete local, colocar algema no sujeito e levá-lo para o tribunal.

Em parte dos casos, os investigadores podem não ter meios para concluir um inquérito, não conseguem chegar de fato ao mandante. Quem mata, porém, tem pólvora na mão, erra na fuga, deixa provas no caminho. Torna-se alvo principal e único de uma investigação quando não interessa revelar quem mandou matar. Diante do delegado, o executor não sabe nem mesmo quem foi o autor do crime, pois negociou com um intermediário.

A solução de um crime político torna-se ainda mais complicada quando o mandante na verdade é um consórcio. É assim especialmente nos assassinatos no campo. Um grupo de grileiros se reúne, aponta qual liderança de pequenos agricultores é um obstáculo às suas pretensões por determinada terra, dá a sentença de morte e, a partir daí, entra em cena uma cadeia de criminosos. O autor intelectual de uma invasão de uma terra indígena ou de uma área ocupada há anos por pequenos camponeses costuma ser uma névoa, um vulto. O grileiro nunca apareceu no lugar. Só se movimentou por meio de telefonemas e de uma rede de contatos que inclui advogados, agrimensores, funcionários de cartórios e servidores públicos do município.

Os mandantes de crimes dificilmente vão parar na prisão Foto: CONSTANÇA REZENDE/ESTADÃO

Os pistoleiros devem pagar pelos seus atos, mas a punição deles não significa que o caso está solucionado. Pelo contrário. Deixar solto um autor intelectual e manter sob cárcere quem recebeu a ordem traz um sentimento de injustiça. Se prendeu pessoas com intuito apenas de dar uma satisfação à família e à comunidade e, assim, criar a ideia de que a Justiça fez seu papel. Mas a tradição de denúncias que não apontam o mandante tornou a impunidade uma marca mesmo para definir o assassinato político.

O senhor juiz posará esguio no papel de homem da lei e da ordem, com peito estufado pelo dever cumprido. A comunidade onde o crime ocorreu ficará aliviada pelo fato de alguém estar cumprindo pena, não necessariamente o autor intelectual do crime – pois, como o mandante é uma figura popular, não haverá tumultos e conturbações no lugar: a Justiça deixou o sujeito quieto – mas todo mundo sabe que foi ele ou eles, muita gente viu. Uma câmera de segurança estava ligada no poste da esquina quando o autor intelectual orientou seus aliados a cometerem o crime. Tudo foi registrado, e agora está nas redes sociais.

Dias antes, um dos mandantes chegou a dizer que era para os seus simpatizantes não perderem a fé. Haveria uma solução. Outro mandante, o maior deles, falou frases de ameaças, que foram repetidas pelos pistoleiros no dia do crime. Os filhos do grande chefe, que parece ter integrado o consórcio, também se movimentaram, usaram suas redes de conversas no município para convocar os executores. Também andam livres nas ruas. Um delegado muito ligado ao consórcio do crime viajou no dia do atentado para a cidade vizinha, mas está enrolado até o pescoço. Todos, no entanto, seguem a vida, como se nada tivesse ocorrido.

Foi o caso, no entanto, que um homem morreu na prisão. Tinha problemas de saúde, os carcereiros sabiam disso. A Justiça foi mesmo dura, implacável. É assim que tem que ser, dizem alguns. A morte do preso não pode ser vista como violação de direitos humanos, pois o sujeito estava do lado errado da História, afirmam outros.

Os autos do processo permitem que as pessoas da cidade voltem a lembrar com raiva das imagens do crime. Está tudo lá. E o tudo lá tem um único culpado. O morto foi o executor, o intermediário e o mandante do crime. Não tem ninguém acima dele na cadeia de comando. Por isso, sua memória responderá pelos atos do condenado, que precisa estar preso na outra dimensão.

Passam-se os dias, vem o esquecimento. O crime foi respondido com o rigor da morte. A Justiça cumpriu seu papel. Todos demonstram estar aliviados, compensados, no fundo felizes. O juiz continuará com o peito estufado. Foi para isso que todo o processo serviu. Um magistrado dará aquele respiro longo, olhará com altivez o infinito e irá se considerar a personalização do bem. Quem sabe seus amigos na grande cidade vão ler uma notinha de jornal sobre seu feito de levar para o xadrez o Joãozão, o Grandalhão, o Vicentão, o Manuelzão – a cidade e a política estão limpas.

Esquecer a autoria intelectual de um crime é uma realidade apenas dos municípios do interior mais distante das metrópoles, onde o Poder Judiciário foca somente no executor. Afinal, nunca está claro que o mandante mandou praticar o crime, mesmo quando o radialista da emissora local divulga o caso ao vivo, passo a passo. Ou então faz uma entrevista com uma testemunha. O jornalista, então, que responda à Justiça pelas declarações sem provas do entrevistado. “Teje preso!”

Os homens da lei investigam, processam e julgam, mas até onde é possível. A propósito, um processo que não mostra o mandante é perspectiva de poder.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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