À margem da História

Opinião|Nísia Trindade enfrenta os desafios do Sertão e as demandas do Centrão


Em sua tese de doutorado, a ministra da Saúde estudou as visões de Euclides da Cunha, do Marechal Rondon e dos sanitaristas sobre o Brasil. A barbárie descrita por eles podia estar não apenas num lugar distante, mas na badalada Rua do Ouvidor, no Rio, a antiga capital

Por Leonencio Nossa

O velho lugar-comum de que Brasília não conhece o Brasil não se aplica à ministra da Saúde. Nísia Trindade defendeu tese de doutorado em sociologia e escreveu artigos justamente sobre aquele lugar que, até pouco tempo, chamavam de Brasil Profundo, ou sertão.

É o Brasil que começa onde o olhar de governos e da opinião pública muitas vezes termina. Um lugar que pode ser a rodoviária de Brasília, onde migrantes chegam a todo momento, as cidades do entorno da capital, os pequenos municípios de Minas e Goiás, a Caatinga, o Pantanal, uma comunidade ribeirinha da Amazônia.

Sempre foi um desafio delimitar o sertão, espaço físico ou mítico. Atualmente, sertão para alguns se resume ao semiárido nordestino, região de dramas como a seca. Historicamente era o lugar inóspito, distante dos centros das cidades. Com o tempo, firmou-se a ideia que o sertão não era necessariamente um espaço geográfico, mas talvez uma condição, uma realidade brasileira, um recorte social ou de poder.

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A Ministra da Saúde, Nísia Trindade, durante reunião com a diretoria da Sociedade Brasileira de Pediatria, em junho Foto: Julia Prado/MS

Em sua tese que virou o livro “Um sertão chamado Brasil: intelectuais, sertanejos e imaginação social”, Nísia Trindade diagnostica visões sobre o interior do País por parte de personalidades históricas que acabaram influenciando o olhar do poder político e da academia.

Uma dessas personalidades é o escritor Euclides da Cunha, autor de Os sertões, um livro que desafia o tempo e, mesmo com conceitos ultrapassados de geografia e antropologia e preconceitos de época, permanece como o clássico nacional por excelência. É uma obra de ambiguidades intensas, que, de forma genial, cravou que “o sertanejo é antes de tudo um forte”, frase sublime que pôs abaixo teorias estapafúrdias de raça, que inclusive ganharam espaço no livro. É a imagem de Hércules-Quasímodo, da obra do francês Victor Hugo, analisa Nísia, de “aspecto dominador de um titã acobreado e potente”, um “desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”.

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No artigo “Missões civilizatórias da República e interpretação do Brasil”, derivado da tese, Nísia relata que, em certo momento da vida, Euclides considerou que o sertão, como uma metáfora da barbárie, podia ser inclusive a Rua do Ouvidor, reduto das elites cultural e política do Rio, capital da República, no começo do século 20. Ela descreve que a obra do escritor apresenta o dualismo sertão-litoral em duas faces. “Numa delas, o polo negativo é representado pelo sertão, identificado com a resistência ao moderno e à civilização. Na outra, o sinal se inverte: o litoral é apresentado como sinônimo de inautenticidade, enquanto antítese da nação.”

A tese foi defendida há 26 anos. De lá para cá, Nísia viveu experiências acadêmicas fascinantes, entre elas o comando da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, sendo sua primeira presidente. Chefiou a instituição no tempo da pandemia e da política contra a ciência e a saúde pública de Jair Bolsonaro.

Agora, em Brasília, a ministra do governo Lula pode sentir, por dentro, que o sertão da violência costuma se apresentar como poder político. A cobiça do Centrão pela pasta da Saúde mostra a barbárie do ambiente em que vale a lei do mais forte e do mais esperto, em que a ciência deixa de ter importância diante da fúria do patrimonialismo e do interesse político.

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Outra figura que a doutora pesquisou foi o Marechal Cândido Mariano Rondon, aquele descendente de bororos que chefiou expedições pelo interior para instalar linhas de telégrafos. Ao final da empreitada, a tecnologia estava defasada. Mas, num caso de reinvenção de imagem pública, ele já tinha se tornado conhecido pela relação com as comunidades indígenas e pela criação do SPI, o primeiro órgão indigenista do País.

Por muito tempo, os militares estiveram associados à causa indígena. O sertanismo tem raízes na caserna. É coisa de pouco tempo o mergulho da oficialidade brasileira em teorias conspiratórias na Amazônia e na política anti-indígena. Aqui uma reportagem de Vinícius Valfré sobre essa mudança de rota:

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Muito se critica Rondon pela visão do Estado em relação aos indígenas moldada por ele. A sua conduta dura com subordinados chega a ser analisada por Nísia. O sertanista deu início a uma política de miscigenação e de contato forçados que, oficialmente, foi revista nos anos 1990 por Sydney Possuelo. A favor de Rondon está, sobretudo, o trabalho que ajudou a inverter a lógica brutal de que que o Estado tinha por missão no interior a matança.

A frase “Morrer se preciso for, matar nunca”, do marechal, pode ser vista como um divisor de águas num Brasil em que, ainda hoje, setores do Poder Público insistem em não reconhecer o indígena como um ser associado à terra. Um exemplo disso é o debate do Marco Temporal, uma teoria de que a Constituição só reconheceria o direito de posse daqueles que estavam nela no dia da promulgação da Carta. Essa visão surgiu numa votação no Supremo Tribunal Federal, foi posta na praça pela Advocacia Geral da União no governo de Dilma Rousseff e ganhou novas tintas na gestão de Michel Temer. Agora, a Corte pode desarmar a bomba que ela e o PT deixaram de presente para os indígenas.

Nísia Trindade estudou em sua tese também os sanitaristas de Manguinhos, como Carlos Chagas, Belisário Penna, Astrogildo Machado, João Pedroso, Pacheco Leão e Adolpho Lutz. Eram pesquisadores que percorriam o Nordeste, a Amazônia e o Planalto Central, regiões do barbeiro, do beribéri, das crianças e dos adultos sem iodo, das condições insalubres e de pobreza. Tanto eles quanto os sertanistas podem ser vistos, de certa forma, como pontas de lança das grandes obras de ferrovia ou dos avanços da fronteira agrícola que atingiam as terras de povos tradicionais: adiantavam-se para evitar hecatombes.

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Na volta das viagens, os sanitaristas traziam cadernetas de relatos e propostas para a melhoria daquele Brasil, que era um “grande hospital”. É uma gente que, no fundo, apostava e aposta que o dinheiro público deveria e deve ser usado de acordo com critérios estabelecidos pela ciência. A propósito, uma série de reportagens do repórter Daniel Weterman mostra, a partir deste domingo, os efeitos da distribuição de recursos federais com regras apenas eleitoreiras no interior do País.

É importante entender visões de país tão dispares como a dos sanitaristas e a de um setor da política brasileira. Desde Jair Bolsonaro, o Congresso avança no orçamento do governo como nunca havia ocorrido nem mesmo na República que mandava Rondon para a Serra do Roncador. O orçamento secreto e a emenda Pix, obras que Bolsonaro deixou como modelo de contas públicas e país, têm por princípio a falta de transparência e a aplicação de recursos em troca de compra de votos.

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O próprio ministério de Nisia mostra essa realidade. Uma parte do orçamento da pasta foi capturada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, e seus aliados.

No cargo de ministra, ela pode incorporar de certa forma os personagens míticos que estudou no tempo de doutorado. E, como Euclides, Rondon e os sanitaristas, testemunhar um país que não reconhece o outro, as multidões necessitadas, um sertão que não é sertão, a disputa diária das narrativas de Brasil, as representações políticas dissimuladas, os agentes públicos que se apresentam como representantes de uma região, mas que defendem mesmo interesses de grupos de fora de seus Estados.

Mais que uma técnica oriunda de um centro de pesquisas em saúde pública, a doutora Nísia é especialista em Brasil. Sem vivência no mundo político de Brasília, entende, porém, do sertão habitado por figuras influentes e marcado por jogos de interesses. Como os velhos narradores, sertanistas e sanitaristas da Primeira República, ela mantém o foco nos dramas da saúde que afligem os brasileiros, sem ficar à espera do tempo de degola que os donos do poder e seus burocratas costumam impor aos que mantêm os pés e a alma no universo sertanejo.

O velho lugar-comum de que Brasília não conhece o Brasil não se aplica à ministra da Saúde. Nísia Trindade defendeu tese de doutorado em sociologia e escreveu artigos justamente sobre aquele lugar que, até pouco tempo, chamavam de Brasil Profundo, ou sertão.

É o Brasil que começa onde o olhar de governos e da opinião pública muitas vezes termina. Um lugar que pode ser a rodoviária de Brasília, onde migrantes chegam a todo momento, as cidades do entorno da capital, os pequenos municípios de Minas e Goiás, a Caatinga, o Pantanal, uma comunidade ribeirinha da Amazônia.

Sempre foi um desafio delimitar o sertão, espaço físico ou mítico. Atualmente, sertão para alguns se resume ao semiárido nordestino, região de dramas como a seca. Historicamente era o lugar inóspito, distante dos centros das cidades. Com o tempo, firmou-se a ideia que o sertão não era necessariamente um espaço geográfico, mas talvez uma condição, uma realidade brasileira, um recorte social ou de poder.

A Ministra da Saúde, Nísia Trindade, durante reunião com a diretoria da Sociedade Brasileira de Pediatria, em junho Foto: Julia Prado/MS

Em sua tese que virou o livro “Um sertão chamado Brasil: intelectuais, sertanejos e imaginação social”, Nísia Trindade diagnostica visões sobre o interior do País por parte de personalidades históricas que acabaram influenciando o olhar do poder político e da academia.

Uma dessas personalidades é o escritor Euclides da Cunha, autor de Os sertões, um livro que desafia o tempo e, mesmo com conceitos ultrapassados de geografia e antropologia e preconceitos de época, permanece como o clássico nacional por excelência. É uma obra de ambiguidades intensas, que, de forma genial, cravou que “o sertanejo é antes de tudo um forte”, frase sublime que pôs abaixo teorias estapafúrdias de raça, que inclusive ganharam espaço no livro. É a imagem de Hércules-Quasímodo, da obra do francês Victor Hugo, analisa Nísia, de “aspecto dominador de um titã acobreado e potente”, um “desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”.

No artigo “Missões civilizatórias da República e interpretação do Brasil”, derivado da tese, Nísia relata que, em certo momento da vida, Euclides considerou que o sertão, como uma metáfora da barbárie, podia ser inclusive a Rua do Ouvidor, reduto das elites cultural e política do Rio, capital da República, no começo do século 20. Ela descreve que a obra do escritor apresenta o dualismo sertão-litoral em duas faces. “Numa delas, o polo negativo é representado pelo sertão, identificado com a resistência ao moderno e à civilização. Na outra, o sinal se inverte: o litoral é apresentado como sinônimo de inautenticidade, enquanto antítese da nação.”

A tese foi defendida há 26 anos. De lá para cá, Nísia viveu experiências acadêmicas fascinantes, entre elas o comando da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, sendo sua primeira presidente. Chefiou a instituição no tempo da pandemia e da política contra a ciência e a saúde pública de Jair Bolsonaro.

Agora, em Brasília, a ministra do governo Lula pode sentir, por dentro, que o sertão da violência costuma se apresentar como poder político. A cobiça do Centrão pela pasta da Saúde mostra a barbárie do ambiente em que vale a lei do mais forte e do mais esperto, em que a ciência deixa de ter importância diante da fúria do patrimonialismo e do interesse político.

Outra figura que a doutora pesquisou foi o Marechal Cândido Mariano Rondon, aquele descendente de bororos que chefiou expedições pelo interior para instalar linhas de telégrafos. Ao final da empreitada, a tecnologia estava defasada. Mas, num caso de reinvenção de imagem pública, ele já tinha se tornado conhecido pela relação com as comunidades indígenas e pela criação do SPI, o primeiro órgão indigenista do País.

Por muito tempo, os militares estiveram associados à causa indígena. O sertanismo tem raízes na caserna. É coisa de pouco tempo o mergulho da oficialidade brasileira em teorias conspiratórias na Amazônia e na política anti-indígena. Aqui uma reportagem de Vinícius Valfré sobre essa mudança de rota:

Muito se critica Rondon pela visão do Estado em relação aos indígenas moldada por ele. A sua conduta dura com subordinados chega a ser analisada por Nísia. O sertanista deu início a uma política de miscigenação e de contato forçados que, oficialmente, foi revista nos anos 1990 por Sydney Possuelo. A favor de Rondon está, sobretudo, o trabalho que ajudou a inverter a lógica brutal de que que o Estado tinha por missão no interior a matança.

A frase “Morrer se preciso for, matar nunca”, do marechal, pode ser vista como um divisor de águas num Brasil em que, ainda hoje, setores do Poder Público insistem em não reconhecer o indígena como um ser associado à terra. Um exemplo disso é o debate do Marco Temporal, uma teoria de que a Constituição só reconheceria o direito de posse daqueles que estavam nela no dia da promulgação da Carta. Essa visão surgiu numa votação no Supremo Tribunal Federal, foi posta na praça pela Advocacia Geral da União no governo de Dilma Rousseff e ganhou novas tintas na gestão de Michel Temer. Agora, a Corte pode desarmar a bomba que ela e o PT deixaram de presente para os indígenas.

Nísia Trindade estudou em sua tese também os sanitaristas de Manguinhos, como Carlos Chagas, Belisário Penna, Astrogildo Machado, João Pedroso, Pacheco Leão e Adolpho Lutz. Eram pesquisadores que percorriam o Nordeste, a Amazônia e o Planalto Central, regiões do barbeiro, do beribéri, das crianças e dos adultos sem iodo, das condições insalubres e de pobreza. Tanto eles quanto os sertanistas podem ser vistos, de certa forma, como pontas de lança das grandes obras de ferrovia ou dos avanços da fronteira agrícola que atingiam as terras de povos tradicionais: adiantavam-se para evitar hecatombes.

Na volta das viagens, os sanitaristas traziam cadernetas de relatos e propostas para a melhoria daquele Brasil, que era um “grande hospital”. É uma gente que, no fundo, apostava e aposta que o dinheiro público deveria e deve ser usado de acordo com critérios estabelecidos pela ciência. A propósito, uma série de reportagens do repórter Daniel Weterman mostra, a partir deste domingo, os efeitos da distribuição de recursos federais com regras apenas eleitoreiras no interior do País.

É importante entender visões de país tão dispares como a dos sanitaristas e a de um setor da política brasileira. Desde Jair Bolsonaro, o Congresso avança no orçamento do governo como nunca havia ocorrido nem mesmo na República que mandava Rondon para a Serra do Roncador. O orçamento secreto e a emenda Pix, obras que Bolsonaro deixou como modelo de contas públicas e país, têm por princípio a falta de transparência e a aplicação de recursos em troca de compra de votos.

O próprio ministério de Nisia mostra essa realidade. Uma parte do orçamento da pasta foi capturada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, e seus aliados.

No cargo de ministra, ela pode incorporar de certa forma os personagens míticos que estudou no tempo de doutorado. E, como Euclides, Rondon e os sanitaristas, testemunhar um país que não reconhece o outro, as multidões necessitadas, um sertão que não é sertão, a disputa diária das narrativas de Brasil, as representações políticas dissimuladas, os agentes públicos que se apresentam como representantes de uma região, mas que defendem mesmo interesses de grupos de fora de seus Estados.

Mais que uma técnica oriunda de um centro de pesquisas em saúde pública, a doutora Nísia é especialista em Brasil. Sem vivência no mundo político de Brasília, entende, porém, do sertão habitado por figuras influentes e marcado por jogos de interesses. Como os velhos narradores, sertanistas e sanitaristas da Primeira República, ela mantém o foco nos dramas da saúde que afligem os brasileiros, sem ficar à espera do tempo de degola que os donos do poder e seus burocratas costumam impor aos que mantêm os pés e a alma no universo sertanejo.

O velho lugar-comum de que Brasília não conhece o Brasil não se aplica à ministra da Saúde. Nísia Trindade defendeu tese de doutorado em sociologia e escreveu artigos justamente sobre aquele lugar que, até pouco tempo, chamavam de Brasil Profundo, ou sertão.

É o Brasil que começa onde o olhar de governos e da opinião pública muitas vezes termina. Um lugar que pode ser a rodoviária de Brasília, onde migrantes chegam a todo momento, as cidades do entorno da capital, os pequenos municípios de Minas e Goiás, a Caatinga, o Pantanal, uma comunidade ribeirinha da Amazônia.

Sempre foi um desafio delimitar o sertão, espaço físico ou mítico. Atualmente, sertão para alguns se resume ao semiárido nordestino, região de dramas como a seca. Historicamente era o lugar inóspito, distante dos centros das cidades. Com o tempo, firmou-se a ideia que o sertão não era necessariamente um espaço geográfico, mas talvez uma condição, uma realidade brasileira, um recorte social ou de poder.

A Ministra da Saúde, Nísia Trindade, durante reunião com a diretoria da Sociedade Brasileira de Pediatria, em junho Foto: Julia Prado/MS

Em sua tese que virou o livro “Um sertão chamado Brasil: intelectuais, sertanejos e imaginação social”, Nísia Trindade diagnostica visões sobre o interior do País por parte de personalidades históricas que acabaram influenciando o olhar do poder político e da academia.

Uma dessas personalidades é o escritor Euclides da Cunha, autor de Os sertões, um livro que desafia o tempo e, mesmo com conceitos ultrapassados de geografia e antropologia e preconceitos de época, permanece como o clássico nacional por excelência. É uma obra de ambiguidades intensas, que, de forma genial, cravou que “o sertanejo é antes de tudo um forte”, frase sublime que pôs abaixo teorias estapafúrdias de raça, que inclusive ganharam espaço no livro. É a imagem de Hércules-Quasímodo, da obra do francês Victor Hugo, analisa Nísia, de “aspecto dominador de um titã acobreado e potente”, um “desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”.

No artigo “Missões civilizatórias da República e interpretação do Brasil”, derivado da tese, Nísia relata que, em certo momento da vida, Euclides considerou que o sertão, como uma metáfora da barbárie, podia ser inclusive a Rua do Ouvidor, reduto das elites cultural e política do Rio, capital da República, no começo do século 20. Ela descreve que a obra do escritor apresenta o dualismo sertão-litoral em duas faces. “Numa delas, o polo negativo é representado pelo sertão, identificado com a resistência ao moderno e à civilização. Na outra, o sinal se inverte: o litoral é apresentado como sinônimo de inautenticidade, enquanto antítese da nação.”

A tese foi defendida há 26 anos. De lá para cá, Nísia viveu experiências acadêmicas fascinantes, entre elas o comando da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, sendo sua primeira presidente. Chefiou a instituição no tempo da pandemia e da política contra a ciência e a saúde pública de Jair Bolsonaro.

Agora, em Brasília, a ministra do governo Lula pode sentir, por dentro, que o sertão da violência costuma se apresentar como poder político. A cobiça do Centrão pela pasta da Saúde mostra a barbárie do ambiente em que vale a lei do mais forte e do mais esperto, em que a ciência deixa de ter importância diante da fúria do patrimonialismo e do interesse político.

Outra figura que a doutora pesquisou foi o Marechal Cândido Mariano Rondon, aquele descendente de bororos que chefiou expedições pelo interior para instalar linhas de telégrafos. Ao final da empreitada, a tecnologia estava defasada. Mas, num caso de reinvenção de imagem pública, ele já tinha se tornado conhecido pela relação com as comunidades indígenas e pela criação do SPI, o primeiro órgão indigenista do País.

Por muito tempo, os militares estiveram associados à causa indígena. O sertanismo tem raízes na caserna. É coisa de pouco tempo o mergulho da oficialidade brasileira em teorias conspiratórias na Amazônia e na política anti-indígena. Aqui uma reportagem de Vinícius Valfré sobre essa mudança de rota:

Muito se critica Rondon pela visão do Estado em relação aos indígenas moldada por ele. A sua conduta dura com subordinados chega a ser analisada por Nísia. O sertanista deu início a uma política de miscigenação e de contato forçados que, oficialmente, foi revista nos anos 1990 por Sydney Possuelo. A favor de Rondon está, sobretudo, o trabalho que ajudou a inverter a lógica brutal de que que o Estado tinha por missão no interior a matança.

A frase “Morrer se preciso for, matar nunca”, do marechal, pode ser vista como um divisor de águas num Brasil em que, ainda hoje, setores do Poder Público insistem em não reconhecer o indígena como um ser associado à terra. Um exemplo disso é o debate do Marco Temporal, uma teoria de que a Constituição só reconheceria o direito de posse daqueles que estavam nela no dia da promulgação da Carta. Essa visão surgiu numa votação no Supremo Tribunal Federal, foi posta na praça pela Advocacia Geral da União no governo de Dilma Rousseff e ganhou novas tintas na gestão de Michel Temer. Agora, a Corte pode desarmar a bomba que ela e o PT deixaram de presente para os indígenas.

Nísia Trindade estudou em sua tese também os sanitaristas de Manguinhos, como Carlos Chagas, Belisário Penna, Astrogildo Machado, João Pedroso, Pacheco Leão e Adolpho Lutz. Eram pesquisadores que percorriam o Nordeste, a Amazônia e o Planalto Central, regiões do barbeiro, do beribéri, das crianças e dos adultos sem iodo, das condições insalubres e de pobreza. Tanto eles quanto os sertanistas podem ser vistos, de certa forma, como pontas de lança das grandes obras de ferrovia ou dos avanços da fronteira agrícola que atingiam as terras de povos tradicionais: adiantavam-se para evitar hecatombes.

Na volta das viagens, os sanitaristas traziam cadernetas de relatos e propostas para a melhoria daquele Brasil, que era um “grande hospital”. É uma gente que, no fundo, apostava e aposta que o dinheiro público deveria e deve ser usado de acordo com critérios estabelecidos pela ciência. A propósito, uma série de reportagens do repórter Daniel Weterman mostra, a partir deste domingo, os efeitos da distribuição de recursos federais com regras apenas eleitoreiras no interior do País.

É importante entender visões de país tão dispares como a dos sanitaristas e a de um setor da política brasileira. Desde Jair Bolsonaro, o Congresso avança no orçamento do governo como nunca havia ocorrido nem mesmo na República que mandava Rondon para a Serra do Roncador. O orçamento secreto e a emenda Pix, obras que Bolsonaro deixou como modelo de contas públicas e país, têm por princípio a falta de transparência e a aplicação de recursos em troca de compra de votos.

O próprio ministério de Nisia mostra essa realidade. Uma parte do orçamento da pasta foi capturada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, e seus aliados.

No cargo de ministra, ela pode incorporar de certa forma os personagens míticos que estudou no tempo de doutorado. E, como Euclides, Rondon e os sanitaristas, testemunhar um país que não reconhece o outro, as multidões necessitadas, um sertão que não é sertão, a disputa diária das narrativas de Brasil, as representações políticas dissimuladas, os agentes públicos que se apresentam como representantes de uma região, mas que defendem mesmo interesses de grupos de fora de seus Estados.

Mais que uma técnica oriunda de um centro de pesquisas em saúde pública, a doutora Nísia é especialista em Brasil. Sem vivência no mundo político de Brasília, entende, porém, do sertão habitado por figuras influentes e marcado por jogos de interesses. Como os velhos narradores, sertanistas e sanitaristas da Primeira República, ela mantém o foco nos dramas da saúde que afligem os brasileiros, sem ficar à espera do tempo de degola que os donos do poder e seus burocratas costumam impor aos que mantêm os pés e a alma no universo sertanejo.

O velho lugar-comum de que Brasília não conhece o Brasil não se aplica à ministra da Saúde. Nísia Trindade defendeu tese de doutorado em sociologia e escreveu artigos justamente sobre aquele lugar que, até pouco tempo, chamavam de Brasil Profundo, ou sertão.

É o Brasil que começa onde o olhar de governos e da opinião pública muitas vezes termina. Um lugar que pode ser a rodoviária de Brasília, onde migrantes chegam a todo momento, as cidades do entorno da capital, os pequenos municípios de Minas e Goiás, a Caatinga, o Pantanal, uma comunidade ribeirinha da Amazônia.

Sempre foi um desafio delimitar o sertão, espaço físico ou mítico. Atualmente, sertão para alguns se resume ao semiárido nordestino, região de dramas como a seca. Historicamente era o lugar inóspito, distante dos centros das cidades. Com o tempo, firmou-se a ideia que o sertão não era necessariamente um espaço geográfico, mas talvez uma condição, uma realidade brasileira, um recorte social ou de poder.

A Ministra da Saúde, Nísia Trindade, durante reunião com a diretoria da Sociedade Brasileira de Pediatria, em junho Foto: Julia Prado/MS

Em sua tese que virou o livro “Um sertão chamado Brasil: intelectuais, sertanejos e imaginação social”, Nísia Trindade diagnostica visões sobre o interior do País por parte de personalidades históricas que acabaram influenciando o olhar do poder político e da academia.

Uma dessas personalidades é o escritor Euclides da Cunha, autor de Os sertões, um livro que desafia o tempo e, mesmo com conceitos ultrapassados de geografia e antropologia e preconceitos de época, permanece como o clássico nacional por excelência. É uma obra de ambiguidades intensas, que, de forma genial, cravou que “o sertanejo é antes de tudo um forte”, frase sublime que pôs abaixo teorias estapafúrdias de raça, que inclusive ganharam espaço no livro. É a imagem de Hércules-Quasímodo, da obra do francês Victor Hugo, analisa Nísia, de “aspecto dominador de um titã acobreado e potente”, um “desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”.

No artigo “Missões civilizatórias da República e interpretação do Brasil”, derivado da tese, Nísia relata que, em certo momento da vida, Euclides considerou que o sertão, como uma metáfora da barbárie, podia ser inclusive a Rua do Ouvidor, reduto das elites cultural e política do Rio, capital da República, no começo do século 20. Ela descreve que a obra do escritor apresenta o dualismo sertão-litoral em duas faces. “Numa delas, o polo negativo é representado pelo sertão, identificado com a resistência ao moderno e à civilização. Na outra, o sinal se inverte: o litoral é apresentado como sinônimo de inautenticidade, enquanto antítese da nação.”

A tese foi defendida há 26 anos. De lá para cá, Nísia viveu experiências acadêmicas fascinantes, entre elas o comando da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, sendo sua primeira presidente. Chefiou a instituição no tempo da pandemia e da política contra a ciência e a saúde pública de Jair Bolsonaro.

Agora, em Brasília, a ministra do governo Lula pode sentir, por dentro, que o sertão da violência costuma se apresentar como poder político. A cobiça do Centrão pela pasta da Saúde mostra a barbárie do ambiente em que vale a lei do mais forte e do mais esperto, em que a ciência deixa de ter importância diante da fúria do patrimonialismo e do interesse político.

Outra figura que a doutora pesquisou foi o Marechal Cândido Mariano Rondon, aquele descendente de bororos que chefiou expedições pelo interior para instalar linhas de telégrafos. Ao final da empreitada, a tecnologia estava defasada. Mas, num caso de reinvenção de imagem pública, ele já tinha se tornado conhecido pela relação com as comunidades indígenas e pela criação do SPI, o primeiro órgão indigenista do País.

Por muito tempo, os militares estiveram associados à causa indígena. O sertanismo tem raízes na caserna. É coisa de pouco tempo o mergulho da oficialidade brasileira em teorias conspiratórias na Amazônia e na política anti-indígena. Aqui uma reportagem de Vinícius Valfré sobre essa mudança de rota:

Muito se critica Rondon pela visão do Estado em relação aos indígenas moldada por ele. A sua conduta dura com subordinados chega a ser analisada por Nísia. O sertanista deu início a uma política de miscigenação e de contato forçados que, oficialmente, foi revista nos anos 1990 por Sydney Possuelo. A favor de Rondon está, sobretudo, o trabalho que ajudou a inverter a lógica brutal de que que o Estado tinha por missão no interior a matança.

A frase “Morrer se preciso for, matar nunca”, do marechal, pode ser vista como um divisor de águas num Brasil em que, ainda hoje, setores do Poder Público insistem em não reconhecer o indígena como um ser associado à terra. Um exemplo disso é o debate do Marco Temporal, uma teoria de que a Constituição só reconheceria o direito de posse daqueles que estavam nela no dia da promulgação da Carta. Essa visão surgiu numa votação no Supremo Tribunal Federal, foi posta na praça pela Advocacia Geral da União no governo de Dilma Rousseff e ganhou novas tintas na gestão de Michel Temer. Agora, a Corte pode desarmar a bomba que ela e o PT deixaram de presente para os indígenas.

Nísia Trindade estudou em sua tese também os sanitaristas de Manguinhos, como Carlos Chagas, Belisário Penna, Astrogildo Machado, João Pedroso, Pacheco Leão e Adolpho Lutz. Eram pesquisadores que percorriam o Nordeste, a Amazônia e o Planalto Central, regiões do barbeiro, do beribéri, das crianças e dos adultos sem iodo, das condições insalubres e de pobreza. Tanto eles quanto os sertanistas podem ser vistos, de certa forma, como pontas de lança das grandes obras de ferrovia ou dos avanços da fronteira agrícola que atingiam as terras de povos tradicionais: adiantavam-se para evitar hecatombes.

Na volta das viagens, os sanitaristas traziam cadernetas de relatos e propostas para a melhoria daquele Brasil, que era um “grande hospital”. É uma gente que, no fundo, apostava e aposta que o dinheiro público deveria e deve ser usado de acordo com critérios estabelecidos pela ciência. A propósito, uma série de reportagens do repórter Daniel Weterman mostra, a partir deste domingo, os efeitos da distribuição de recursos federais com regras apenas eleitoreiras no interior do País.

É importante entender visões de país tão dispares como a dos sanitaristas e a de um setor da política brasileira. Desde Jair Bolsonaro, o Congresso avança no orçamento do governo como nunca havia ocorrido nem mesmo na República que mandava Rondon para a Serra do Roncador. O orçamento secreto e a emenda Pix, obras que Bolsonaro deixou como modelo de contas públicas e país, têm por princípio a falta de transparência e a aplicação de recursos em troca de compra de votos.

O próprio ministério de Nisia mostra essa realidade. Uma parte do orçamento da pasta foi capturada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, e seus aliados.

No cargo de ministra, ela pode incorporar de certa forma os personagens míticos que estudou no tempo de doutorado. E, como Euclides, Rondon e os sanitaristas, testemunhar um país que não reconhece o outro, as multidões necessitadas, um sertão que não é sertão, a disputa diária das narrativas de Brasil, as representações políticas dissimuladas, os agentes públicos que se apresentam como representantes de uma região, mas que defendem mesmo interesses de grupos de fora de seus Estados.

Mais que uma técnica oriunda de um centro de pesquisas em saúde pública, a doutora Nísia é especialista em Brasil. Sem vivência no mundo político de Brasília, entende, porém, do sertão habitado por figuras influentes e marcado por jogos de interesses. Como os velhos narradores, sertanistas e sanitaristas da Primeira República, ela mantém o foco nos dramas da saúde que afligem os brasileiros, sem ficar à espera do tempo de degola que os donos do poder e seus burocratas costumam impor aos que mantêm os pés e a alma no universo sertanejo.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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