Oswaldo Aranha era dessas figuras que faziam sombra para os presidentes. Ministro das Relações Exteriores e da Justiça de Getúlio Vargas por anos, alimentava sua pretensão de chegar ao comando do País. Na Segunda Guerra, defendia uma aliança com os Estados Unidos contra a Alemanha nazista. Ao assumir o poder, em 1947, o general Eurico Gaspar Dutra queria vê-lo bem longe.
Ele estava distante, mais precisamente em Nova York, em janeiro daquele ano, quando Pedro Leão Veloso, que representava o Brasil nas Nações Unidas, sofreu um infarto fulminante. Sem ninguém para pôr no lugar, Dutra nomeou o desafeto para o posto. A nomeação tornou-se uma oportunidade de ouro para o gaúcho que estava numa espécie de ostracismo após a ditadura Vargas.
Estava vago também o assento do Brasil no Conselho de Segurança da ONU. Na função, Aranha pode rever antigos amigos do tempo em que foi embaixador em Washington. Frequentara inclusive o gabinete de Franklin Roosevelt. O brasileiro de boa conversa era o homem certo no lugar mais certo ainda. Por essas coisas da vida, acabou escolhido por diplomatas de grandes potências para chefiar as Nações Unidas. Talvez seja correto dizer que representava mais a Casa Branca que o Palácio do Catete.
Foi numa sessão presidida pelo secretário “acidental” da ONU, na tarde de 29 de novembro de 1947, que o órgão tomou uma decisão que simplesmente marcaria o século 20 e este agora. A Assembleia-Geral analisou a resolução 181 que repartia o território da Palestina, sob controle dos britânicos, entre dois Estados: um judeu e o outro árabe. Pela proposta, Jerusalém seria uma cidade internacional. Os árabes reclamaram que 56% das terras ficariam para os judeus.
Desde o final do século 19, imigrantes judeus faziam um movimento de retorno ao território ocupado séculos antes por seus ancestrais. A colônia judaica vivia de certa forma pacífica com os árabes, que estavam no lugar havia tempo e eram maioria.
A partilha da Palestina era defendida pelo presidente norte-americano Harry Truman e, ao mesmo tempo, pelo Kremlin, que tinha pressa em reduzir a força do império britânico no Oriente Médio. Mas não havia votos suficientes. Ao prever a derrubada da proposta, Aranha adiou a votação. Depois, conseguiu aprovar a resolução por 33 votos contra 13 contra. Foram dez abstenções.
Era só o início da guerra entre árabes e israelenses. Ainda em 1948, quando o Estado de Israel foi instalado, forças palestinas e de países árabes atacaram Tel Aviv. Com o fim desse conflito, Israel passou a dominar 79% do território da Palestina. Outras guerras ocorreriam em 1956, 1967 e 1973. Os palestinos jamais conseguiram firmar seu Estado, como previa a resolução da ONU.
Oswaldo Aranha morreu em 1960, sem chegar à Presidência do Brasil. De nada adiantou sua performance internacional ou o esforço de um irmão em busca de recursos para uma campanha presidencial. Tratado como algoz pelos árabes, Aranha ganhou o respeito dos novos líderes de Israel. Das histórias prosaicas daquele momento, uma integrante da colônia judaica no Brasil contou que o secretário-geral recebeu promessa de que iria passar a noite com uma mulher por quem estava muito interessado se conseguisse dobrar a assembleia. Foi o que ouviu o historiador Fábio Koifman, incansável na história de judeus e brasileiros. “O que interessa é o ato dele”, observa. O historiador refuta a versão de que Aranha recebeu dinheiro. “A família dele nunca precisou.”
O país de Oswaldo Aranha se manteria distante do conflito no Oriente Médio. A situação só mudou com a ditadura militar. Em 1975, Ernesto Geisel aceitou a instalação de uma embaixada em Brasília da Organização da Libertação da Palestina, a OLP, uma entidade considerada terrorista, na época. Na ONU, Geisel decidiu ainda votar pela proposta de se classificar o sionismo, movimento pelo retorno dos judeus à terra prometida, como racismo. A postura da ditadura se explicava pelo interesse no petróleo e no mercado do mundo árabe.
Mais tarde, no governo Fernando Henrique Cardoso, firmava-se uma política diplomática de neutralidade e de muito apelo pela paz. Quando 16 palestinos, incluindo dez crianças, morreram num ataque aéreo israelense, em 2002, o presidente mandou seu porta-voz “deplorar” a violência. O discurso de equilíbrio era uma construção do Itamaraty. O Brasil tinha de estar em condições de ajudar na interlocução numa próxima guerra.
Em 2010, Luiz Inácio Lula da Silva seguiu à risca o planejamento feito pelo Itamaraty de sua viagem a Israel e ao território palestino. Visitou Tel Aviv e ao mesmo tempo a Cisjordânia, pôs flores nos túmulos dos Nobel Ytzhak Rabin e Yasser Arafat. Ao final, foi criticado pelos israelenses por não visitar também o túmulo de Theodor Herzl, o líder do movimento sionista. Ainda sofreu críticas do Movimento Islâmico de Resistência, o Hamas, por não ter pisado na Faixa de Gaza. Lula saiu frustrado. “Eu converso com palestinos e eles dizem que as negociações estão boas. Eu converso com os israelenses e eles dizem a mesma coisa. Mas, claramente, há algo errado”, lamentou.
No último sábado, dia 7, quando o Hamas atacou Israel, Lula disse ter ficado “chocado” com os “ataques terroristas” contra civis. Diplomatas lotados em Brasília enxergaram termos do embaixador Sérgio Danese, visto como pró-Israel, atualmente na ONU, na manifestação de Lula. Danese havia escrito notas para Bolsonaro sobre conflitos no Oriente Médio.
A posição de Lula de classificar de terrorismo a ação de um grupo árabe foi além do tom da tradição diplomática brasileira. Mas o tempo é de narrativas. Prevaleceu a leitura do grupo de Jair Bolsonaro, que nunca associou a figura presidencial à tradição de paz do Itamaraty e, por tabela, a tudo que uma política externa pode impactar na vida da maioria da população – o setor das exportações, por exemplo.
Sem poder jogar a política externa para escanteio, Lula viu sua retaguarda perdida. Lideranças do PT deram declarações semelhantes ao tempo em que o Hamas não assassinava civis à queima roupa. Os petistas hesitaram em condenar de forma clara o Hamas, como se isso significasse um apoio ao governo do extremista Benjamim Netanyahu e sua política de asfixiar os palestinos. Uma parte da militância de esquerda buscou justificativas para as granadas numa festa de música eletrônica. Por sua vez, um setor da direita atacou a falta de agressividade do Itamaraty e do governo no momento em que o ministério ainda negociava a retirada de brasileiros de Gaza.
Fábio Koifman, professor de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, observa que, na condição atual de presidente do Conselho de Segurança da ONU, o Brasil deve manter postura de moderação e imparcialidade, como é de praxe nesse caso. O País pode ser envolvido nas negociações de paz, o que seria uma contribuição de fato.
Ele é autor de alguns dos livros decisivos sobre o Estado brasileiro, a imigração judaica, o drama de quem tentava escapar do Holocausto e a Segunda Guerra. O historiador tem uma regra simples para definir o terrorismo. “É quando o alvo e o propósito são civis”, avalia. O que ocorreu no sábado, o ataque do Hamas, foi terrorismo. “Você não precisa ser contra a Palestina para usar essa definição”, observa. “Isso justifica o tratamento recebido pelos palestinos? Não”, afirma. “Nós, seres humanos normais, sempre estamos do lado da humanidade, das pessoas, e não de governos”, afirma. Ele ainda ressalta que podemos, a qualquer momento, condenar todos os atos de terrorismo, do lado que for, “sempre.”
A defesa da vida sem olhar para tempos não é uma contradição. Mas a polarização brasileira, pontua, parece ter obrigado os brasileiros a escolher um lado nessa História complexa e de argumentos infinitos, buscar vilões numa comunidade de pequenos agricultores ou numa cidade populosa e pobre. Historiadores como Fábio passam a vida para entendê-la, e assim não cometer erros. Aqui, longe, ninguém precisa entender o conflito. Talvez melhor seja se comover com cada cena de terror, sem perguntar a nacionalidade das vítimas.
Na semana, Koifman recebeu informações e imagens dramáticas. Os mísseis do Hamas tiveram o alcance de atingir áreas residenciais. Kibutz foram atacados. Neles vivem, geralmente, simpatizantes do socialismo, quem não vota no grupo que está no poder. Um dos judeus mortos, observou o historiador, fazia um trabalho rotineiro de levar crianças e mulheres palestinas a hospitais. O homem não está lá agora para proteger civis de bombas. Ele ressalta que passar adiante as fotos e vídeos do terror é pior. “Tudo o que aconteceu não justifica o que acontece agora”, disse, enquanto, na Palestina, na tarde de ontem, soldados de Israel entravam na Faixa de Gaza. “Nem o que pode vir a acontecer.”