À margem da História

Opinião|Personalidades negras entram nos catálogos de leilões de documentos raros; uma boa novidade


Nos leilões de documentos e livros raros , manuscritos, fotografias e primeiras edições de personalidades negras do passado começam a se equiparar em termos de preços a registros de nomes da História oficial

Por Leonencio Nossa

Foi logo depois da abolição que Catarina começou a fazer planos para voltar à África, mais precisamente à região de língua ioruba onde hoje é o sul e o sudeste da Nigéria. Ela saiu de uma aldeia ainda criança, jogada num porão de navio por escravocratas e, após a longa travessia do oceano, chegou a Pernambuco. Trabalhou anos como escravizada. Mais tarde, com filhos e netos, mudou-se para Salvador. No final do século XIX, a família passou a juntar dinheiro da venda de amendoim no Mercado para comprar passagens em saveiros que faziam a rota do Atlântico.

Era mais que a busca do tempo perdido. Afinal, a matriarca não estava só nesse projeto. A bordo do saveiro aliança que deixou o porto da Cidade da Bahia, em 1900, Catarina, a filha Epifânia e os netos Manuel, Romana da Conceição e Luiza se acotovelavam com outras 60 pessoas numa das últimas levas de retorno de africanos e seus descendentes para a terra de origem dos troncos familiares.

A viagem pela ancestralidade foi pesada. A menina Romana Martins da Conceição, de 12 anos, relataria mais tarde o drama da falta de comida e água potável. Ela guardaria para sempre as impressões que teve do oceano, ora agitado, ora calmo que nem parecia mar. Após seis meses de viagem e 12 mortos, o grupo finalmente chegou ao porto de Lagos. Na capital do protetorado britânico, os brasileiros não puderam retirar nada do barco. As autoridades locais os puseram numa longa quarentena.

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Romana da Conceição, neta de uma ex-escravizada, mudou-se para a África ainda criança, para acompanhar a avó numa viagem às origens. Foto: Acervo Letra Viva

Romana e os irmãos cresceram no Brazilian Quarte, um bairro que abrigava descendentes de brasileiros em Lagos. Ela entrou para o comércio, garantiu a sobrevivência da família. Casou, enviuvou. Uma filha se formou na Inglaterra. Ao longo do tempo, sempre quis um dia voltar ao Brasil. A oportunidade apareceu após a independência da Nigéria, em 1960. O escritor Antônio Olinto, adido cultural da embaixada brasileira, movimentou o Itamaraty e empresários para viabilizar uma volta de Romana ao País, agora em avião e na condição de convidada especial.

A História dela foi apropriada para o interesse político do governo brasileiro de se aproximar de nações recém-independentes na África e, ao mesmo tempo, pregar a narrativa de um passado de tolerância, mais de acordo com a tendência de pensadores hegemônicos da época, conta Anna Maria Vasconcellos, num estudo sobre o retorno da brasileira. Não foi uma viagem qualquer. Agora, numa travessia de avião, com escala na Itália, Romana chegou ao Brasil em 17 de maio de 1963.

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Esteve em audiência com o presidente João Goulart, conduziu uma cerimônia em homenagens a escravizados na Igreja de Nossa Senhora do Rosário no centro do Rio, foi ao santuário de Aparecida, no Vale do Paraíba, teve diversos encontros com políticos, lideranças do movimento negro e intelectuais. Ainda visitou Jorge Amado em Salvador e parentes no Recife. O périplo foi todo acompanhado pelos principais jornais e revistas.

Romana da Conceição foi recebida pelo presidente João Goulart, em 1963, na viagem de retorno ao Brasil. Foto: Acervo Letra Viva

Romana era uma brasileira de origem africana que morava na terra dos ancestrais. Falava o ioruba, o português com sotaques pernambucano e baiano e o inglês. Ela era muitas. Morreu anos depois da visita ao Brasil, em 1972, em Lagos.

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É uma História pessoal, apropriada por um governo e de contornos únicos. Milhões de mulheres, homens e crianças africanos foram transportados à força para o Brasil e poucos descendentes deles puderam, depois, viajar de volta ao continente.

No pós-abolição, a maioria absoluta dos negros permaneceu no País. A liberdade não vinha acompanhada de condições iguais de trabalho nas fábricas que surgiam nas cidades ou mesmo nas novas frentes de lavoura no campo.

Estima-se que, no século XIX, cerca de oito mil moradores do Brasil retornaram à África Ocidental, que inclui o Benin, o Togo, a Nigéria e Gana, no pós-abolição. Eram famílias que tinham renda suficiente ou conseguiram juntar recursos por longo tempo para pagar as passagens nos navios que faziam a travessia do oceano.

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Carta escrita por Romana da Conceição logo após sua viagem ao Brasil. Foto: Letra Viva

Romana serviu de inspiração para a personagem Mariana, que também foi levada pela avó para Lagos no distante 1900, protagonista do romance A casa da água, lançado por Antonio OIinto em 1969. Mais tarde, o escritor ainda publicou O rei de Keto, em 1980, e Trono de Vidro, em 1987, fechando uma trilogia.

No Brasil e no mundo de 2023, ouvir a história de Romana da Conceição de sua própria voz (escrita) tem outro peso, sem desmerecer, claro, a importância da obra de Antonio Olinto. Nos próximos dias 8 e 9, cartas e outros registros sobre Romana, muitos deles escritos por ela, vão a leilão organizado pela Livraria Letra Viva, no Rio. Os documentos estão incluídos num lote de 1.277 itens que serviram de fonte de estudos de Olinto. A expectativa é que o material seja disputado especialmente por institutos culturais. Nos últimos anos, as instituições têm participado de leilões para aumentar seus acervos de documentos raros, por recomendações de especialistas.

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Os manuscritos e fotografias de Romana não são do acervo pessoal dela. Foram reunidos por Antônio Olinto, entre 1961 e 1964, quando viveu na Nigéria. Ele ainda incluiu nesse arquivo documentos de outros descendentes de ex-escravizados e lideranças e intelectuais africanos.

A valorização recente de autores negros e de temas brasileiros impactou também o mercado de leilões. Cartas de lideranças religiosas como Mãe Senhora e Menininha do Gantois entraram nas listas dos manuscritos mais procurados. Exemplares de livros autografados por Carolina de Jesus passaram a fazer parte de lotes de vendas, ao lado de primeiras edições de Raquel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e Dinah Silveira de Queiroz.

O debate sobre a mercantilização de documentos pessoais raros sempre esteve em aberto, especialmente por serem referências de vida. A novidade é mesmo a presença de personalidades negras nos catálogos, uma possível escala para medir a influência de figuras históricas em outras áreas.

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Cartão enviado por Romana a amigos do Brasil. Foto: Letra Viva

O lote com os documentos sobre Romana é o mais alto de um leilão que conta com obras raras de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Eça de Queiroz e Ariano Suassuna. O lance inicial é de R$ 220 mil.

Por uma História de vida que é também dos brasileiros escravizados que conseguiram retornar à África, os escritos de Romana podem se equiparar, em termos de preços, a de cartas de ex-presidentes ou escritores brancos de grande projeção.

Referência

No dia 26 de novembro, o País perdeu o escritor e diplomata Alberto da Costa e Silva. Prêmio Camões e imortal da Academia Brasileira de Letras, ele se consolidou com o maior africanólogo brasileiro. É de Alberto clássicos como o ensaio A enxada e a lança: a África antes dos portugueses, a coletânea de poesias O tecelão e o estudo Um rio chamado Atlântico. Por intermédio do editor José Mario Pereira, tive a oportunidade de encontrar o pesquisador em seu apartamento, no Rio, decorado com esculturas africanas. De forma generosa, ele sugeriu mergulhos em muitas Histórias do Brasil que precisavam ser contadas.

Foi logo depois da abolição que Catarina começou a fazer planos para voltar à África, mais precisamente à região de língua ioruba onde hoje é o sul e o sudeste da Nigéria. Ela saiu de uma aldeia ainda criança, jogada num porão de navio por escravocratas e, após a longa travessia do oceano, chegou a Pernambuco. Trabalhou anos como escravizada. Mais tarde, com filhos e netos, mudou-se para Salvador. No final do século XIX, a família passou a juntar dinheiro da venda de amendoim no Mercado para comprar passagens em saveiros que faziam a rota do Atlântico.

Era mais que a busca do tempo perdido. Afinal, a matriarca não estava só nesse projeto. A bordo do saveiro aliança que deixou o porto da Cidade da Bahia, em 1900, Catarina, a filha Epifânia e os netos Manuel, Romana da Conceição e Luiza se acotovelavam com outras 60 pessoas numa das últimas levas de retorno de africanos e seus descendentes para a terra de origem dos troncos familiares.

A viagem pela ancestralidade foi pesada. A menina Romana Martins da Conceição, de 12 anos, relataria mais tarde o drama da falta de comida e água potável. Ela guardaria para sempre as impressões que teve do oceano, ora agitado, ora calmo que nem parecia mar. Após seis meses de viagem e 12 mortos, o grupo finalmente chegou ao porto de Lagos. Na capital do protetorado britânico, os brasileiros não puderam retirar nada do barco. As autoridades locais os puseram numa longa quarentena.

Romana da Conceição, neta de uma ex-escravizada, mudou-se para a África ainda criança, para acompanhar a avó numa viagem às origens. Foto: Acervo Letra Viva

Romana e os irmãos cresceram no Brazilian Quarte, um bairro que abrigava descendentes de brasileiros em Lagos. Ela entrou para o comércio, garantiu a sobrevivência da família. Casou, enviuvou. Uma filha se formou na Inglaterra. Ao longo do tempo, sempre quis um dia voltar ao Brasil. A oportunidade apareceu após a independência da Nigéria, em 1960. O escritor Antônio Olinto, adido cultural da embaixada brasileira, movimentou o Itamaraty e empresários para viabilizar uma volta de Romana ao País, agora em avião e na condição de convidada especial.

A História dela foi apropriada para o interesse político do governo brasileiro de se aproximar de nações recém-independentes na África e, ao mesmo tempo, pregar a narrativa de um passado de tolerância, mais de acordo com a tendência de pensadores hegemônicos da época, conta Anna Maria Vasconcellos, num estudo sobre o retorno da brasileira. Não foi uma viagem qualquer. Agora, numa travessia de avião, com escala na Itália, Romana chegou ao Brasil em 17 de maio de 1963.

Esteve em audiência com o presidente João Goulart, conduziu uma cerimônia em homenagens a escravizados na Igreja de Nossa Senhora do Rosário no centro do Rio, foi ao santuário de Aparecida, no Vale do Paraíba, teve diversos encontros com políticos, lideranças do movimento negro e intelectuais. Ainda visitou Jorge Amado em Salvador e parentes no Recife. O périplo foi todo acompanhado pelos principais jornais e revistas.

Romana da Conceição foi recebida pelo presidente João Goulart, em 1963, na viagem de retorno ao Brasil. Foto: Acervo Letra Viva

Romana era uma brasileira de origem africana que morava na terra dos ancestrais. Falava o ioruba, o português com sotaques pernambucano e baiano e o inglês. Ela era muitas. Morreu anos depois da visita ao Brasil, em 1972, em Lagos.

É uma História pessoal, apropriada por um governo e de contornos únicos. Milhões de mulheres, homens e crianças africanos foram transportados à força para o Brasil e poucos descendentes deles puderam, depois, viajar de volta ao continente.

No pós-abolição, a maioria absoluta dos negros permaneceu no País. A liberdade não vinha acompanhada de condições iguais de trabalho nas fábricas que surgiam nas cidades ou mesmo nas novas frentes de lavoura no campo.

Estima-se que, no século XIX, cerca de oito mil moradores do Brasil retornaram à África Ocidental, que inclui o Benin, o Togo, a Nigéria e Gana, no pós-abolição. Eram famílias que tinham renda suficiente ou conseguiram juntar recursos por longo tempo para pagar as passagens nos navios que faziam a travessia do oceano.

Carta escrita por Romana da Conceição logo após sua viagem ao Brasil. Foto: Letra Viva

Romana serviu de inspiração para a personagem Mariana, que também foi levada pela avó para Lagos no distante 1900, protagonista do romance A casa da água, lançado por Antonio OIinto em 1969. Mais tarde, o escritor ainda publicou O rei de Keto, em 1980, e Trono de Vidro, em 1987, fechando uma trilogia.

No Brasil e no mundo de 2023, ouvir a história de Romana da Conceição de sua própria voz (escrita) tem outro peso, sem desmerecer, claro, a importância da obra de Antonio Olinto. Nos próximos dias 8 e 9, cartas e outros registros sobre Romana, muitos deles escritos por ela, vão a leilão organizado pela Livraria Letra Viva, no Rio. Os documentos estão incluídos num lote de 1.277 itens que serviram de fonte de estudos de Olinto. A expectativa é que o material seja disputado especialmente por institutos culturais. Nos últimos anos, as instituições têm participado de leilões para aumentar seus acervos de documentos raros, por recomendações de especialistas.

Os manuscritos e fotografias de Romana não são do acervo pessoal dela. Foram reunidos por Antônio Olinto, entre 1961 e 1964, quando viveu na Nigéria. Ele ainda incluiu nesse arquivo documentos de outros descendentes de ex-escravizados e lideranças e intelectuais africanos.

A valorização recente de autores negros e de temas brasileiros impactou também o mercado de leilões. Cartas de lideranças religiosas como Mãe Senhora e Menininha do Gantois entraram nas listas dos manuscritos mais procurados. Exemplares de livros autografados por Carolina de Jesus passaram a fazer parte de lotes de vendas, ao lado de primeiras edições de Raquel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e Dinah Silveira de Queiroz.

O debate sobre a mercantilização de documentos pessoais raros sempre esteve em aberto, especialmente por serem referências de vida. A novidade é mesmo a presença de personalidades negras nos catálogos, uma possível escala para medir a influência de figuras históricas em outras áreas.

Cartão enviado por Romana a amigos do Brasil. Foto: Letra Viva

O lote com os documentos sobre Romana é o mais alto de um leilão que conta com obras raras de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Eça de Queiroz e Ariano Suassuna. O lance inicial é de R$ 220 mil.

Por uma História de vida que é também dos brasileiros escravizados que conseguiram retornar à África, os escritos de Romana podem se equiparar, em termos de preços, a de cartas de ex-presidentes ou escritores brancos de grande projeção.

Referência

No dia 26 de novembro, o País perdeu o escritor e diplomata Alberto da Costa e Silva. Prêmio Camões e imortal da Academia Brasileira de Letras, ele se consolidou com o maior africanólogo brasileiro. É de Alberto clássicos como o ensaio A enxada e a lança: a África antes dos portugueses, a coletânea de poesias O tecelão e o estudo Um rio chamado Atlântico. Por intermédio do editor José Mario Pereira, tive a oportunidade de encontrar o pesquisador em seu apartamento, no Rio, decorado com esculturas africanas. De forma generosa, ele sugeriu mergulhos em muitas Histórias do Brasil que precisavam ser contadas.

Foi logo depois da abolição que Catarina começou a fazer planos para voltar à África, mais precisamente à região de língua ioruba onde hoje é o sul e o sudeste da Nigéria. Ela saiu de uma aldeia ainda criança, jogada num porão de navio por escravocratas e, após a longa travessia do oceano, chegou a Pernambuco. Trabalhou anos como escravizada. Mais tarde, com filhos e netos, mudou-se para Salvador. No final do século XIX, a família passou a juntar dinheiro da venda de amendoim no Mercado para comprar passagens em saveiros que faziam a rota do Atlântico.

Era mais que a busca do tempo perdido. Afinal, a matriarca não estava só nesse projeto. A bordo do saveiro aliança que deixou o porto da Cidade da Bahia, em 1900, Catarina, a filha Epifânia e os netos Manuel, Romana da Conceição e Luiza se acotovelavam com outras 60 pessoas numa das últimas levas de retorno de africanos e seus descendentes para a terra de origem dos troncos familiares.

A viagem pela ancestralidade foi pesada. A menina Romana Martins da Conceição, de 12 anos, relataria mais tarde o drama da falta de comida e água potável. Ela guardaria para sempre as impressões que teve do oceano, ora agitado, ora calmo que nem parecia mar. Após seis meses de viagem e 12 mortos, o grupo finalmente chegou ao porto de Lagos. Na capital do protetorado britânico, os brasileiros não puderam retirar nada do barco. As autoridades locais os puseram numa longa quarentena.

Romana da Conceição, neta de uma ex-escravizada, mudou-se para a África ainda criança, para acompanhar a avó numa viagem às origens. Foto: Acervo Letra Viva

Romana e os irmãos cresceram no Brazilian Quarte, um bairro que abrigava descendentes de brasileiros em Lagos. Ela entrou para o comércio, garantiu a sobrevivência da família. Casou, enviuvou. Uma filha se formou na Inglaterra. Ao longo do tempo, sempre quis um dia voltar ao Brasil. A oportunidade apareceu após a independência da Nigéria, em 1960. O escritor Antônio Olinto, adido cultural da embaixada brasileira, movimentou o Itamaraty e empresários para viabilizar uma volta de Romana ao País, agora em avião e na condição de convidada especial.

A História dela foi apropriada para o interesse político do governo brasileiro de se aproximar de nações recém-independentes na África e, ao mesmo tempo, pregar a narrativa de um passado de tolerância, mais de acordo com a tendência de pensadores hegemônicos da época, conta Anna Maria Vasconcellos, num estudo sobre o retorno da brasileira. Não foi uma viagem qualquer. Agora, numa travessia de avião, com escala na Itália, Romana chegou ao Brasil em 17 de maio de 1963.

Esteve em audiência com o presidente João Goulart, conduziu uma cerimônia em homenagens a escravizados na Igreja de Nossa Senhora do Rosário no centro do Rio, foi ao santuário de Aparecida, no Vale do Paraíba, teve diversos encontros com políticos, lideranças do movimento negro e intelectuais. Ainda visitou Jorge Amado em Salvador e parentes no Recife. O périplo foi todo acompanhado pelos principais jornais e revistas.

Romana da Conceição foi recebida pelo presidente João Goulart, em 1963, na viagem de retorno ao Brasil. Foto: Acervo Letra Viva

Romana era uma brasileira de origem africana que morava na terra dos ancestrais. Falava o ioruba, o português com sotaques pernambucano e baiano e o inglês. Ela era muitas. Morreu anos depois da visita ao Brasil, em 1972, em Lagos.

É uma História pessoal, apropriada por um governo e de contornos únicos. Milhões de mulheres, homens e crianças africanos foram transportados à força para o Brasil e poucos descendentes deles puderam, depois, viajar de volta ao continente.

No pós-abolição, a maioria absoluta dos negros permaneceu no País. A liberdade não vinha acompanhada de condições iguais de trabalho nas fábricas que surgiam nas cidades ou mesmo nas novas frentes de lavoura no campo.

Estima-se que, no século XIX, cerca de oito mil moradores do Brasil retornaram à África Ocidental, que inclui o Benin, o Togo, a Nigéria e Gana, no pós-abolição. Eram famílias que tinham renda suficiente ou conseguiram juntar recursos por longo tempo para pagar as passagens nos navios que faziam a travessia do oceano.

Carta escrita por Romana da Conceição logo após sua viagem ao Brasil. Foto: Letra Viva

Romana serviu de inspiração para a personagem Mariana, que também foi levada pela avó para Lagos no distante 1900, protagonista do romance A casa da água, lançado por Antonio OIinto em 1969. Mais tarde, o escritor ainda publicou O rei de Keto, em 1980, e Trono de Vidro, em 1987, fechando uma trilogia.

No Brasil e no mundo de 2023, ouvir a história de Romana da Conceição de sua própria voz (escrita) tem outro peso, sem desmerecer, claro, a importância da obra de Antonio Olinto. Nos próximos dias 8 e 9, cartas e outros registros sobre Romana, muitos deles escritos por ela, vão a leilão organizado pela Livraria Letra Viva, no Rio. Os documentos estão incluídos num lote de 1.277 itens que serviram de fonte de estudos de Olinto. A expectativa é que o material seja disputado especialmente por institutos culturais. Nos últimos anos, as instituições têm participado de leilões para aumentar seus acervos de documentos raros, por recomendações de especialistas.

Os manuscritos e fotografias de Romana não são do acervo pessoal dela. Foram reunidos por Antônio Olinto, entre 1961 e 1964, quando viveu na Nigéria. Ele ainda incluiu nesse arquivo documentos de outros descendentes de ex-escravizados e lideranças e intelectuais africanos.

A valorização recente de autores negros e de temas brasileiros impactou também o mercado de leilões. Cartas de lideranças religiosas como Mãe Senhora e Menininha do Gantois entraram nas listas dos manuscritos mais procurados. Exemplares de livros autografados por Carolina de Jesus passaram a fazer parte de lotes de vendas, ao lado de primeiras edições de Raquel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e Dinah Silveira de Queiroz.

O debate sobre a mercantilização de documentos pessoais raros sempre esteve em aberto, especialmente por serem referências de vida. A novidade é mesmo a presença de personalidades negras nos catálogos, uma possível escala para medir a influência de figuras históricas em outras áreas.

Cartão enviado por Romana a amigos do Brasil. Foto: Letra Viva

O lote com os documentos sobre Romana é o mais alto de um leilão que conta com obras raras de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Eça de Queiroz e Ariano Suassuna. O lance inicial é de R$ 220 mil.

Por uma História de vida que é também dos brasileiros escravizados que conseguiram retornar à África, os escritos de Romana podem se equiparar, em termos de preços, a de cartas de ex-presidentes ou escritores brancos de grande projeção.

Referência

No dia 26 de novembro, o País perdeu o escritor e diplomata Alberto da Costa e Silva. Prêmio Camões e imortal da Academia Brasileira de Letras, ele se consolidou com o maior africanólogo brasileiro. É de Alberto clássicos como o ensaio A enxada e a lança: a África antes dos portugueses, a coletânea de poesias O tecelão e o estudo Um rio chamado Atlântico. Por intermédio do editor José Mario Pereira, tive a oportunidade de encontrar o pesquisador em seu apartamento, no Rio, decorado com esculturas africanas. De forma generosa, ele sugeriu mergulhos em muitas Histórias do Brasil que precisavam ser contadas.

Foi logo depois da abolição que Catarina começou a fazer planos para voltar à África, mais precisamente à região de língua ioruba onde hoje é o sul e o sudeste da Nigéria. Ela saiu de uma aldeia ainda criança, jogada num porão de navio por escravocratas e, após a longa travessia do oceano, chegou a Pernambuco. Trabalhou anos como escravizada. Mais tarde, com filhos e netos, mudou-se para Salvador. No final do século XIX, a família passou a juntar dinheiro da venda de amendoim no Mercado para comprar passagens em saveiros que faziam a rota do Atlântico.

Era mais que a busca do tempo perdido. Afinal, a matriarca não estava só nesse projeto. A bordo do saveiro aliança que deixou o porto da Cidade da Bahia, em 1900, Catarina, a filha Epifânia e os netos Manuel, Romana da Conceição e Luiza se acotovelavam com outras 60 pessoas numa das últimas levas de retorno de africanos e seus descendentes para a terra de origem dos troncos familiares.

A viagem pela ancestralidade foi pesada. A menina Romana Martins da Conceição, de 12 anos, relataria mais tarde o drama da falta de comida e água potável. Ela guardaria para sempre as impressões que teve do oceano, ora agitado, ora calmo que nem parecia mar. Após seis meses de viagem e 12 mortos, o grupo finalmente chegou ao porto de Lagos. Na capital do protetorado britânico, os brasileiros não puderam retirar nada do barco. As autoridades locais os puseram numa longa quarentena.

Romana da Conceição, neta de uma ex-escravizada, mudou-se para a África ainda criança, para acompanhar a avó numa viagem às origens. Foto: Acervo Letra Viva

Romana e os irmãos cresceram no Brazilian Quarte, um bairro que abrigava descendentes de brasileiros em Lagos. Ela entrou para o comércio, garantiu a sobrevivência da família. Casou, enviuvou. Uma filha se formou na Inglaterra. Ao longo do tempo, sempre quis um dia voltar ao Brasil. A oportunidade apareceu após a independência da Nigéria, em 1960. O escritor Antônio Olinto, adido cultural da embaixada brasileira, movimentou o Itamaraty e empresários para viabilizar uma volta de Romana ao País, agora em avião e na condição de convidada especial.

A História dela foi apropriada para o interesse político do governo brasileiro de se aproximar de nações recém-independentes na África e, ao mesmo tempo, pregar a narrativa de um passado de tolerância, mais de acordo com a tendência de pensadores hegemônicos da época, conta Anna Maria Vasconcellos, num estudo sobre o retorno da brasileira. Não foi uma viagem qualquer. Agora, numa travessia de avião, com escala na Itália, Romana chegou ao Brasil em 17 de maio de 1963.

Esteve em audiência com o presidente João Goulart, conduziu uma cerimônia em homenagens a escravizados na Igreja de Nossa Senhora do Rosário no centro do Rio, foi ao santuário de Aparecida, no Vale do Paraíba, teve diversos encontros com políticos, lideranças do movimento negro e intelectuais. Ainda visitou Jorge Amado em Salvador e parentes no Recife. O périplo foi todo acompanhado pelos principais jornais e revistas.

Romana da Conceição foi recebida pelo presidente João Goulart, em 1963, na viagem de retorno ao Brasil. Foto: Acervo Letra Viva

Romana era uma brasileira de origem africana que morava na terra dos ancestrais. Falava o ioruba, o português com sotaques pernambucano e baiano e o inglês. Ela era muitas. Morreu anos depois da visita ao Brasil, em 1972, em Lagos.

É uma História pessoal, apropriada por um governo e de contornos únicos. Milhões de mulheres, homens e crianças africanos foram transportados à força para o Brasil e poucos descendentes deles puderam, depois, viajar de volta ao continente.

No pós-abolição, a maioria absoluta dos negros permaneceu no País. A liberdade não vinha acompanhada de condições iguais de trabalho nas fábricas que surgiam nas cidades ou mesmo nas novas frentes de lavoura no campo.

Estima-se que, no século XIX, cerca de oito mil moradores do Brasil retornaram à África Ocidental, que inclui o Benin, o Togo, a Nigéria e Gana, no pós-abolição. Eram famílias que tinham renda suficiente ou conseguiram juntar recursos por longo tempo para pagar as passagens nos navios que faziam a travessia do oceano.

Carta escrita por Romana da Conceição logo após sua viagem ao Brasil. Foto: Letra Viva

Romana serviu de inspiração para a personagem Mariana, que também foi levada pela avó para Lagos no distante 1900, protagonista do romance A casa da água, lançado por Antonio OIinto em 1969. Mais tarde, o escritor ainda publicou O rei de Keto, em 1980, e Trono de Vidro, em 1987, fechando uma trilogia.

No Brasil e no mundo de 2023, ouvir a história de Romana da Conceição de sua própria voz (escrita) tem outro peso, sem desmerecer, claro, a importância da obra de Antonio Olinto. Nos próximos dias 8 e 9, cartas e outros registros sobre Romana, muitos deles escritos por ela, vão a leilão organizado pela Livraria Letra Viva, no Rio. Os documentos estão incluídos num lote de 1.277 itens que serviram de fonte de estudos de Olinto. A expectativa é que o material seja disputado especialmente por institutos culturais. Nos últimos anos, as instituições têm participado de leilões para aumentar seus acervos de documentos raros, por recomendações de especialistas.

Os manuscritos e fotografias de Romana não são do acervo pessoal dela. Foram reunidos por Antônio Olinto, entre 1961 e 1964, quando viveu na Nigéria. Ele ainda incluiu nesse arquivo documentos de outros descendentes de ex-escravizados e lideranças e intelectuais africanos.

A valorização recente de autores negros e de temas brasileiros impactou também o mercado de leilões. Cartas de lideranças religiosas como Mãe Senhora e Menininha do Gantois entraram nas listas dos manuscritos mais procurados. Exemplares de livros autografados por Carolina de Jesus passaram a fazer parte de lotes de vendas, ao lado de primeiras edições de Raquel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e Dinah Silveira de Queiroz.

O debate sobre a mercantilização de documentos pessoais raros sempre esteve em aberto, especialmente por serem referências de vida. A novidade é mesmo a presença de personalidades negras nos catálogos, uma possível escala para medir a influência de figuras históricas em outras áreas.

Cartão enviado por Romana a amigos do Brasil. Foto: Letra Viva

O lote com os documentos sobre Romana é o mais alto de um leilão que conta com obras raras de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Eça de Queiroz e Ariano Suassuna. O lance inicial é de R$ 220 mil.

Por uma História de vida que é também dos brasileiros escravizados que conseguiram retornar à África, os escritos de Romana podem se equiparar, em termos de preços, a de cartas de ex-presidentes ou escritores brancos de grande projeção.

Referência

No dia 26 de novembro, o País perdeu o escritor e diplomata Alberto da Costa e Silva. Prêmio Camões e imortal da Academia Brasileira de Letras, ele se consolidou com o maior africanólogo brasileiro. É de Alberto clássicos como o ensaio A enxada e a lança: a África antes dos portugueses, a coletânea de poesias O tecelão e o estudo Um rio chamado Atlântico. Por intermédio do editor José Mario Pereira, tive a oportunidade de encontrar o pesquisador em seu apartamento, no Rio, decorado com esculturas africanas. De forma generosa, ele sugeriu mergulhos em muitas Histórias do Brasil que precisavam ser contadas.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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