À margem da História

Opinião|Vargas e FHC podem ensinar Zema, Tarcísio, Leite e Ratinho Junior a lidar com Lula


O tom contundente do governador de Minas nas reclamações de privilégios ao Nordeste talvez não seja adequado a quem postula o Palácio do Planalto

Por Leonencio Nossa
Atualização:

Quase o Nordeste não aparece nas histórias da chamada Revolução de 1930, que pôs abaixo a República Velha. Um cearense, no entanto, foi o responsável em consolidar o movimento na região e garantir a tomada do poder nacional pelo grupo de Getúlio Vargas. O então capitão Juarez Távora ganhou a alcunha de “vice-rei do norte” depois de tirar do jogo as oligarquias que resistiam. Sem apoio de uma figura nordestina os gaúchos teriam dificuldades para consolidar o golpe.

Távora conhecia os sertões desde que atuou na Coluna Miguel Costa-Prestes, que percorreu o interior brasileiro para se posicionar contra o governo federal. Getúlio o nomeou delegado militar do Norte-Nordeste e pôde assim, na composição com uma força da região, seguir no Palácio do Catete.

Sem apoio do então capitão Juarez Távora (foto), uma figura nordestina, os gaúchos de Getúlio Vargas teriam dificuldades para consolidar o golpe Foto: Acervo Estadão
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Na História, lideranças do Sul e Sudeste se dividiram entre as que buscavam o consenso nacional – ou o poder do País, como queiram – e aquelas que tentaram a hegemonia apostando apenas na “pujança” do Sul Maravilha.

Em entrevista às jornalistas Mônica Gugliano e Andreza Matais, aqui do Estadão, o governador de Minas, Romeu Zema, relatou os planos do consórcio de governadores do Sul e Sudeste para obter protagonismo nacional. Encontros de chefes de Executivo de regiões visando pautas em comum sempre foram recorrentes. Os governadores nordestinos têm até tradição nisso. É claro que chama a atenção o fato do consórcio, à exceção do Espírito Santo, ser formado por nomes de oposição ao Palácio do Planalto. Mais que isso. Ao menos Zema, Tarcísio, Eduardo Leite e Ratinho Júnior são postulantes à Presidência.

Zema propõe uma direita que não seja “encrenqueira”, sem “exaltação”. Fala do tempo da política anti-vacina de Jair Bolsonaro sem meias palavras, assim como diz entender programas sociais como uma agenda de qualquer espectro político.

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O desafio político do consórcio, porém, é calibrar a busca pelo “protagonismo”. O tom contundente nas reclamações de privilégios concedidos pelo governo Lula ou pelo Congresso ao Nordeste talvez não seja adequado para Tarcísio, que comanda um Estado de nordestinos e descendentes de nordestinos, ou Leite e Ratinho Júnior, que dependem de parcerias amplas para ir além do poder nos seus Estados. O próprio Zema sabe que o eleitorado do norte mineiro, ligado à Bahia, pode ser decisivo numa eleição presidencial – que diga Aécio Neves, que perdeu ali votos valiosos para Dilma em 2014. Como o personagem Riobaldo, do romance Grande Sertão: Veredas, não conseguiu atravessar o deserto na primeira tentativa.

O governador de Minas, Romeu Zema, relatou os planos do consórcio de governadores do Sul e Sudeste para obter protagonismo nacional. Foto: Washington Alves/Estadão

Pode ser um erro fatal limitar o Nordeste a um reduto lulista a ser combatido.

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Nas últimas eleições presidenciais, especialmente de 2018 e 2022, a divisão do mapa brasileiro, marcada pelo Nordeste em vermelho e o Sul e Sudeste em azul, levou muita gente a enxergar um racha político de proporções inéditas no País. Não havia novidade alguma. As divergências de poder entre uma parte e outra do Brasil sempre marcou a história republicana. Acordos e entendimentos, porém, conseguiram consensos e encobrir diferenças acentuadas.

Ainda no início da República, no tempo da política do café com leite, de hegemonia das oligarquias rurais de São Paulo e Minas, as forças dos Estados do Nordeste eram acomodadas nas chapas que disputavam o Palácio do Catete. De 26 eleições presidenciais em períodos democráticos, o Sul e Sudeste só elegeram chapas “puro-sangue” em nove oportunidades, sendo que em duas delas, 2010 e 2014, o principal puxador de votos era um pernambucano, Luiz Inácio Lula da Silva.

Ultrapassa a simbologia que, na primeira eleição, em 1891, o Congresso elegeu dois nordestinos, ou para ser mais exato, dois alagoanos, para presidente e vice. Não era uma chapa “puro-sangue” do Nordeste porque o marechal Deodoro da Fonseca, líder do golpe militar que derrubou a monarquia, e Floriano Peixoto, foram eleitos em disputas separadas. Quem começou mesmo a tradição de acordos entre Nordeste e Sudeste foi a dupla formada pelo advogado paulista Prudente de Moraes e o médico baiano Manuel Vitorino, eleitos presidente e vice em 1894.

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O antigo Norte Agrário, na definição do historiador Evaldo Cabral de Melo, perdeu a posição de maior economia brasileira em 1870, com o apogeu dos produtores de café paulistas e cariocas das margens do Rio Paraíba do Sul. Mas quase sempre esteve representado nas disputas pelo comando do País.

Em 1898, o pernambucano Rosa e Silva foi eleito vice. As três disputas seguintes, quando a força de São Paulo e Minas chegou ao apogeu, os nordestinos ficaram de fora. Mas, em 1914, Urbano Santos, do Maranhão, garantiu a vice. O Nordeste chegaria forte em 1920, com Epitácio Pessoa, da Paraíba, presidente. Até a composição do último pleito da Primeira República teve um representante da região no posto de vice. Vital Soares, da Bahia, e o presidente eleito, o paulista Julio Prestes, não assumiram os cargos. Do lado concorrente, a aliança também contava com um nordestino. O paraibano João Pessoa compôs a chapa de Getúlio Vargas, então presidente do Rio Grande do Sul, que após a derrota tomou o poder.

Getúlio comandou uma ditadura por anos com interventores militares fortes no Nordeste. Era o caso do cearense Juraci Magalhães que chefiou a Bahia. Após o fim do Estado Novo, o gaúcho retornaria ao Catete agora pelo voto direto, em 1950, tendo um potiguar como vice. Café Filho assumiu o governo com o suicídio do presidente.

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O gaúcho Getúlio Vargas comandou uma ditadura por anos com interventores militares fortes no Nordeste; quando retornou ao poder pelo voto direto, tinha um potiguar como vice. Foto: Acervo Estadão

Romeu Zema pode até olhar para as eleições de 1955, que teve o conterrâneo Juscelino Kubitschek eleito presidente e o gaúcho João Goulart, vice. Mas Juscelino aproveitou a comoção da morte de Getúlio para derrotar Juarez Távora por apenas 466 mil votos – a oposição quis dar um golpe. Foi uma rara eleição em que o Nordeste rachou. Os usineiros de Pernambuco, Paraíba e Alagoas apoiaram Távora pela sintonia entre Juscelino e João Goulart, herdeiro do getulismo, que concorria na disputa separada para vice. Juscelino só teve maioria na Bahia, Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte. Quase nunca o Nordeste se fragmenta em eleições.

Após os 21 anos de ditadura militar, que teve generais do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Santa Catarina como presidentes ou vices, a tradição de alianças tácitas entre o Nordeste e o Sul e Sudeste voltou. Das dez eleições presidenciais, uma indireta e as demais diretas, apenas em 2018 um nordestino não foi eleito candidato a presidente ou a vice ou atuou como principal puxador de votos. Ainda assim, o paulista Jair Bolsonaro e o gaúcho Hamilton Mourão, de formação militar, não representavam forças municipais nem estaduais.

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Representante do sindicalismo do ABC e depois do campo da centro-esquerda do Sudeste, Lula não precisou de intermediários para conquistar o Nordeste. Ele implantou um grupo na Bahia que derrotou o carlismo e ressuscitou o clã Arraes em Pernambuco. A façanha de criar um super reduto eleitoral, formado por nove Estados, não expôs um país fraturado ou algum tipo de pioneirismo, mas a capacidade de entender uma região que nunca teve sintonias claras com o Sul e Sudeste e, ao mesmo tempo, sempre esteve disposta a alianças.

Na história dos acordos entre Sudeste e Nordeste não pode faltar Fernando Henrique Cardoso. No rastro do Plano Real, ele escolheu o senador alagoano Guilherme Palmeira, do PFL, um velho nome das usinas, para compor sua chapa em 1994. José Serra e Sérgio Motta, nomes influentes do PSDB, foram contra. Palmeira teve de se afastar da campanha por conta de denúncia de esquema envolvendo empreiteiras. Remanescente de governos militares, o senador pernambucano Marco Maciel, também do PFL, foi o substituto. Era mais que um representante de oligarquia nordestina. Foi peça-chave nos dois governos tucanos.

Fernando Henrique entrou para o anedotário pelo incômodo de comer buchada de bode e subir em burrinho. A figura pomposa e intelectual do presidente não se adequou a um chapéu de vaqueiro. O tucano deixou como lição para os sábios do Sudeste que, sem composição com o outro lado do Brasil, oligarquias ou eleitores de lá, tudo pode não passar de um grupo que tenta apenas não ser esquecido no debate. Sob certo ângulo, preconceitos contra forças políticas e eleitorados podem se confundir.

A propósito, Tarcísio flertou com a direita exaltada ao fazer o velho discurso da polícia que, para ser eficiente, tem que matar no momento em que o País se choca com mais um massacre promovido por agentes do Estado, desta vez nas periferias nordestinas da Baixada Santista. A visão policialesca e cruel das periferias talvez seja um bom tema para reuniões de governadores, independentemente da região.

Quase o Nordeste não aparece nas histórias da chamada Revolução de 1930, que pôs abaixo a República Velha. Um cearense, no entanto, foi o responsável em consolidar o movimento na região e garantir a tomada do poder nacional pelo grupo de Getúlio Vargas. O então capitão Juarez Távora ganhou a alcunha de “vice-rei do norte” depois de tirar do jogo as oligarquias que resistiam. Sem apoio de uma figura nordestina os gaúchos teriam dificuldades para consolidar o golpe.

Távora conhecia os sertões desde que atuou na Coluna Miguel Costa-Prestes, que percorreu o interior brasileiro para se posicionar contra o governo federal. Getúlio o nomeou delegado militar do Norte-Nordeste e pôde assim, na composição com uma força da região, seguir no Palácio do Catete.

Sem apoio do então capitão Juarez Távora (foto), uma figura nordestina, os gaúchos de Getúlio Vargas teriam dificuldades para consolidar o golpe Foto: Acervo Estadão

Na História, lideranças do Sul e Sudeste se dividiram entre as que buscavam o consenso nacional – ou o poder do País, como queiram – e aquelas que tentaram a hegemonia apostando apenas na “pujança” do Sul Maravilha.

Em entrevista às jornalistas Mônica Gugliano e Andreza Matais, aqui do Estadão, o governador de Minas, Romeu Zema, relatou os planos do consórcio de governadores do Sul e Sudeste para obter protagonismo nacional. Encontros de chefes de Executivo de regiões visando pautas em comum sempre foram recorrentes. Os governadores nordestinos têm até tradição nisso. É claro que chama a atenção o fato do consórcio, à exceção do Espírito Santo, ser formado por nomes de oposição ao Palácio do Planalto. Mais que isso. Ao menos Zema, Tarcísio, Eduardo Leite e Ratinho Júnior são postulantes à Presidência.

Zema propõe uma direita que não seja “encrenqueira”, sem “exaltação”. Fala do tempo da política anti-vacina de Jair Bolsonaro sem meias palavras, assim como diz entender programas sociais como uma agenda de qualquer espectro político.

O desafio político do consórcio, porém, é calibrar a busca pelo “protagonismo”. O tom contundente nas reclamações de privilégios concedidos pelo governo Lula ou pelo Congresso ao Nordeste talvez não seja adequado para Tarcísio, que comanda um Estado de nordestinos e descendentes de nordestinos, ou Leite e Ratinho Júnior, que dependem de parcerias amplas para ir além do poder nos seus Estados. O próprio Zema sabe que o eleitorado do norte mineiro, ligado à Bahia, pode ser decisivo numa eleição presidencial – que diga Aécio Neves, que perdeu ali votos valiosos para Dilma em 2014. Como o personagem Riobaldo, do romance Grande Sertão: Veredas, não conseguiu atravessar o deserto na primeira tentativa.

O governador de Minas, Romeu Zema, relatou os planos do consórcio de governadores do Sul e Sudeste para obter protagonismo nacional. Foto: Washington Alves/Estadão

Pode ser um erro fatal limitar o Nordeste a um reduto lulista a ser combatido.

Nas últimas eleições presidenciais, especialmente de 2018 e 2022, a divisão do mapa brasileiro, marcada pelo Nordeste em vermelho e o Sul e Sudeste em azul, levou muita gente a enxergar um racha político de proporções inéditas no País. Não havia novidade alguma. As divergências de poder entre uma parte e outra do Brasil sempre marcou a história republicana. Acordos e entendimentos, porém, conseguiram consensos e encobrir diferenças acentuadas.

Ainda no início da República, no tempo da política do café com leite, de hegemonia das oligarquias rurais de São Paulo e Minas, as forças dos Estados do Nordeste eram acomodadas nas chapas que disputavam o Palácio do Catete. De 26 eleições presidenciais em períodos democráticos, o Sul e Sudeste só elegeram chapas “puro-sangue” em nove oportunidades, sendo que em duas delas, 2010 e 2014, o principal puxador de votos era um pernambucano, Luiz Inácio Lula da Silva.

Ultrapassa a simbologia que, na primeira eleição, em 1891, o Congresso elegeu dois nordestinos, ou para ser mais exato, dois alagoanos, para presidente e vice. Não era uma chapa “puro-sangue” do Nordeste porque o marechal Deodoro da Fonseca, líder do golpe militar que derrubou a monarquia, e Floriano Peixoto, foram eleitos em disputas separadas. Quem começou mesmo a tradição de acordos entre Nordeste e Sudeste foi a dupla formada pelo advogado paulista Prudente de Moraes e o médico baiano Manuel Vitorino, eleitos presidente e vice em 1894.

O antigo Norte Agrário, na definição do historiador Evaldo Cabral de Melo, perdeu a posição de maior economia brasileira em 1870, com o apogeu dos produtores de café paulistas e cariocas das margens do Rio Paraíba do Sul. Mas quase sempre esteve representado nas disputas pelo comando do País.

Em 1898, o pernambucano Rosa e Silva foi eleito vice. As três disputas seguintes, quando a força de São Paulo e Minas chegou ao apogeu, os nordestinos ficaram de fora. Mas, em 1914, Urbano Santos, do Maranhão, garantiu a vice. O Nordeste chegaria forte em 1920, com Epitácio Pessoa, da Paraíba, presidente. Até a composição do último pleito da Primeira República teve um representante da região no posto de vice. Vital Soares, da Bahia, e o presidente eleito, o paulista Julio Prestes, não assumiram os cargos. Do lado concorrente, a aliança também contava com um nordestino. O paraibano João Pessoa compôs a chapa de Getúlio Vargas, então presidente do Rio Grande do Sul, que após a derrota tomou o poder.

Getúlio comandou uma ditadura por anos com interventores militares fortes no Nordeste. Era o caso do cearense Juraci Magalhães que chefiou a Bahia. Após o fim do Estado Novo, o gaúcho retornaria ao Catete agora pelo voto direto, em 1950, tendo um potiguar como vice. Café Filho assumiu o governo com o suicídio do presidente.

O gaúcho Getúlio Vargas comandou uma ditadura por anos com interventores militares fortes no Nordeste; quando retornou ao poder pelo voto direto, tinha um potiguar como vice. Foto: Acervo Estadão

Romeu Zema pode até olhar para as eleições de 1955, que teve o conterrâneo Juscelino Kubitschek eleito presidente e o gaúcho João Goulart, vice. Mas Juscelino aproveitou a comoção da morte de Getúlio para derrotar Juarez Távora por apenas 466 mil votos – a oposição quis dar um golpe. Foi uma rara eleição em que o Nordeste rachou. Os usineiros de Pernambuco, Paraíba e Alagoas apoiaram Távora pela sintonia entre Juscelino e João Goulart, herdeiro do getulismo, que concorria na disputa separada para vice. Juscelino só teve maioria na Bahia, Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte. Quase nunca o Nordeste se fragmenta em eleições.

Após os 21 anos de ditadura militar, que teve generais do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Santa Catarina como presidentes ou vices, a tradição de alianças tácitas entre o Nordeste e o Sul e Sudeste voltou. Das dez eleições presidenciais, uma indireta e as demais diretas, apenas em 2018 um nordestino não foi eleito candidato a presidente ou a vice ou atuou como principal puxador de votos. Ainda assim, o paulista Jair Bolsonaro e o gaúcho Hamilton Mourão, de formação militar, não representavam forças municipais nem estaduais.

Representante do sindicalismo do ABC e depois do campo da centro-esquerda do Sudeste, Lula não precisou de intermediários para conquistar o Nordeste. Ele implantou um grupo na Bahia que derrotou o carlismo e ressuscitou o clã Arraes em Pernambuco. A façanha de criar um super reduto eleitoral, formado por nove Estados, não expôs um país fraturado ou algum tipo de pioneirismo, mas a capacidade de entender uma região que nunca teve sintonias claras com o Sul e Sudeste e, ao mesmo tempo, sempre esteve disposta a alianças.

Na história dos acordos entre Sudeste e Nordeste não pode faltar Fernando Henrique Cardoso. No rastro do Plano Real, ele escolheu o senador alagoano Guilherme Palmeira, do PFL, um velho nome das usinas, para compor sua chapa em 1994. José Serra e Sérgio Motta, nomes influentes do PSDB, foram contra. Palmeira teve de se afastar da campanha por conta de denúncia de esquema envolvendo empreiteiras. Remanescente de governos militares, o senador pernambucano Marco Maciel, também do PFL, foi o substituto. Era mais que um representante de oligarquia nordestina. Foi peça-chave nos dois governos tucanos.

Fernando Henrique entrou para o anedotário pelo incômodo de comer buchada de bode e subir em burrinho. A figura pomposa e intelectual do presidente não se adequou a um chapéu de vaqueiro. O tucano deixou como lição para os sábios do Sudeste que, sem composição com o outro lado do Brasil, oligarquias ou eleitores de lá, tudo pode não passar de um grupo que tenta apenas não ser esquecido no debate. Sob certo ângulo, preconceitos contra forças políticas e eleitorados podem se confundir.

A propósito, Tarcísio flertou com a direita exaltada ao fazer o velho discurso da polícia que, para ser eficiente, tem que matar no momento em que o País se choca com mais um massacre promovido por agentes do Estado, desta vez nas periferias nordestinas da Baixada Santista. A visão policialesca e cruel das periferias talvez seja um bom tema para reuniões de governadores, independentemente da região.

Quase o Nordeste não aparece nas histórias da chamada Revolução de 1930, que pôs abaixo a República Velha. Um cearense, no entanto, foi o responsável em consolidar o movimento na região e garantir a tomada do poder nacional pelo grupo de Getúlio Vargas. O então capitão Juarez Távora ganhou a alcunha de “vice-rei do norte” depois de tirar do jogo as oligarquias que resistiam. Sem apoio de uma figura nordestina os gaúchos teriam dificuldades para consolidar o golpe.

Távora conhecia os sertões desde que atuou na Coluna Miguel Costa-Prestes, que percorreu o interior brasileiro para se posicionar contra o governo federal. Getúlio o nomeou delegado militar do Norte-Nordeste e pôde assim, na composição com uma força da região, seguir no Palácio do Catete.

Sem apoio do então capitão Juarez Távora (foto), uma figura nordestina, os gaúchos de Getúlio Vargas teriam dificuldades para consolidar o golpe Foto: Acervo Estadão

Na História, lideranças do Sul e Sudeste se dividiram entre as que buscavam o consenso nacional – ou o poder do País, como queiram – e aquelas que tentaram a hegemonia apostando apenas na “pujança” do Sul Maravilha.

Em entrevista às jornalistas Mônica Gugliano e Andreza Matais, aqui do Estadão, o governador de Minas, Romeu Zema, relatou os planos do consórcio de governadores do Sul e Sudeste para obter protagonismo nacional. Encontros de chefes de Executivo de regiões visando pautas em comum sempre foram recorrentes. Os governadores nordestinos têm até tradição nisso. É claro que chama a atenção o fato do consórcio, à exceção do Espírito Santo, ser formado por nomes de oposição ao Palácio do Planalto. Mais que isso. Ao menos Zema, Tarcísio, Eduardo Leite e Ratinho Júnior são postulantes à Presidência.

Zema propõe uma direita que não seja “encrenqueira”, sem “exaltação”. Fala do tempo da política anti-vacina de Jair Bolsonaro sem meias palavras, assim como diz entender programas sociais como uma agenda de qualquer espectro político.

O desafio político do consórcio, porém, é calibrar a busca pelo “protagonismo”. O tom contundente nas reclamações de privilégios concedidos pelo governo Lula ou pelo Congresso ao Nordeste talvez não seja adequado para Tarcísio, que comanda um Estado de nordestinos e descendentes de nordestinos, ou Leite e Ratinho Júnior, que dependem de parcerias amplas para ir além do poder nos seus Estados. O próprio Zema sabe que o eleitorado do norte mineiro, ligado à Bahia, pode ser decisivo numa eleição presidencial – que diga Aécio Neves, que perdeu ali votos valiosos para Dilma em 2014. Como o personagem Riobaldo, do romance Grande Sertão: Veredas, não conseguiu atravessar o deserto na primeira tentativa.

O governador de Minas, Romeu Zema, relatou os planos do consórcio de governadores do Sul e Sudeste para obter protagonismo nacional. Foto: Washington Alves/Estadão

Pode ser um erro fatal limitar o Nordeste a um reduto lulista a ser combatido.

Nas últimas eleições presidenciais, especialmente de 2018 e 2022, a divisão do mapa brasileiro, marcada pelo Nordeste em vermelho e o Sul e Sudeste em azul, levou muita gente a enxergar um racha político de proporções inéditas no País. Não havia novidade alguma. As divergências de poder entre uma parte e outra do Brasil sempre marcou a história republicana. Acordos e entendimentos, porém, conseguiram consensos e encobrir diferenças acentuadas.

Ainda no início da República, no tempo da política do café com leite, de hegemonia das oligarquias rurais de São Paulo e Minas, as forças dos Estados do Nordeste eram acomodadas nas chapas que disputavam o Palácio do Catete. De 26 eleições presidenciais em períodos democráticos, o Sul e Sudeste só elegeram chapas “puro-sangue” em nove oportunidades, sendo que em duas delas, 2010 e 2014, o principal puxador de votos era um pernambucano, Luiz Inácio Lula da Silva.

Ultrapassa a simbologia que, na primeira eleição, em 1891, o Congresso elegeu dois nordestinos, ou para ser mais exato, dois alagoanos, para presidente e vice. Não era uma chapa “puro-sangue” do Nordeste porque o marechal Deodoro da Fonseca, líder do golpe militar que derrubou a monarquia, e Floriano Peixoto, foram eleitos em disputas separadas. Quem começou mesmo a tradição de acordos entre Nordeste e Sudeste foi a dupla formada pelo advogado paulista Prudente de Moraes e o médico baiano Manuel Vitorino, eleitos presidente e vice em 1894.

O antigo Norte Agrário, na definição do historiador Evaldo Cabral de Melo, perdeu a posição de maior economia brasileira em 1870, com o apogeu dos produtores de café paulistas e cariocas das margens do Rio Paraíba do Sul. Mas quase sempre esteve representado nas disputas pelo comando do País.

Em 1898, o pernambucano Rosa e Silva foi eleito vice. As três disputas seguintes, quando a força de São Paulo e Minas chegou ao apogeu, os nordestinos ficaram de fora. Mas, em 1914, Urbano Santos, do Maranhão, garantiu a vice. O Nordeste chegaria forte em 1920, com Epitácio Pessoa, da Paraíba, presidente. Até a composição do último pleito da Primeira República teve um representante da região no posto de vice. Vital Soares, da Bahia, e o presidente eleito, o paulista Julio Prestes, não assumiram os cargos. Do lado concorrente, a aliança também contava com um nordestino. O paraibano João Pessoa compôs a chapa de Getúlio Vargas, então presidente do Rio Grande do Sul, que após a derrota tomou o poder.

Getúlio comandou uma ditadura por anos com interventores militares fortes no Nordeste. Era o caso do cearense Juraci Magalhães que chefiou a Bahia. Após o fim do Estado Novo, o gaúcho retornaria ao Catete agora pelo voto direto, em 1950, tendo um potiguar como vice. Café Filho assumiu o governo com o suicídio do presidente.

O gaúcho Getúlio Vargas comandou uma ditadura por anos com interventores militares fortes no Nordeste; quando retornou ao poder pelo voto direto, tinha um potiguar como vice. Foto: Acervo Estadão

Romeu Zema pode até olhar para as eleições de 1955, que teve o conterrâneo Juscelino Kubitschek eleito presidente e o gaúcho João Goulart, vice. Mas Juscelino aproveitou a comoção da morte de Getúlio para derrotar Juarez Távora por apenas 466 mil votos – a oposição quis dar um golpe. Foi uma rara eleição em que o Nordeste rachou. Os usineiros de Pernambuco, Paraíba e Alagoas apoiaram Távora pela sintonia entre Juscelino e João Goulart, herdeiro do getulismo, que concorria na disputa separada para vice. Juscelino só teve maioria na Bahia, Maranhão, Piauí e Rio Grande do Norte. Quase nunca o Nordeste se fragmenta em eleições.

Após os 21 anos de ditadura militar, que teve generais do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Santa Catarina como presidentes ou vices, a tradição de alianças tácitas entre o Nordeste e o Sul e Sudeste voltou. Das dez eleições presidenciais, uma indireta e as demais diretas, apenas em 2018 um nordestino não foi eleito candidato a presidente ou a vice ou atuou como principal puxador de votos. Ainda assim, o paulista Jair Bolsonaro e o gaúcho Hamilton Mourão, de formação militar, não representavam forças municipais nem estaduais.

Representante do sindicalismo do ABC e depois do campo da centro-esquerda do Sudeste, Lula não precisou de intermediários para conquistar o Nordeste. Ele implantou um grupo na Bahia que derrotou o carlismo e ressuscitou o clã Arraes em Pernambuco. A façanha de criar um super reduto eleitoral, formado por nove Estados, não expôs um país fraturado ou algum tipo de pioneirismo, mas a capacidade de entender uma região que nunca teve sintonias claras com o Sul e Sudeste e, ao mesmo tempo, sempre esteve disposta a alianças.

Na história dos acordos entre Sudeste e Nordeste não pode faltar Fernando Henrique Cardoso. No rastro do Plano Real, ele escolheu o senador alagoano Guilherme Palmeira, do PFL, um velho nome das usinas, para compor sua chapa em 1994. José Serra e Sérgio Motta, nomes influentes do PSDB, foram contra. Palmeira teve de se afastar da campanha por conta de denúncia de esquema envolvendo empreiteiras. Remanescente de governos militares, o senador pernambucano Marco Maciel, também do PFL, foi o substituto. Era mais que um representante de oligarquia nordestina. Foi peça-chave nos dois governos tucanos.

Fernando Henrique entrou para o anedotário pelo incômodo de comer buchada de bode e subir em burrinho. A figura pomposa e intelectual do presidente não se adequou a um chapéu de vaqueiro. O tucano deixou como lição para os sábios do Sudeste que, sem composição com o outro lado do Brasil, oligarquias ou eleitores de lá, tudo pode não passar de um grupo que tenta apenas não ser esquecido no debate. Sob certo ângulo, preconceitos contra forças políticas e eleitorados podem se confundir.

A propósito, Tarcísio flertou com a direita exaltada ao fazer o velho discurso da polícia que, para ser eficiente, tem que matar no momento em que o País se choca com mais um massacre promovido por agentes do Estado, desta vez nas periferias nordestinas da Baixada Santista. A visão policialesca e cruel das periferias talvez seja um bom tema para reuniões de governadores, independentemente da região.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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