ESPECIAL PARA O ESTADÃO - Ao observar os impactos do isolamento social provocado pela pandemia, a juíza Marina Freire do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, da Comarca de Bauru, questionou de que maneira os efeitos do lockdown poderiam estar sendo interpretados pelas crianças que vivem em casas de acolhimento. Com mais de sete anos de atuação na Vara da Infância e Juventude, a reflexão partiu de uma experiência pessoal, quando percebeu que seus próprios filhos estavam chateados devido ao contexto da covid-19.
“Eu pensei, ‘se meus filhos estão sofrendo com o pai e a mãe dentro de casa, imagina essas crianças que não têm ninguém”, comentou. Apaixonada por livros infantis e incomodada com a situação, Marina desenvolveu o projeto ‘Leitura Amiga’, que consiste na leitura de livros para crianças e adolescentes de 3 a 17 anos de forma virtual e visa levar afeto e segurança psíquica aos jovens por meio da literatura.
No começo, Marina procurou por conta própria o contato dos abrigos. O mundo estava vivendo o “boom” das lives nas redes sociais e a juíza aproveitou a tendência para oferecer espaço às leituras. “Comecei a ler todos os dias para essas crianças, inclusive aos sábados e domingos, e virou um hábito essa doação do tempo”, conta. Após criar um perfil nas rede sociais para o projeto, o interesse pela iniciativa cresceu e novos voluntários surgiram.
Acolhimento
Segundo Marina, para além de incentivar a interação com as histórias, o projeto possibilita uma perspectiva diferente sobre o mundo e auxilia as crianças e jovens no processo de socialização. “Comecei a perceber que o ganho da leitura à noite não era só ler uma história, mas era o fato dessa troca, desse carinho”, diz.
A iniciativa recebeu o apoio da Corregedoria-Geral de Justiça (CGJ) no final de 2022, e conta com a ajuda do órgão para divulgar as lives. Atualmente, conta com mais de 130 voluntários e 35 abrigos cadastrados para participar das leituras coletivas. Para acompanhar as histórias, há todo um ritual: as crianças se arrumam, tomam banho e se reúnem em frente ao computador para ouvir contos que variam entre fábulas infantis e bibliografias de personalidades notórias.
Por ser online, o projeto atinge voluntários de todo o Brasil, e as crianças passam a ter contato com diferentes pessoas e sotaques. Os próprios adolescentes já se disponibilizaram para ler as histórias para as crianças mais novas “Foram muitos benefícios colaterais que a gente alcançou com a prática.”
Percepção
Marina pontua que a interação é muito positiva para o desenvolvimento dos jovens e para a forma como olham para a própria imagem do juiz. “É aquela coisa da corrente do bem. As crianças também aprendem a desmistificar a figura do juiz, porque para eles o juiz foi quem tirou o pai e a mãe deles”, conta. “E quando estamos dando afeto e mostrando outras versões, acho que você consegue humanizar mais a figura do juiz.”
Os abrigos acolhem crianças que, geralmente, sofrem maus tratos dentro de casa ou estão longe dos pais que se encontram presos. Marina comenta que estes eram os principais casos com os quais trabalhava quando atuava na Vara da Infância, e se emociona ao lembrar das histórias. Para ela, o projeto consegue ofertar, de maneira lúdica, um tempo de qualidade que as crianças tanto sentem falta.
“Elas gostam quando mexemos com elas e falamos o nome delas”, diz Marina, que faz questão de reiterar a importância desses momentos da vida das crianças, histórias que ficarão marcadas na memórias de cada uma. “Eu quero que as crianças se divirtam. A vida já é bem difícil para elas que estão longe do pai e da mãe”, pontua. “Quero momentos de alegria e felicidade, coisas que tragam realmente o momento de satisfação”, diz.