Lobby da Taurus no governo Lula abre mercado do 'fuzil do Bolsonaro' para militares


Especialistas criticam um novo tipo de acesso a armas que não são adequadas para defesa pessoal; em nota, Força afirma que reuniões com representantes da indústria não afetam decisões técnicas e associação do setor nega influência

Por Vinícius Valfré
Atualização:

BRASÍLIA – Dos oito modelos de fuzis produzidos pela Taurus, sete estão contemplados pelo Exército na lista de armas que podem ser vendidas para integrantes das Forças Armadas e das polícias militares terem em casa. Os militares são um novo público alvo do comércio legal de armas de maior potencial destrutivo, desde que os decretos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) limitaram fortemente o acesso de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) a armas de uso restrito, como os fuzis e as pistolas 9 mm.

Ao longo de 2023, o principal executivo da Taurus, Salesio Nuhs, foi recebido quatro vezes no Ministério da Defesa e no Comando do Exército. O Estadão apurou que, entre as pautas levadas ao governo, estava a preocupação com as restrições ao mercado.

A primeira agenda do executivo no novo governo foi no dia 11 de janeiro, com o então comandante do Exército Julio Cesar de Arruda – três dias após a destruição da Praça dos Três Poderes. O atual comandante, general Tomás Paiva, foi nomeado em 21 de janeiro. Ele recebeu Nuhs em 1º de fevereiro, seis dias antes da cerimônia de posse.

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Especialistas consultados pela reportagem veem com “estranhamento” os parâmetros usados para permitir o acesso a fuzis, não adequados para defesa pessoal, e ainda alertam para o risco de essas armas acabarem nas mãos de criminosos (veja mais abaixo).

Em nota, o Exército afirma que reuniões de representantes de segmentos com instituições regulatórias “são consideradas normais, pois, na sua essência, tendem a contribuir para o aperfeiçoamento de práticas, como usuários finais dos sistemas existentes”. Além disso, destacou que “em momento algum, as referidas interações interferem nas decisões e processos conduzidos pelo Comando do Exército”. A Taurus não se manifestou. A principal associação do setor nega influência da empresa. (leia mais abaixo)

Modelos de fuzis e carabinas disponíveis no site oficial da Taurus Foto: Reprodução/Taurus
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O mercado nacional representou 30% do faturamento global da Taurus em 2022 com armas e acessórios. A maior parte das vendas foi para civis: 64%. As vendas feitas para membros de instituições, público que agora desponta como o mais atrativo, representaram 29%, segundo dados apresentados a investidores. As instituições, como as políticas, eram 7% dos negócios.

Os sete fuzis da Taurus que podem ser comprados por militares são variações do modelo T4, um equipamento não recomendado para defesa pessoal, mas para “ataque”. O Exército das Filipinas é um dos principais clientes da empresa com sede no Rio Grande do Sul.

Desde antes de chegar à presidência, Jair Bolsonaro (PL) tenta popularizar o T4. Em visita a um estande da empresa em 2017, o então deputado chamou a arma de “nosso T4″ e afirmou que “se eu chegar lá, você, cidadão de bem, no primeiro momento vai ter isso aqui em casa (exibindo uma pistola). Você, produtor rural, no que depender de mim, vai ter isso aqui também (exibindo o T4)”.

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Uma das variações do fuzil T4, da Taurus; arma poderá ser comprada por militares para acervos pessoais Foto: Reprodução/Taurus

Na gestão dele, civis foram autorizados a adquirir o T4 e outros modelos. “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. O povo armado jamais será escravizado. Aí o idiota: ‘ah, tem que comprar feijão’. Se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”, disse a apoiadores em agosto de 2021.

Mais tarde, investigações mostraram que alguns deles foram parar nas mãos do crime organizado depois de terem sido comprados legalmente. O recadastramento de armas exigido pela Polícia Federal em 2023 não recebeu informações sobre 6,1 mil armas de uso restrito, cujo paradeiro é desconhecido.

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Por que o Exército liberou os fuzis da Taurus?

Ao definir regras para acervos pessoais de militares, policiais militares e integrantes de outras instituições, o Exército vedou a compra de armas automáticas, que disparam rajadas, e armas longas semiautomáticas que produzam energia, em um teste específico, superior a 1.750 joules (uma unidade de medição de energia cinética). As variações do T4, que têm calibre 5,56 mm x 45 mm, geram 1.748,63.

A reportagem perguntou ao Exército quais foram os critérios utilizados para a definição dos 1.750 joules como parâmetro, e não, por exemplo, 1.740 ou 1.760. Não houve uma resposta objetiva.

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Em nota ao Estadão, o Comando do Exército informou que “as referidas portarias regularam o parâmetro de até 1.750 joules - próximo ao limite de armas de uso permitido, ou seja, com energia cinética mais baixa - para que o referido segmento pudesse adquirir armas de uso restrito, dentro da faixa prevista para apenas 8 (oito) calibres de uso restrito”.

O Exército também considera que as novas regras representam uma restrição ao que foi posto em vigor no governo Bolsonaro. Isso porque a permissão não trazia limites para armas restritas entre as seis que os militares podiam comprar para acervos. Até as automáticas estavam liberadas.

“A portaria anterior possibilitava a aquisição de até seis armas de uso permitido ou restrito. A portaria atual restringe o número de armas de uso restrito para o máximo de cinco armas”, informou.

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Entretanto, a portaria mais recente não retoma as regras de antes do governo Bolsonaro, algo que o governo Lula buscou fazer com relação ao armamento de civis. Até 2018, os militares podiam comprar até duas armas de uso restrito para ter em casa, sendo elas de calibres específicos. Os de fuzis não estavam entre eles.

Como mostrou o Estadão, duas portarias do Comando Logístico do Exército, publicadas em dezembro e janeiro, liberaram até cinco fuzis para acervos de integrantes das Forças Armadas, policiais militares, bombeiros militares, membros da Agência Brasileira de Inteligência e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

A medida que contemplava policiais foi suspensa temporariamente. A das Forças Armadas começa a valer nesta quinta-feira, 1º. É estimado em cerca de 350 mil o total de integrantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica no serviço ativo, além dos inativos, também contemplados pela Portaria 164.

Taurus tem loja para lobby em Brasília: “É um desafio convencer esse pessoal”

Com a derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022, uma das principais preocupações do CEO da Taurus, Salesio Nuhs, era com a provável reclassificação das pistolas 9 mm como sendo de uso restrito. No governo anterior, elas foram permitidas para civis, mas voltaram a ser restringidas em 2023.

O Estadão recuperou uma apresentação feita pelo executivo a investidores da Taurus em dezembro de 2022. “É um desafio para a gente convencer esse pessoal que o 9 mm tem que continuar sendo um calibre de uso permitido. Se isso acontecer, 90% do mercado interno está garantido”, declarou.

Na reunião, Salesio Nuhs confirmou o lobby junto ao governo e parlamentares ao dar como exemplo a finalidade da loja conceito da marca inaugurada em Brasília em 20221. “Ela tem uma missão: receber os políticos e mostrar para os políticos que o nosso negócio é um negócio legal, grande. Lembro que quando o Arthur Lira (presidente da Câmara) entrou, ele colocou o pé e falou: ‘isso aqui é uma loja de arma?’”, contou aos investidores.

Com a derrota de Bolsonaro, Salesio Nuhs mudou o tom e passou a criticar a política armamentista do ex-presidente. Até então, o líder da fabricante de armas vinha comemorando o sucesso no mercado nacional. Ele chegou a presentear Bolsonaro com um modelo personalizado de um revólver calibre .38 feito de grafeno e fez promoção de T4 no dia 7 de Setembro de 2022, data que virou um marco para os apoiadores de Bolsonaro.

Bolsonaro é presenteado por executivo da Taurus, Salesio Nuhs, com revólver fabricado com grafeno, em 2021 Foto: @taurusarmasofficial via Instagram

Aos investidores, o executivo afirmou que Bolsonaro não ajudou a indústria nacional e não deu segurança jurídica ao segmento.

“Vivemos muito mais anos sem Bolsonaro do que com Bolsonaro. Todo mundo diz que Bolsonaro favoreceu a indústria nacional. Não é verdade. Ele favoreceu as indústrias internacionais. Ele favoreceu o segmento”, disse, antes de prosseguir: “O que precisamos no Brasil é de uma segurança jurídica. Bolsonaro criou um monte de decreto. Aí vem Lula e dá um ‘revogaço’, volta tudo atrás. Que legado ele deixou?”.

Na reunião, Salesio também defendeu mais controle de armamentos pesados, ao contrário do que Bolsonaro fez por portarias e decretos. “Eu sempre digo que nossa segurança jurídica é o controle. Como você quer dar um fuzil para um moleque de 25 anos que nunca teve uma arma de fogo? Tá errado. Tem que ter controle das coisas”, afirmou.

Parâmetro que contempla fuzil da Taurus causa estranhamento, diz especialista

Pesquisador e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o policial federal Roberto Uchoa considera inadequada a medida que permitiu a comercialização de fuzis para acervos pessoais e avalia que o Exército deveria apresentar o estudo que embasou a regra.

“Causa estranhamento o fato de o limite de joules ser quase o necessário para o fuzil T4 estar dentro dos parâmetros. Sabemos que o lobby da indústria de armas é presente ao longo de décadas. O governo precisa ter uma preocupação com isso. Seria bom se as Forças Armadas apresentassem o estudo que embasou. A decisão só cria o estranhamento. Foi para beneficiar A ou B? Não sabemos. Sabemos que temos uma indústria armamentista forte, que tem um estoque de armas para desovar porque a venda caiu drasticamente em 2023 e 2024″, afirmou.

Uchoa não descarta que o objetivo tenha sido criar um novo público alvo para esse tipo de arma após os decretos restritivos. “É um movimento que pode apontar nessa direção, mas só é interessante para a indústria armamentista. Para a sociedade não é. Para a segurança pública muito menos”, frisou.

O policial especialista explica que a conexão entre os mercados legal e ilegal são históricas e que o aval para novos arsenais privados tem o potencial de criar uma nova frente para que criminosos acessem armas que foram comercializadas legalmente.

“Não fazia sentido uma pessoa poder comprar 30 fuzis e continua não fazendo sentido uma pessoa poder comprar um fuzil. Não é uma arma feita para defesa pessoal, é chamada de arma de assalto, de ataque. Se uma já é estranho, imagina cinco”, afirmou.

Gerente de projetos do Instituto Sou da Paz e especialista nas regras para acesso a armas de fogo, Bruno Langeani avalia que o parâmetro do Exército parece ter sido definido sob medida para a Taurus.

“O novo limite parece ter sido feito sob medida para contemplar o fuzil mais vendido da Taurus, ainda que fuzis não sejam armas adequadas a defesa pessoal, que em tese, é o foco da portaria. Sem explicações como foi desenhado o novo limite crescem as suspeitas sobre quem é o beneficiário real da medida”, disse.

Na visão do especialista, a edição das normas pela Força segue foi feita sem estudos de impacto, assim como ocorria no governo Bolsonaro. “Apesar de algumas adequações à nova diretriz do governo Lula, as portarias emitidas pelo Exército seguem sendo feitas sem estudos de impacto e sem consulta a órgãos com atribuições correlatas, da mesma forma que ocorreriam no governo Bolsonaro”, destacou.

Comércio usa regra para fazer promoção e desencalhar fuzis

As portarias do Exército com regras para acervos particulares de militares criaram uma janela de oportunidade para comerciantes de armas. Em grupos especializados, lojistas passaram a incentivar preços especiais para atrair militares e desencalhar os produtos do estoque.

Loja de armas do Rio Grande do Sul oferece preços especiais para militares após portaria do Exército permitir até 5 fuzis em acervos pessoais Foto: Reprodução/fireeagle-armory.com

O mercado estava paralisado desde o início de janeiro, quando decretos de Lula barraram novos CACs e limitaram os tipos de armas para civis. Uma loja de Rio Grande do Sul, por exemplo, onde está a sede da Taurus, anuncia preços especiais para integrantes das Forças Armadas.

“A campanha tem como objetivo valorizar militares do Exército Brasileiro oferecendo descontos exclusivos nos fuzis e carabinas na plataforma 5.56 mm x 45 mm e 9 x19 mm”, diz o site da empresa. “São a escolha ideal para aqueles que dedicam suas vidas à defesa da pátria”.

Um fuzil T4 pode custar entre R$ 15 mil e R$ 20 mil. Uma pistola 9 mm, cerca de R$ 6 mil.

Indústria de armas nega influência sobre decisão do Exército

No dia seguinte à publicação desta reportagem, a Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições (Aniam) emitiu uma nota negando influência da Taurus sobre a decisão do Exército.

A Aniam é presidida por Salesio Nuhs, CEO da Taurus. A nota afirma que a empresa “não teve influência sobre a portaria, que inclusive permite o acesso a fuzis de vários outros fabricantes”.

A entidade também ressalta considerar legítimo que os representantes do setor “levem às autoridades competentes suas posições, opiniões e ponderações sobre os temas que afetam essa indústria”.

A Aniam destaca, ainda, que as suas associadas são empresas estratégicas de defesa e “integram um setor fundamental e estratégico para o país, reconhecido como tal pela Estratégia Nacional de Defesa”.

O texto não faz considerações sobre o fato de a decisão do Exército ter aberto o mercado do fuzil da Taurus, maior fabricante nacional, depois da queda nas vendas no mercado interno em 2023.

Também não traz observações sobre a decisão do próprio Exército de suspender a portaria que autorizou a compra de até cinco fuzis por policiais militares. A suspensão ocorreu após o Estadão apontar impactos da medida na segurança pública.

“A Aniam continuará atuando em defesa dos legítimos interesses de suas associadas, de maneira ética, transparente e responsável, levando aos órgãos públicos as informações que considerar úteis ou necessárias ao desenvolvimento das políticas públicas para o setor”, frisou.

BRASÍLIA – Dos oito modelos de fuzis produzidos pela Taurus, sete estão contemplados pelo Exército na lista de armas que podem ser vendidas para integrantes das Forças Armadas e das polícias militares terem em casa. Os militares são um novo público alvo do comércio legal de armas de maior potencial destrutivo, desde que os decretos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) limitaram fortemente o acesso de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) a armas de uso restrito, como os fuzis e as pistolas 9 mm.

Ao longo de 2023, o principal executivo da Taurus, Salesio Nuhs, foi recebido quatro vezes no Ministério da Defesa e no Comando do Exército. O Estadão apurou que, entre as pautas levadas ao governo, estava a preocupação com as restrições ao mercado.

A primeira agenda do executivo no novo governo foi no dia 11 de janeiro, com o então comandante do Exército Julio Cesar de Arruda – três dias após a destruição da Praça dos Três Poderes. O atual comandante, general Tomás Paiva, foi nomeado em 21 de janeiro. Ele recebeu Nuhs em 1º de fevereiro, seis dias antes da cerimônia de posse.

Especialistas consultados pela reportagem veem com “estranhamento” os parâmetros usados para permitir o acesso a fuzis, não adequados para defesa pessoal, e ainda alertam para o risco de essas armas acabarem nas mãos de criminosos (veja mais abaixo).

Em nota, o Exército afirma que reuniões de representantes de segmentos com instituições regulatórias “são consideradas normais, pois, na sua essência, tendem a contribuir para o aperfeiçoamento de práticas, como usuários finais dos sistemas existentes”. Além disso, destacou que “em momento algum, as referidas interações interferem nas decisões e processos conduzidos pelo Comando do Exército”. A Taurus não se manifestou. A principal associação do setor nega influência da empresa. (leia mais abaixo)

Modelos de fuzis e carabinas disponíveis no site oficial da Taurus Foto: Reprodução/Taurus

O mercado nacional representou 30% do faturamento global da Taurus em 2022 com armas e acessórios. A maior parte das vendas foi para civis: 64%. As vendas feitas para membros de instituições, público que agora desponta como o mais atrativo, representaram 29%, segundo dados apresentados a investidores. As instituições, como as políticas, eram 7% dos negócios.

Os sete fuzis da Taurus que podem ser comprados por militares são variações do modelo T4, um equipamento não recomendado para defesa pessoal, mas para “ataque”. O Exército das Filipinas é um dos principais clientes da empresa com sede no Rio Grande do Sul.

Desde antes de chegar à presidência, Jair Bolsonaro (PL) tenta popularizar o T4. Em visita a um estande da empresa em 2017, o então deputado chamou a arma de “nosso T4″ e afirmou que “se eu chegar lá, você, cidadão de bem, no primeiro momento vai ter isso aqui em casa (exibindo uma pistola). Você, produtor rural, no que depender de mim, vai ter isso aqui também (exibindo o T4)”.

Uma das variações do fuzil T4, da Taurus; arma poderá ser comprada por militares para acervos pessoais Foto: Reprodução/Taurus

Na gestão dele, civis foram autorizados a adquirir o T4 e outros modelos. “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. O povo armado jamais será escravizado. Aí o idiota: ‘ah, tem que comprar feijão’. Se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”, disse a apoiadores em agosto de 2021.

Mais tarde, investigações mostraram que alguns deles foram parar nas mãos do crime organizado depois de terem sido comprados legalmente. O recadastramento de armas exigido pela Polícia Federal em 2023 não recebeu informações sobre 6,1 mil armas de uso restrito, cujo paradeiro é desconhecido.

Por que o Exército liberou os fuzis da Taurus?

Ao definir regras para acervos pessoais de militares, policiais militares e integrantes de outras instituições, o Exército vedou a compra de armas automáticas, que disparam rajadas, e armas longas semiautomáticas que produzam energia, em um teste específico, superior a 1.750 joules (uma unidade de medição de energia cinética). As variações do T4, que têm calibre 5,56 mm x 45 mm, geram 1.748,63.

A reportagem perguntou ao Exército quais foram os critérios utilizados para a definição dos 1.750 joules como parâmetro, e não, por exemplo, 1.740 ou 1.760. Não houve uma resposta objetiva.

Em nota ao Estadão, o Comando do Exército informou que “as referidas portarias regularam o parâmetro de até 1.750 joules - próximo ao limite de armas de uso permitido, ou seja, com energia cinética mais baixa - para que o referido segmento pudesse adquirir armas de uso restrito, dentro da faixa prevista para apenas 8 (oito) calibres de uso restrito”.

O Exército também considera que as novas regras representam uma restrição ao que foi posto em vigor no governo Bolsonaro. Isso porque a permissão não trazia limites para armas restritas entre as seis que os militares podiam comprar para acervos. Até as automáticas estavam liberadas.

“A portaria anterior possibilitava a aquisição de até seis armas de uso permitido ou restrito. A portaria atual restringe o número de armas de uso restrito para o máximo de cinco armas”, informou.

Entretanto, a portaria mais recente não retoma as regras de antes do governo Bolsonaro, algo que o governo Lula buscou fazer com relação ao armamento de civis. Até 2018, os militares podiam comprar até duas armas de uso restrito para ter em casa, sendo elas de calibres específicos. Os de fuzis não estavam entre eles.

Como mostrou o Estadão, duas portarias do Comando Logístico do Exército, publicadas em dezembro e janeiro, liberaram até cinco fuzis para acervos de integrantes das Forças Armadas, policiais militares, bombeiros militares, membros da Agência Brasileira de Inteligência e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

A medida que contemplava policiais foi suspensa temporariamente. A das Forças Armadas começa a valer nesta quinta-feira, 1º. É estimado em cerca de 350 mil o total de integrantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica no serviço ativo, além dos inativos, também contemplados pela Portaria 164.

Taurus tem loja para lobby em Brasília: “É um desafio convencer esse pessoal”

Com a derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022, uma das principais preocupações do CEO da Taurus, Salesio Nuhs, era com a provável reclassificação das pistolas 9 mm como sendo de uso restrito. No governo anterior, elas foram permitidas para civis, mas voltaram a ser restringidas em 2023.

O Estadão recuperou uma apresentação feita pelo executivo a investidores da Taurus em dezembro de 2022. “É um desafio para a gente convencer esse pessoal que o 9 mm tem que continuar sendo um calibre de uso permitido. Se isso acontecer, 90% do mercado interno está garantido”, declarou.

Na reunião, Salesio Nuhs confirmou o lobby junto ao governo e parlamentares ao dar como exemplo a finalidade da loja conceito da marca inaugurada em Brasília em 20221. “Ela tem uma missão: receber os políticos e mostrar para os políticos que o nosso negócio é um negócio legal, grande. Lembro que quando o Arthur Lira (presidente da Câmara) entrou, ele colocou o pé e falou: ‘isso aqui é uma loja de arma?’”, contou aos investidores.

Com a derrota de Bolsonaro, Salesio Nuhs mudou o tom e passou a criticar a política armamentista do ex-presidente. Até então, o líder da fabricante de armas vinha comemorando o sucesso no mercado nacional. Ele chegou a presentear Bolsonaro com um modelo personalizado de um revólver calibre .38 feito de grafeno e fez promoção de T4 no dia 7 de Setembro de 2022, data que virou um marco para os apoiadores de Bolsonaro.

Bolsonaro é presenteado por executivo da Taurus, Salesio Nuhs, com revólver fabricado com grafeno, em 2021 Foto: @taurusarmasofficial via Instagram

Aos investidores, o executivo afirmou que Bolsonaro não ajudou a indústria nacional e não deu segurança jurídica ao segmento.

“Vivemos muito mais anos sem Bolsonaro do que com Bolsonaro. Todo mundo diz que Bolsonaro favoreceu a indústria nacional. Não é verdade. Ele favoreceu as indústrias internacionais. Ele favoreceu o segmento”, disse, antes de prosseguir: “O que precisamos no Brasil é de uma segurança jurídica. Bolsonaro criou um monte de decreto. Aí vem Lula e dá um ‘revogaço’, volta tudo atrás. Que legado ele deixou?”.

Na reunião, Salesio também defendeu mais controle de armamentos pesados, ao contrário do que Bolsonaro fez por portarias e decretos. “Eu sempre digo que nossa segurança jurídica é o controle. Como você quer dar um fuzil para um moleque de 25 anos que nunca teve uma arma de fogo? Tá errado. Tem que ter controle das coisas”, afirmou.

Parâmetro que contempla fuzil da Taurus causa estranhamento, diz especialista

Pesquisador e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o policial federal Roberto Uchoa considera inadequada a medida que permitiu a comercialização de fuzis para acervos pessoais e avalia que o Exército deveria apresentar o estudo que embasou a regra.

“Causa estranhamento o fato de o limite de joules ser quase o necessário para o fuzil T4 estar dentro dos parâmetros. Sabemos que o lobby da indústria de armas é presente ao longo de décadas. O governo precisa ter uma preocupação com isso. Seria bom se as Forças Armadas apresentassem o estudo que embasou. A decisão só cria o estranhamento. Foi para beneficiar A ou B? Não sabemos. Sabemos que temos uma indústria armamentista forte, que tem um estoque de armas para desovar porque a venda caiu drasticamente em 2023 e 2024″, afirmou.

Uchoa não descarta que o objetivo tenha sido criar um novo público alvo para esse tipo de arma após os decretos restritivos. “É um movimento que pode apontar nessa direção, mas só é interessante para a indústria armamentista. Para a sociedade não é. Para a segurança pública muito menos”, frisou.

O policial especialista explica que a conexão entre os mercados legal e ilegal são históricas e que o aval para novos arsenais privados tem o potencial de criar uma nova frente para que criminosos acessem armas que foram comercializadas legalmente.

“Não fazia sentido uma pessoa poder comprar 30 fuzis e continua não fazendo sentido uma pessoa poder comprar um fuzil. Não é uma arma feita para defesa pessoal, é chamada de arma de assalto, de ataque. Se uma já é estranho, imagina cinco”, afirmou.

Gerente de projetos do Instituto Sou da Paz e especialista nas regras para acesso a armas de fogo, Bruno Langeani avalia que o parâmetro do Exército parece ter sido definido sob medida para a Taurus.

“O novo limite parece ter sido feito sob medida para contemplar o fuzil mais vendido da Taurus, ainda que fuzis não sejam armas adequadas a defesa pessoal, que em tese, é o foco da portaria. Sem explicações como foi desenhado o novo limite crescem as suspeitas sobre quem é o beneficiário real da medida”, disse.

Na visão do especialista, a edição das normas pela Força segue foi feita sem estudos de impacto, assim como ocorria no governo Bolsonaro. “Apesar de algumas adequações à nova diretriz do governo Lula, as portarias emitidas pelo Exército seguem sendo feitas sem estudos de impacto e sem consulta a órgãos com atribuições correlatas, da mesma forma que ocorreriam no governo Bolsonaro”, destacou.

Comércio usa regra para fazer promoção e desencalhar fuzis

As portarias do Exército com regras para acervos particulares de militares criaram uma janela de oportunidade para comerciantes de armas. Em grupos especializados, lojistas passaram a incentivar preços especiais para atrair militares e desencalhar os produtos do estoque.

Loja de armas do Rio Grande do Sul oferece preços especiais para militares após portaria do Exército permitir até 5 fuzis em acervos pessoais Foto: Reprodução/fireeagle-armory.com

O mercado estava paralisado desde o início de janeiro, quando decretos de Lula barraram novos CACs e limitaram os tipos de armas para civis. Uma loja de Rio Grande do Sul, por exemplo, onde está a sede da Taurus, anuncia preços especiais para integrantes das Forças Armadas.

“A campanha tem como objetivo valorizar militares do Exército Brasileiro oferecendo descontos exclusivos nos fuzis e carabinas na plataforma 5.56 mm x 45 mm e 9 x19 mm”, diz o site da empresa. “São a escolha ideal para aqueles que dedicam suas vidas à defesa da pátria”.

Um fuzil T4 pode custar entre R$ 15 mil e R$ 20 mil. Uma pistola 9 mm, cerca de R$ 6 mil.

Indústria de armas nega influência sobre decisão do Exército

No dia seguinte à publicação desta reportagem, a Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições (Aniam) emitiu uma nota negando influência da Taurus sobre a decisão do Exército.

A Aniam é presidida por Salesio Nuhs, CEO da Taurus. A nota afirma que a empresa “não teve influência sobre a portaria, que inclusive permite o acesso a fuzis de vários outros fabricantes”.

A entidade também ressalta considerar legítimo que os representantes do setor “levem às autoridades competentes suas posições, opiniões e ponderações sobre os temas que afetam essa indústria”.

A Aniam destaca, ainda, que as suas associadas são empresas estratégicas de defesa e “integram um setor fundamental e estratégico para o país, reconhecido como tal pela Estratégia Nacional de Defesa”.

O texto não faz considerações sobre o fato de a decisão do Exército ter aberto o mercado do fuzil da Taurus, maior fabricante nacional, depois da queda nas vendas no mercado interno em 2023.

Também não traz observações sobre a decisão do próprio Exército de suspender a portaria que autorizou a compra de até cinco fuzis por policiais militares. A suspensão ocorreu após o Estadão apontar impactos da medida na segurança pública.

“A Aniam continuará atuando em defesa dos legítimos interesses de suas associadas, de maneira ética, transparente e responsável, levando aos órgãos públicos as informações que considerar úteis ou necessárias ao desenvolvimento das políticas públicas para o setor”, frisou.

BRASÍLIA – Dos oito modelos de fuzis produzidos pela Taurus, sete estão contemplados pelo Exército na lista de armas que podem ser vendidas para integrantes das Forças Armadas e das polícias militares terem em casa. Os militares são um novo público alvo do comércio legal de armas de maior potencial destrutivo, desde que os decretos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) limitaram fortemente o acesso de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) a armas de uso restrito, como os fuzis e as pistolas 9 mm.

Ao longo de 2023, o principal executivo da Taurus, Salesio Nuhs, foi recebido quatro vezes no Ministério da Defesa e no Comando do Exército. O Estadão apurou que, entre as pautas levadas ao governo, estava a preocupação com as restrições ao mercado.

A primeira agenda do executivo no novo governo foi no dia 11 de janeiro, com o então comandante do Exército Julio Cesar de Arruda – três dias após a destruição da Praça dos Três Poderes. O atual comandante, general Tomás Paiva, foi nomeado em 21 de janeiro. Ele recebeu Nuhs em 1º de fevereiro, seis dias antes da cerimônia de posse.

Especialistas consultados pela reportagem veem com “estranhamento” os parâmetros usados para permitir o acesso a fuzis, não adequados para defesa pessoal, e ainda alertam para o risco de essas armas acabarem nas mãos de criminosos (veja mais abaixo).

Em nota, o Exército afirma que reuniões de representantes de segmentos com instituições regulatórias “são consideradas normais, pois, na sua essência, tendem a contribuir para o aperfeiçoamento de práticas, como usuários finais dos sistemas existentes”. Além disso, destacou que “em momento algum, as referidas interações interferem nas decisões e processos conduzidos pelo Comando do Exército”. A Taurus não se manifestou. A principal associação do setor nega influência da empresa. (leia mais abaixo)

Modelos de fuzis e carabinas disponíveis no site oficial da Taurus Foto: Reprodução/Taurus

O mercado nacional representou 30% do faturamento global da Taurus em 2022 com armas e acessórios. A maior parte das vendas foi para civis: 64%. As vendas feitas para membros de instituições, público que agora desponta como o mais atrativo, representaram 29%, segundo dados apresentados a investidores. As instituições, como as políticas, eram 7% dos negócios.

Os sete fuzis da Taurus que podem ser comprados por militares são variações do modelo T4, um equipamento não recomendado para defesa pessoal, mas para “ataque”. O Exército das Filipinas é um dos principais clientes da empresa com sede no Rio Grande do Sul.

Desde antes de chegar à presidência, Jair Bolsonaro (PL) tenta popularizar o T4. Em visita a um estande da empresa em 2017, o então deputado chamou a arma de “nosso T4″ e afirmou que “se eu chegar lá, você, cidadão de bem, no primeiro momento vai ter isso aqui em casa (exibindo uma pistola). Você, produtor rural, no que depender de mim, vai ter isso aqui também (exibindo o T4)”.

Uma das variações do fuzil T4, da Taurus; arma poderá ser comprada por militares para acervos pessoais Foto: Reprodução/Taurus

Na gestão dele, civis foram autorizados a adquirir o T4 e outros modelos. “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. O povo armado jamais será escravizado. Aí o idiota: ‘ah, tem que comprar feijão’. Se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”, disse a apoiadores em agosto de 2021.

Mais tarde, investigações mostraram que alguns deles foram parar nas mãos do crime organizado depois de terem sido comprados legalmente. O recadastramento de armas exigido pela Polícia Federal em 2023 não recebeu informações sobre 6,1 mil armas de uso restrito, cujo paradeiro é desconhecido.

Por que o Exército liberou os fuzis da Taurus?

Ao definir regras para acervos pessoais de militares, policiais militares e integrantes de outras instituições, o Exército vedou a compra de armas automáticas, que disparam rajadas, e armas longas semiautomáticas que produzam energia, em um teste específico, superior a 1.750 joules (uma unidade de medição de energia cinética). As variações do T4, que têm calibre 5,56 mm x 45 mm, geram 1.748,63.

A reportagem perguntou ao Exército quais foram os critérios utilizados para a definição dos 1.750 joules como parâmetro, e não, por exemplo, 1.740 ou 1.760. Não houve uma resposta objetiva.

Em nota ao Estadão, o Comando do Exército informou que “as referidas portarias regularam o parâmetro de até 1.750 joules - próximo ao limite de armas de uso permitido, ou seja, com energia cinética mais baixa - para que o referido segmento pudesse adquirir armas de uso restrito, dentro da faixa prevista para apenas 8 (oito) calibres de uso restrito”.

O Exército também considera que as novas regras representam uma restrição ao que foi posto em vigor no governo Bolsonaro. Isso porque a permissão não trazia limites para armas restritas entre as seis que os militares podiam comprar para acervos. Até as automáticas estavam liberadas.

“A portaria anterior possibilitava a aquisição de até seis armas de uso permitido ou restrito. A portaria atual restringe o número de armas de uso restrito para o máximo de cinco armas”, informou.

Entretanto, a portaria mais recente não retoma as regras de antes do governo Bolsonaro, algo que o governo Lula buscou fazer com relação ao armamento de civis. Até 2018, os militares podiam comprar até duas armas de uso restrito para ter em casa, sendo elas de calibres específicos. Os de fuzis não estavam entre eles.

Como mostrou o Estadão, duas portarias do Comando Logístico do Exército, publicadas em dezembro e janeiro, liberaram até cinco fuzis para acervos de integrantes das Forças Armadas, policiais militares, bombeiros militares, membros da Agência Brasileira de Inteligência e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

A medida que contemplava policiais foi suspensa temporariamente. A das Forças Armadas começa a valer nesta quinta-feira, 1º. É estimado em cerca de 350 mil o total de integrantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica no serviço ativo, além dos inativos, também contemplados pela Portaria 164.

Taurus tem loja para lobby em Brasília: “É um desafio convencer esse pessoal”

Com a derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022, uma das principais preocupações do CEO da Taurus, Salesio Nuhs, era com a provável reclassificação das pistolas 9 mm como sendo de uso restrito. No governo anterior, elas foram permitidas para civis, mas voltaram a ser restringidas em 2023.

O Estadão recuperou uma apresentação feita pelo executivo a investidores da Taurus em dezembro de 2022. “É um desafio para a gente convencer esse pessoal que o 9 mm tem que continuar sendo um calibre de uso permitido. Se isso acontecer, 90% do mercado interno está garantido”, declarou.

Na reunião, Salesio Nuhs confirmou o lobby junto ao governo e parlamentares ao dar como exemplo a finalidade da loja conceito da marca inaugurada em Brasília em 20221. “Ela tem uma missão: receber os políticos e mostrar para os políticos que o nosso negócio é um negócio legal, grande. Lembro que quando o Arthur Lira (presidente da Câmara) entrou, ele colocou o pé e falou: ‘isso aqui é uma loja de arma?’”, contou aos investidores.

Com a derrota de Bolsonaro, Salesio Nuhs mudou o tom e passou a criticar a política armamentista do ex-presidente. Até então, o líder da fabricante de armas vinha comemorando o sucesso no mercado nacional. Ele chegou a presentear Bolsonaro com um modelo personalizado de um revólver calibre .38 feito de grafeno e fez promoção de T4 no dia 7 de Setembro de 2022, data que virou um marco para os apoiadores de Bolsonaro.

Bolsonaro é presenteado por executivo da Taurus, Salesio Nuhs, com revólver fabricado com grafeno, em 2021 Foto: @taurusarmasofficial via Instagram

Aos investidores, o executivo afirmou que Bolsonaro não ajudou a indústria nacional e não deu segurança jurídica ao segmento.

“Vivemos muito mais anos sem Bolsonaro do que com Bolsonaro. Todo mundo diz que Bolsonaro favoreceu a indústria nacional. Não é verdade. Ele favoreceu as indústrias internacionais. Ele favoreceu o segmento”, disse, antes de prosseguir: “O que precisamos no Brasil é de uma segurança jurídica. Bolsonaro criou um monte de decreto. Aí vem Lula e dá um ‘revogaço’, volta tudo atrás. Que legado ele deixou?”.

Na reunião, Salesio também defendeu mais controle de armamentos pesados, ao contrário do que Bolsonaro fez por portarias e decretos. “Eu sempre digo que nossa segurança jurídica é o controle. Como você quer dar um fuzil para um moleque de 25 anos que nunca teve uma arma de fogo? Tá errado. Tem que ter controle das coisas”, afirmou.

Parâmetro que contempla fuzil da Taurus causa estranhamento, diz especialista

Pesquisador e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o policial federal Roberto Uchoa considera inadequada a medida que permitiu a comercialização de fuzis para acervos pessoais e avalia que o Exército deveria apresentar o estudo que embasou a regra.

“Causa estranhamento o fato de o limite de joules ser quase o necessário para o fuzil T4 estar dentro dos parâmetros. Sabemos que o lobby da indústria de armas é presente ao longo de décadas. O governo precisa ter uma preocupação com isso. Seria bom se as Forças Armadas apresentassem o estudo que embasou. A decisão só cria o estranhamento. Foi para beneficiar A ou B? Não sabemos. Sabemos que temos uma indústria armamentista forte, que tem um estoque de armas para desovar porque a venda caiu drasticamente em 2023 e 2024″, afirmou.

Uchoa não descarta que o objetivo tenha sido criar um novo público alvo para esse tipo de arma após os decretos restritivos. “É um movimento que pode apontar nessa direção, mas só é interessante para a indústria armamentista. Para a sociedade não é. Para a segurança pública muito menos”, frisou.

O policial especialista explica que a conexão entre os mercados legal e ilegal são históricas e que o aval para novos arsenais privados tem o potencial de criar uma nova frente para que criminosos acessem armas que foram comercializadas legalmente.

“Não fazia sentido uma pessoa poder comprar 30 fuzis e continua não fazendo sentido uma pessoa poder comprar um fuzil. Não é uma arma feita para defesa pessoal, é chamada de arma de assalto, de ataque. Se uma já é estranho, imagina cinco”, afirmou.

Gerente de projetos do Instituto Sou da Paz e especialista nas regras para acesso a armas de fogo, Bruno Langeani avalia que o parâmetro do Exército parece ter sido definido sob medida para a Taurus.

“O novo limite parece ter sido feito sob medida para contemplar o fuzil mais vendido da Taurus, ainda que fuzis não sejam armas adequadas a defesa pessoal, que em tese, é o foco da portaria. Sem explicações como foi desenhado o novo limite crescem as suspeitas sobre quem é o beneficiário real da medida”, disse.

Na visão do especialista, a edição das normas pela Força segue foi feita sem estudos de impacto, assim como ocorria no governo Bolsonaro. “Apesar de algumas adequações à nova diretriz do governo Lula, as portarias emitidas pelo Exército seguem sendo feitas sem estudos de impacto e sem consulta a órgãos com atribuições correlatas, da mesma forma que ocorreriam no governo Bolsonaro”, destacou.

Comércio usa regra para fazer promoção e desencalhar fuzis

As portarias do Exército com regras para acervos particulares de militares criaram uma janela de oportunidade para comerciantes de armas. Em grupos especializados, lojistas passaram a incentivar preços especiais para atrair militares e desencalhar os produtos do estoque.

Loja de armas do Rio Grande do Sul oferece preços especiais para militares após portaria do Exército permitir até 5 fuzis em acervos pessoais Foto: Reprodução/fireeagle-armory.com

O mercado estava paralisado desde o início de janeiro, quando decretos de Lula barraram novos CACs e limitaram os tipos de armas para civis. Uma loja de Rio Grande do Sul, por exemplo, onde está a sede da Taurus, anuncia preços especiais para integrantes das Forças Armadas.

“A campanha tem como objetivo valorizar militares do Exército Brasileiro oferecendo descontos exclusivos nos fuzis e carabinas na plataforma 5.56 mm x 45 mm e 9 x19 mm”, diz o site da empresa. “São a escolha ideal para aqueles que dedicam suas vidas à defesa da pátria”.

Um fuzil T4 pode custar entre R$ 15 mil e R$ 20 mil. Uma pistola 9 mm, cerca de R$ 6 mil.

Indústria de armas nega influência sobre decisão do Exército

No dia seguinte à publicação desta reportagem, a Associação Nacional da Indústria de Armas e Munições (Aniam) emitiu uma nota negando influência da Taurus sobre a decisão do Exército.

A Aniam é presidida por Salesio Nuhs, CEO da Taurus. A nota afirma que a empresa “não teve influência sobre a portaria, que inclusive permite o acesso a fuzis de vários outros fabricantes”.

A entidade também ressalta considerar legítimo que os representantes do setor “levem às autoridades competentes suas posições, opiniões e ponderações sobre os temas que afetam essa indústria”.

A Aniam destaca, ainda, que as suas associadas são empresas estratégicas de defesa e “integram um setor fundamental e estratégico para o país, reconhecido como tal pela Estratégia Nacional de Defesa”.

O texto não faz considerações sobre o fato de a decisão do Exército ter aberto o mercado do fuzil da Taurus, maior fabricante nacional, depois da queda nas vendas no mercado interno em 2023.

Também não traz observações sobre a decisão do próprio Exército de suspender a portaria que autorizou a compra de até cinco fuzis por policiais militares. A suspensão ocorreu após o Estadão apontar impactos da medida na segurança pública.

“A Aniam continuará atuando em defesa dos legítimos interesses de suas associadas, de maneira ética, transparente e responsável, levando aos órgãos públicos as informações que considerar úteis ou necessárias ao desenvolvimento das políticas públicas para o setor”, frisou.

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