As derrapadas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em seus discursos improvisados têm abalado a imagem do governo. Para especialistas ouvidos pelo Estadão, essas declarações incendeiam a polarização política e alertam para a necessidade de Lula conter as falas não programadas.
Na quarta-feira, 19, durante a visita que o presidente fez a Cabo Verde, ele disse, durante um discurso, ter gratidão à África “por tudo o que foi produzido pelos 350 anos de escravidão” no Brasil. Lula estava ao lado do presidente do País, José Maria Neves.
“Essas situações causam um enorme desgaste do governo e da figura do Lula. A oposição fica reverberando nas redes sociais esses tipos de ‘equívocos’ - que não são somente retóricos, ou causados por um orador que não está na melhor forma, mas que muitas vezes decorrem da falta de uma melhor definição sobre determinadas políticas”, avaliou o professor da Unesp Milton Lahuerta, que é doutor em Ciência Política pela USP. A articulação política do presidente no Congresso enfrentou diversos reveses nesses primeiros meses de gestão.
Para o professor, “talvez tenha chegado a hora de Lula improvisar menos”. Um comportamento mais contido e discreto, na perspectiva de Lahuerta, seria necessário para que o governo entregue o que prometeu em campanha.
“Lula não vai poder ser tão espontâneo e intuitivo. Se ele quiser fazer um um governo compatível com as expectativas que ele próprio tem, vai ter que realizar um esforço de discrição, consistência e precisão, sobretudo no que se refere ao que ele fala”, disse o cientista político.
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A origem política de Lula, no operariado do ABC Paulista dos anos 1970, é um dos fatores que contribui para essa cultura de improvisos ao palanque. “Lula é de uma escola política ligada ao sindicalismo. Esse fato marcou a trajetória dele e faz com que, até hoje, ele não consiga ficar na frente de um microfone de maneira contida”, afirmou o cientista político Marco Aurélio Nogueira, doutor pela USP e professor aposentado da Unesp.
“Ele é um agitador permanente e claro. Mas uma coisa é ser um agitador como liderança sindical, no meio de uma assembleia de reivindicações. Outra coisa é ser um agitador como presidente.”
O professor também aponta para o tom passional das declarações do petista como algo que contribui para o acirramento da cena política. “Isso cria um problema com a opinião pública. A maior questão que estamos enfrentando no Brasil nos últimos anos é a polarização. Esse modo de falar de Lula não é uma coisa que ajuda a dissolvê-la.”
Relembre momentos em que o presidente comete gafes que causaram desgaste político.
‘Agradecimento’ à escravidão
O “agradecimento” pela escravidão repercutiu mal, sobretudo entre parlamentares da oposição. O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, teve que sair em defesa do presidente. “O que Lula disse foi: ‘o Brasil tem uma dívida com África e ela tem que ser paga’. E por isso, o presidente tem insistido – e já falei com ele sobre isso – é que a agenda de direitos humanos com África envolve o chamado direito ao desenvolvimento”, disse o ministro à Coluna do Estadão.
A assessoria de Lula, em nota, disse que a interpretação da fala do presidente “é de compreensão simples para quem não tiver má vontade” e destacou ações dele na luta pela igualdade racial.
“O sentido da fala é de compreensão simples para quem não tiver má vontade. Significa que o Brasil tem uma DÍVIDA com a África de gratidão por tudo que o país teve produzido aqui e toda a herança social, cultural e na formação do povo brasileiro. O presidente já falou várias vezes sobre esse tema e tem um longo histórico de ações pela igualdade racial e pela aproximação das relações do Brasil com a África, sendo muito querido no continente, como falou o próprio presidente de Cabo Verde na ocasião”, diz a íntegra da nota.
Guerra da Ucrânia
Um dos temas que mais concentra gafes do presidente é a Guerra na Ucrânia. Durante um evento na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), no dia 30 de março de 2022, Lula disse que o conflito poderia ser resolvido “tomando uma cerveja”.
“A quem interessa essa guerra? A razão dessa guerra, por tudo o que eu compreendo, que eu leio e que eu escuto, seria resolvida aqui no Brasil em uma mesa tomando cerveja. Teria resolvido aqui, senão na primeira cerveja, na segunda; se não desse na segunda, na terceira; se não desse na terceira, até acabarem as garrafas a gente ia fazer um acordo de paz”, disse Lula na ocasião.
Já na Presidência, em abril deste ano, Lula disse que tanto a Ucrânia quanto a Rússia eram igualmente responsáveis pela guerra. “A decisão da guerra foi tomada por dois países”, disse o petista quando passava por Abu Dhabi.
‘Piada’ com obesidade
Em duas situações, desde o começo da gestão, o presidente fez “piadas” com a obesidade do ministro da Justiça, Flávio Dino. A primeira foi no dia 16 de março, durante uma plenária de lançamento do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). “A obesidade causa tanto mal quanto a fome. É por isso que Flávio Dino está andando de bicicleta”, disse o presidente na ocasião.
No dia 15 de junho, Lula repetiu o gesto durante uma reunião ministerial. “Essa reunião vai demorar pelo menos umas seis horas ou um pouco mais. Não teremos almoço. O almoço será uma comida leve servida aqui na mesa, ninguém precisa se levantar. Enquanto um fala, os outros comem e assim a gente vai se revezando a nossa degustação na hora do almoço. O Flávio Dino também, mas nós vamos trazer pouca comida para ele”, disse o presidente durante a abertura da reunião. O discurso foi transmitido no canal do petista no YouTube.
Sérgio Moro
No dia 21 março, Lula concedeu uma entrevista na qual relembrou o período em que esteve preso. O presidente disse que, sempre que alguém lhe perguntava se estava bem, ele respondia: “Só vou ficar bem quando eu foder com o Moro”.
Dois dias depois, quando veio à tona um plano do PCC para sequestrar Sérgio Moro e seus familiares, Lula desacreditou o episódio. O petista disse, durante uma visita ao Complexo Naval de Itaguaí, no Rio, que o plano era uma “armação” do seu antigo algoz da Lava Jato. “Quero ser cauteloso. Vou descobrir o que aconteceu. É visível que é uma armação do Moro”, disse o presidente.
‘Grampinho’
No dia 11 de maio, em uma das plenárias estaduais do Plano Plurianual Participativo, em Salvador, Lula chamou ACM Neto (União Brasil-BA) de “grampinho”. A expressão pode ser considerada tanto um apelido pejorativo a pessoas de baixa estatura quanto uma referência ao avô de ACM Neto, Antonio Carlos Magalhães, que protagonizou um escândalo nos anos 2000 por causa de escutas telefônicas instaladas nas linhas dos seus colegas de Senado.
Durante seu discurso, o presidente relembrou um diálogo com o senador Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo no Congresso. “Wagner, vai estar difícil, a gente vai perder. Vamos ver se tem outro nome aí. O cara vai ganhar. Eu vim para cá, Jerônimo (tinha) 3%. O ‘grampinho’, quase 80%”, disse o presidente. Ele se referiu à derrota de ACM Neto nas urnas para Jerônimo Rodrigues (PT-BA), atual governador.