As incertezas relativas ao significado concreto da “frente ampla” desenhada pelo presidente Lula são os principais elementos da conjuntura política nesse início de mandato. As dúvidas decorrem de uma relativa dissociação da promessa de um governo “para todos” da retórica conflituosa presente em diversos discursos e interpretações do cenário atual.
Há farto material para sustentar a leitura de que, por ora, o presidente deve utilizar a administração Bolsonaro como fonte de legitimação do seu comportamento em diferentes áreas. E o posicionamento de Lula em relação aos desdobramentos alarmantes e tristes das chuvas no litoral de São Paulo trouxe mais um exemplo de como o passado ainda impacta o modus operandi do presidente neste início do mandato.
A cooperação entre governos colocada em marcha por Lula - diferentemente da gestão Bolsonaro - deve render dividendos políticos e contribuições positivas para dar força política à Presidência da República. A insistência, contudo, em trazer agendas distantes da preferência média da sua base aliada pode minar a governabilidade ao longo do mandato.
Há um acerto do presidente nas manifestações de solidariedade diante de tragédias e no esforço político de coordenar ações entre diferentes lideranças para tratar das políticas públicas que, em linhas gerais, demandam coordenação entre os entes federados. Bolsonaro, ao ignorar os requisitos básicos de um representante eleito, banalizou o peso da Presidência no sistema político brasileiro e rasgou princípios da ordem republicana.
O ponto incerto diz respeito ao prazo de validade da estratégia de usar referências ao passado como base de sustentação de uma coalizão para fazer jus ao status de frente ampla. Lula demonstra forte ambição de mudanças nas agendas políticas e, diuturnamente, apresenta à sociedade uma carta de intenção de descontinuidade em relação ao governo anterior.
Paradoxalmente, uma parcela relevante dessa agenda foi aprovada por parceiros da sua coalizão, o que poderá limitar a força efetiva da sua base aliada ao longo do tempo. A apreciação dos projetos de lei se beneficia da postura de valorização da política, mas retrata preferências e interesses concretos dos agentes políticos. A retórica de maior união - como a assumida nesta segunda-feira, 20, não é suficiente para gerar apoio aos espinhosos temas da atual conjuntura, seja na “questão militar”, seja na agenda econômica.
A real contribuição do mandato Lula para o jogo democrático é reconstruir o espaço da direita que aposta na institucionalidade democrática. A “era de ouro” da política brasileira trazia um sentido de moderação por meio da combinação do efeito da democracia com temperança por parte dos líderes políticos.
Lula dará uma contribuição importante quando separar o não petismo do bolsonarismo. Respeitar os imperativos do cargo ajuda, mas não será suficiente para superar as cicatrizes do debate político no País.
*Rafael Cortez é sócio da Tendências Consultoria e Doutor em Ciência Política (USP)