Tarcísio é grande vencedor da eleição, bolsonarista que busca unidade ampla contra Lula, diz Singer


Responsável por cunhar o termo ‘lulismo’, André Singer avalia que o governador de São Paulo emergiu vitorioso diante da divisão do campo da direita nas eleições municipais deste ano; para ele, o presidente Lula não dialoga com a classe C e precisa melhorar a avaliação de seu governo para disputar a reeleição em 2026

Por Zeca Ferreira
Atualização:
Foto: Felipe Rau/Estadão
Entrevista comAndré SingerProfessor titular do Departamento de Ciência Política da USP

Responsável por cunhar o termo lulismo, o cientista político André Singer considera que o principal sinal das eleições municipais deste ano para a disputa presidencial em 2026 foi a divisão do campo da direita, marcada especialmente pela candidatura de Pablo Marçal (PRTB) em São Paulo. Ele avalia ainda que o governador do Estado, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que apoiou a candidatura de Ricardo Nunes (MDB) desde o início, emergiu vitorioso dessa divisão, sendo “o grande vencedor da eleição de 2024″.

Para o professor titular do Departamento de Ciência Política da USP, o governador paulista “se projeta como um líder bolsonarista” para a corrida ao Palácio do Planalto em 2026. Porém, diferente do bolsonarismo tradicional, “que não abre mão de suas características”, Tarcísio, na avaliação de Singer, tem a compreensão correta de que precisará criar uma unidade em torno de seu nome para fazer frente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Algo como ocorreu em São Paulo, onde Nunes se valeu de uma ampla coligação do centro à direita para vencer a disputa pelo comando da maior cidade do País.

“Tarcísio se apresenta como um líder bolsonarista, mas enfatiza que sem unidade não é possível vencer. Agora, se ele conseguirá alcançar essa unidade, não sei”, disse Singer em entrevista ao Estadão, acrescentando que o desempenho da esquerda nesta eleição não foi bom e que o do presidente Lula foi regular, assim como a avaliação do governo federal até o momento. Para ele, o petista precisará alcançar uma avaliação melhor em 2026 para garantir a reeleição.

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FR12 SAO PAULO - SP - 30/10/2024 - POLÍTICA - ANDRÉ SINGER - Foto do cientista político André Singer. FOTO: Felipe Rau/Estadão Foto: Felipe Rau/Estadão

Ex-secretário de Imprensa e porta-voz do primeiro governo Lula, Singer recebeu a equipe do Estadão para a entrevista na manhã desta quarta-feira, 30, em seu escritório, na zona oeste de São Paulo. A conversa durou cerca de uma hora. Confira os principais trechos a seguir:

Como o sr. avalia o desempenho da esquerda nas eleições municipais deste ano?

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Vejo dois critérios para avaliar essa questão. O primeiro seria o conjunto de partidos que podemos chamar de campo da esquerda: PT, PSB, PDT, PSOL, PCdoB e Rede. Por esse critério, o desempenho não foi bom. Talvez o melhor momento desse campo tenha sido em 2012, quando o governo dirigido pela ex-presidente Dilma (Rousseff) estava com uma aprovação de ótimo e bom de 56%. Considerando o número de prefeituras, esse campo fez nestas eleições aproximadamente metade das prefeituras que fez em 2012.

O segundo critério seria avaliar algumas eleições em capitais significativas, como Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo. Nessas três cidades, a esquerda se apresentou com cara própria, diferentemente de outras capitais em que houve coalizões mais amplas. Em Porto Alegre, o resultado final não foi bom. Em Belo Horizonte, o PT decidiu lançar um candidato próprio, que também não foi bom. Por fim, em São Paulo, o candidato da esquerda foi Guilherme Boulos, do PSOL – um partido que está à esquerda do PT. Boulos teve um bom desempenho, mas já havia alcançado esse resultado em 2020, não sendo, no entanto, suficiente para vencer a eleição. Com base nesses dois critérios, diria que o desempenho da esquerda não foi bom.

Assim como em 2012, o PT está hoje na Presidência. Além disso, os índices econômicos são favoráveis. O que explica, então, a diferença no desempenho eleitoral da esquerda entre esses dois períodos?

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Há duas considerações principais. A primeira é que, atualmente, o governo tem uma avaliação regular, com 35% de aprovação entre ótimo e bom – uma avaliação bem diferente da de 2012. Embora o governo esteja indo de forma razoável, os resultados eleitorais refletem essa diferença. Ou seja, até o momento, o governo não conseguiu gerar uma onda positiva como a de 2012. Ressalto, no entanto, que essa avaliação não é ruim; ela é apenas regular.

A segunda consideração é mais complexa. Parece haver um fenômeno no Brasil que guarda semelhança com o que está acontecendo nos Estados Unidos. Esse fenômeno envolve hipóteses ainda não claramente definidas. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, os governos têm mostrado bons números econômicos, mas isso não está se traduzindo em apoio eleitoral. O principal indicador desse fenômeno estranho é o emprego. As taxas de emprego estão boas em ambos os países; no entanto, algo está impedindo que isso se converta no apoio eleitoral esperado. É um paradoxo que os analistas não estão conseguindo resolver. Pode ser que o emprego, e sobretudo o emprego formal, não tenha mais a centralidade que ele teve no passado. É possível, portanto, que a gente esteja assistindo a uma mudança estrutural que venha a explicar esse paradoxo, que é, insisto, algo que ninguém está conseguindo explicar.

Alguns acreditam que o discurso tradicional da esquerda já não ressoa entre a população de baixa renda, que valoriza temas como empreendedorismo e, muitas vezes, vê o Estado como um obstáculo. O sr. concorda com essa visão?

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A proposta principal da esquerda é que o Estado deve agir para beneficiar as camadas populares. No entanto, pode estar em curso uma transformação dentro dessas camadas, por meio da qual certos setores enfrentam necessidades específicas que exigem um desdobramento dessa concepção geral. O apoio do presidente Lula entre as camadas de menor renda, na base da pirâmide, permanece mais alto do que a média. Portanto, a base social do lulismo se mantém. Contudo, pode haver uma transformação em camadas que não são exatamente as da base, mas que, de fato, requerem o que eu chamaria de uma especificação do discurso ou dessa concepção geral. Para antecipar um tema que pode surgir depois, essa transformação pode ter encontrado expressão em uma candidatura como a de Pablo Marçal.

Que especificação seria essa? A esquerda deveria adotar o discurso do empreendedorismo?

Adotar o discurso do empreendedorismo propriamente dito seria um erro, pois, em última análise, esse discurso tem como fundo um combate ao Estado – algo que não seria viável para a esquerda. É possível, no entanto, pensar em ações do Estado que beneficiem trabalhadores que enfrentam necessidades diferentes das do trabalhador com carteira assinada. Por exemplo, se o Estado criasse centros de apoio para entregadores e trabalhadores de plataformas, conforme lembra o professor Rodrigo Nunes, isso poderia atender às necessidades de trabalhadores que se encontram em uma nova condição. Seria um equívoco descartar tudo o que foi construído em troca de uma abordagem que, no fundo, poderíamos chamar de ideologia do empreendedorismo – uma ideologia que, na essência, é anti-esquerda.

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Em 2023, o sr. afirmou que o presidente Lula precisa reconquistar o que já foi a “nova classe C”. Na sua avaliação, ele tem conseguido fazer isso?

Com base nos dados que encontrei sobre renda e avaliação do governo, minha resposta seria não. O que me chamou a atenção foi que, entre aqueles que consideram o governo Lula ótimo ou bom, a proporção aumenta significativamente até a faixa de dois salários mínimos, mas cai drasticamente acima desse valor. Sendo absolutamente técnico, eu diria que não.

Por que isso acontece?

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A explicação de fundo é econômica, embora também possa ter conotações sociológicas. A transformação econômica necessária para, a meu ver, atingir as camadas intermediárias (conhecidas como classe C, com renda entre dois e cinco salários mínimos) é muito mais cara. Por que as camadas de até dois salários mínimos avaliam o governo de forma mais positiva? Porque o governo, por exemplo, aumentou o Bolsa Família. E por que é difícil atender às camadas intermediárias? Porque é preciso gerar bons empregos. E para isso, é necessário reindustrializar o País, o que exige um programa estrutural. O governo Lula lançou um programa, mas, até onde consigo observar, ele não saiu do papel. Esse programa envolve uma mudança estrutural na economia brasileira que, aparentemente, não está sendo possível de realizar.

Na sua avaliação, a esquerda tem conseguido formar novas lideranças?

Diria que sim e não. Precisamos considerar Guilherme Boulos como uma nova liderança jovem de esquerda. Em um campo menos à esquerda, mais próximo da centro-esquerda, João Campos se destaca como uma liderança nova que integra esse espectro amplo e diverso que chamamos de campo da esquerda. Mesmo assim, diria que há algumas dificuldades de renovação. Sobretudo em contraste com as novas lideranças jovens de extrema direita que estão surgindo. Talvez o que mais impacte não seja exatamente a dificuldade de renovação na esquerda, mas sim a facilidade de renovação na direita. Nesta eleição, emergiu uma nova geração de extrema direita que chama bastante atenção.

Qual a explicação para esse fenômeno?

Acredito que estamos diante de um fenômeno geracional. É sabido que as novas gerações tendem a se opor às velhas gerações para buscar seu próprio espaço. O que talvez esteja em curso é o seguinte: vivemos um longo ciclo de centro e de esquerda no Brasil, originado com a redemocratização e a Constituição de 1988. O bolsonarismo parece ter representado uma oposição radical a esse contexto, simbolizando, na verdade, o retorno de ideologias da ditadura, que parecem ter encantado uma parte da nova geração. Esse fenômeno também está relacionado ao fato de que existe uma onda mundial de extrema direita que chegou ao Brasil.

O sr. acredita que hoje há um herdeiro para o período pós-Lula?

Não há um herdeiro inquestionável. O próprio presidente Lula parece não ter feito essa indicação. No entanto, duas figuras começam a se destacar. Uma delas é o ministro Fernando Haddad, que já foi candidato à Presidência indicado por Lula. A outra é Guilherme Boulos, que recebeu um apoio muito significativo do presidente Lula.

Em São Paulo, o candidato apoiado pelo PT, Guilherme Boulos, teve uma votação abaixo do esperado em redutos históricos do partido, como Parelheiros, na zona sul. A que o sr. atribui esse desempenho de Boulos?

Esse acontecimento precisa ser melhor estudado. A impressão que tive é que (o então candidato à reeleição Ricardo) Nunes fez um esforço especial na zona sul, já que ele é dessa região. Além disso, houve um grande investimento da Prefeitura em obras naquela área. O eleitor de baixa renda, e eu diria que as camadas populares em geral, adotam uma postura pragmática. Assim, as necessidades imediatas, que são bastante significativas, se sobrepõem à ideologia, e é a essas necessidades que o eleitor das camadas populares reage.

O sr. considera que a estratégia do PT de apoiar candidaturas de aliados, como Boulos em São Paulo e Eduardo Paes no Rio, em vez de lançar candidatos próprios para fortalecer uma aliança para as eleições de 2026, foi bem-sucedida?

Para compreender bem, precisamos separar duas questões. Uma é a votação do campo da esquerda, como já foi mencionado. Outra, distinta, é a estratégia de coalizão que o presidente Lula está liderando. Ele está liderando uma estratégia de coalizão muito ampla desde a eleição de 2022 e, uma vez no governo, a expandiu ainda mais, trazendo setores do chamado “Centrão” que, até o final de 2022, estavam visivelmente aliados a Bolsonaro. Lula deixou claro que esse amplo espectro de coalizão é o que ele deseja manter para a eleição de 2026, na qual provavelmente será candidato. Esse critério foi aplicado em várias disputas locais na eleição de 2024. Portanto, essa estratégia não representa propriamente uma escolha da esquerda em si, mas sim do presidente Lula. Do ponto de vista do que Lula está desenhando para 2026, diria que a opção foi acertada.

Quais sinais a eleição de 2024 indicou para 2026?

O primeiro sinal é de uma profunda divisão no campo da direita, marcada pela candidatura de Pablo Marçal – uma candidatura que ninguém imaginava que aconteceria. Essa divisão separa uma extrema direita que não abre mão de suas características de uma direita com um perfil diferente. E, digamos, o personagem que emerge desse cenário é o governador Tarcísio de Freitas, possivelmente o grande vencedor da eleição de 2024, considerando que São Paulo é um termômetro político. Agora, veremos como ele lidará com essa divisão.

O ex-presidente Bolsonaro sai como derrotado dessas eleições?

Ele não sai propriamente como derrotado, mas como líder de um campo importante, o da extrema direita. A eleição de 2024 demonstrou que esse campo permanece relevante no Brasil, mas não é majoritário. E nem é um campo sobre o qual ele exerça liderança indiscutível, pois o que Marçal fez foi mostrar, para usar uma expressão minha, que existe “bolsonarismo sem Bolsonaro”.

Na sua avaliação, o governador Tarcísio se projeta para 2026 como representante da extrema direita ou de uma direita mais moderada?

Ele se projeta como um líder bolsonarista. Embora tenha contestado Bolsonaro em alguns pontos, nunca rompeu completamente com ele, fazendo questão de afirmar, até o fim, que “Bolsonaro faz parte desta coalizão que está levando Ricardo Nunes à reeleição”. A compreensão de Tarcísio, que é correta, é que esse bloco precisa estar unido para vencer. Valdemar Costa Neto disse ao Estadão que, sem unidade, a extrema direita não vence – e está correto. Tarcísio se apresenta como um líder bolsonarista, mas enfatiza que sem unidade não é possível vencer. Agora, se ele conseguirá alcançar essa unidade, não sei.

Considerando o desempenho do presidente Lula e do PT, o sr. diria que eles saem vitoriosos deste pleito?

Como eu disse no começo, para a esquerda não foi uma boa eleição. Para o presidente Lula, uma vez que ele apostou em coalizões amplas, diria que foi uma eleição média, tal como vem sendo a avaliação dele até aqui. O problema é que ele precisará chegar em 2026 com uma avaliação melhor para garantir a sua reeleição. Então, ele terá que conquistar nesse último biênio uma avaliação superior à atual para garantir a sua reeleição.

Responsável por cunhar o termo lulismo, o cientista político André Singer considera que o principal sinal das eleições municipais deste ano para a disputa presidencial em 2026 foi a divisão do campo da direita, marcada especialmente pela candidatura de Pablo Marçal (PRTB) em São Paulo. Ele avalia ainda que o governador do Estado, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que apoiou a candidatura de Ricardo Nunes (MDB) desde o início, emergiu vitorioso dessa divisão, sendo “o grande vencedor da eleição de 2024″.

Para o professor titular do Departamento de Ciência Política da USP, o governador paulista “se projeta como um líder bolsonarista” para a corrida ao Palácio do Planalto em 2026. Porém, diferente do bolsonarismo tradicional, “que não abre mão de suas características”, Tarcísio, na avaliação de Singer, tem a compreensão correta de que precisará criar uma unidade em torno de seu nome para fazer frente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Algo como ocorreu em São Paulo, onde Nunes se valeu de uma ampla coligação do centro à direita para vencer a disputa pelo comando da maior cidade do País.

“Tarcísio se apresenta como um líder bolsonarista, mas enfatiza que sem unidade não é possível vencer. Agora, se ele conseguirá alcançar essa unidade, não sei”, disse Singer em entrevista ao Estadão, acrescentando que o desempenho da esquerda nesta eleição não foi bom e que o do presidente Lula foi regular, assim como a avaliação do governo federal até o momento. Para ele, o petista precisará alcançar uma avaliação melhor em 2026 para garantir a reeleição.

FR12 SAO PAULO - SP - 30/10/2024 - POLÍTICA - ANDRÉ SINGER - Foto do cientista político André Singer. FOTO: Felipe Rau/Estadão Foto: Felipe Rau/Estadão

Ex-secretário de Imprensa e porta-voz do primeiro governo Lula, Singer recebeu a equipe do Estadão para a entrevista na manhã desta quarta-feira, 30, em seu escritório, na zona oeste de São Paulo. A conversa durou cerca de uma hora. Confira os principais trechos a seguir:

Como o sr. avalia o desempenho da esquerda nas eleições municipais deste ano?

Vejo dois critérios para avaliar essa questão. O primeiro seria o conjunto de partidos que podemos chamar de campo da esquerda: PT, PSB, PDT, PSOL, PCdoB e Rede. Por esse critério, o desempenho não foi bom. Talvez o melhor momento desse campo tenha sido em 2012, quando o governo dirigido pela ex-presidente Dilma (Rousseff) estava com uma aprovação de ótimo e bom de 56%. Considerando o número de prefeituras, esse campo fez nestas eleições aproximadamente metade das prefeituras que fez em 2012.

O segundo critério seria avaliar algumas eleições em capitais significativas, como Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo. Nessas três cidades, a esquerda se apresentou com cara própria, diferentemente de outras capitais em que houve coalizões mais amplas. Em Porto Alegre, o resultado final não foi bom. Em Belo Horizonte, o PT decidiu lançar um candidato próprio, que também não foi bom. Por fim, em São Paulo, o candidato da esquerda foi Guilherme Boulos, do PSOL – um partido que está à esquerda do PT. Boulos teve um bom desempenho, mas já havia alcançado esse resultado em 2020, não sendo, no entanto, suficiente para vencer a eleição. Com base nesses dois critérios, diria que o desempenho da esquerda não foi bom.

Assim como em 2012, o PT está hoje na Presidência. Além disso, os índices econômicos são favoráveis. O que explica, então, a diferença no desempenho eleitoral da esquerda entre esses dois períodos?

Há duas considerações principais. A primeira é que, atualmente, o governo tem uma avaliação regular, com 35% de aprovação entre ótimo e bom – uma avaliação bem diferente da de 2012. Embora o governo esteja indo de forma razoável, os resultados eleitorais refletem essa diferença. Ou seja, até o momento, o governo não conseguiu gerar uma onda positiva como a de 2012. Ressalto, no entanto, que essa avaliação não é ruim; ela é apenas regular.

A segunda consideração é mais complexa. Parece haver um fenômeno no Brasil que guarda semelhança com o que está acontecendo nos Estados Unidos. Esse fenômeno envolve hipóteses ainda não claramente definidas. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, os governos têm mostrado bons números econômicos, mas isso não está se traduzindo em apoio eleitoral. O principal indicador desse fenômeno estranho é o emprego. As taxas de emprego estão boas em ambos os países; no entanto, algo está impedindo que isso se converta no apoio eleitoral esperado. É um paradoxo que os analistas não estão conseguindo resolver. Pode ser que o emprego, e sobretudo o emprego formal, não tenha mais a centralidade que ele teve no passado. É possível, portanto, que a gente esteja assistindo a uma mudança estrutural que venha a explicar esse paradoxo, que é, insisto, algo que ninguém está conseguindo explicar.

Alguns acreditam que o discurso tradicional da esquerda já não ressoa entre a população de baixa renda, que valoriza temas como empreendedorismo e, muitas vezes, vê o Estado como um obstáculo. O sr. concorda com essa visão?

A proposta principal da esquerda é que o Estado deve agir para beneficiar as camadas populares. No entanto, pode estar em curso uma transformação dentro dessas camadas, por meio da qual certos setores enfrentam necessidades específicas que exigem um desdobramento dessa concepção geral. O apoio do presidente Lula entre as camadas de menor renda, na base da pirâmide, permanece mais alto do que a média. Portanto, a base social do lulismo se mantém. Contudo, pode haver uma transformação em camadas que não são exatamente as da base, mas que, de fato, requerem o que eu chamaria de uma especificação do discurso ou dessa concepção geral. Para antecipar um tema que pode surgir depois, essa transformação pode ter encontrado expressão em uma candidatura como a de Pablo Marçal.

Que especificação seria essa? A esquerda deveria adotar o discurso do empreendedorismo?

Adotar o discurso do empreendedorismo propriamente dito seria um erro, pois, em última análise, esse discurso tem como fundo um combate ao Estado – algo que não seria viável para a esquerda. É possível, no entanto, pensar em ações do Estado que beneficiem trabalhadores que enfrentam necessidades diferentes das do trabalhador com carteira assinada. Por exemplo, se o Estado criasse centros de apoio para entregadores e trabalhadores de plataformas, conforme lembra o professor Rodrigo Nunes, isso poderia atender às necessidades de trabalhadores que se encontram em uma nova condição. Seria um equívoco descartar tudo o que foi construído em troca de uma abordagem que, no fundo, poderíamos chamar de ideologia do empreendedorismo – uma ideologia que, na essência, é anti-esquerda.

Em 2023, o sr. afirmou que o presidente Lula precisa reconquistar o que já foi a “nova classe C”. Na sua avaliação, ele tem conseguido fazer isso?

Com base nos dados que encontrei sobre renda e avaliação do governo, minha resposta seria não. O que me chamou a atenção foi que, entre aqueles que consideram o governo Lula ótimo ou bom, a proporção aumenta significativamente até a faixa de dois salários mínimos, mas cai drasticamente acima desse valor. Sendo absolutamente técnico, eu diria que não.

Por que isso acontece?

A explicação de fundo é econômica, embora também possa ter conotações sociológicas. A transformação econômica necessária para, a meu ver, atingir as camadas intermediárias (conhecidas como classe C, com renda entre dois e cinco salários mínimos) é muito mais cara. Por que as camadas de até dois salários mínimos avaliam o governo de forma mais positiva? Porque o governo, por exemplo, aumentou o Bolsa Família. E por que é difícil atender às camadas intermediárias? Porque é preciso gerar bons empregos. E para isso, é necessário reindustrializar o País, o que exige um programa estrutural. O governo Lula lançou um programa, mas, até onde consigo observar, ele não saiu do papel. Esse programa envolve uma mudança estrutural na economia brasileira que, aparentemente, não está sendo possível de realizar.

Na sua avaliação, a esquerda tem conseguido formar novas lideranças?

Diria que sim e não. Precisamos considerar Guilherme Boulos como uma nova liderança jovem de esquerda. Em um campo menos à esquerda, mais próximo da centro-esquerda, João Campos se destaca como uma liderança nova que integra esse espectro amplo e diverso que chamamos de campo da esquerda. Mesmo assim, diria que há algumas dificuldades de renovação. Sobretudo em contraste com as novas lideranças jovens de extrema direita que estão surgindo. Talvez o que mais impacte não seja exatamente a dificuldade de renovação na esquerda, mas sim a facilidade de renovação na direita. Nesta eleição, emergiu uma nova geração de extrema direita que chama bastante atenção.

Qual a explicação para esse fenômeno?

Acredito que estamos diante de um fenômeno geracional. É sabido que as novas gerações tendem a se opor às velhas gerações para buscar seu próprio espaço. O que talvez esteja em curso é o seguinte: vivemos um longo ciclo de centro e de esquerda no Brasil, originado com a redemocratização e a Constituição de 1988. O bolsonarismo parece ter representado uma oposição radical a esse contexto, simbolizando, na verdade, o retorno de ideologias da ditadura, que parecem ter encantado uma parte da nova geração. Esse fenômeno também está relacionado ao fato de que existe uma onda mundial de extrema direita que chegou ao Brasil.

O sr. acredita que hoje há um herdeiro para o período pós-Lula?

Não há um herdeiro inquestionável. O próprio presidente Lula parece não ter feito essa indicação. No entanto, duas figuras começam a se destacar. Uma delas é o ministro Fernando Haddad, que já foi candidato à Presidência indicado por Lula. A outra é Guilherme Boulos, que recebeu um apoio muito significativo do presidente Lula.

Em São Paulo, o candidato apoiado pelo PT, Guilherme Boulos, teve uma votação abaixo do esperado em redutos históricos do partido, como Parelheiros, na zona sul. A que o sr. atribui esse desempenho de Boulos?

Esse acontecimento precisa ser melhor estudado. A impressão que tive é que (o então candidato à reeleição Ricardo) Nunes fez um esforço especial na zona sul, já que ele é dessa região. Além disso, houve um grande investimento da Prefeitura em obras naquela área. O eleitor de baixa renda, e eu diria que as camadas populares em geral, adotam uma postura pragmática. Assim, as necessidades imediatas, que são bastante significativas, se sobrepõem à ideologia, e é a essas necessidades que o eleitor das camadas populares reage.

O sr. considera que a estratégia do PT de apoiar candidaturas de aliados, como Boulos em São Paulo e Eduardo Paes no Rio, em vez de lançar candidatos próprios para fortalecer uma aliança para as eleições de 2026, foi bem-sucedida?

Para compreender bem, precisamos separar duas questões. Uma é a votação do campo da esquerda, como já foi mencionado. Outra, distinta, é a estratégia de coalizão que o presidente Lula está liderando. Ele está liderando uma estratégia de coalizão muito ampla desde a eleição de 2022 e, uma vez no governo, a expandiu ainda mais, trazendo setores do chamado “Centrão” que, até o final de 2022, estavam visivelmente aliados a Bolsonaro. Lula deixou claro que esse amplo espectro de coalizão é o que ele deseja manter para a eleição de 2026, na qual provavelmente será candidato. Esse critério foi aplicado em várias disputas locais na eleição de 2024. Portanto, essa estratégia não representa propriamente uma escolha da esquerda em si, mas sim do presidente Lula. Do ponto de vista do que Lula está desenhando para 2026, diria que a opção foi acertada.

Quais sinais a eleição de 2024 indicou para 2026?

O primeiro sinal é de uma profunda divisão no campo da direita, marcada pela candidatura de Pablo Marçal – uma candidatura que ninguém imaginava que aconteceria. Essa divisão separa uma extrema direita que não abre mão de suas características de uma direita com um perfil diferente. E, digamos, o personagem que emerge desse cenário é o governador Tarcísio de Freitas, possivelmente o grande vencedor da eleição de 2024, considerando que São Paulo é um termômetro político. Agora, veremos como ele lidará com essa divisão.

O ex-presidente Bolsonaro sai como derrotado dessas eleições?

Ele não sai propriamente como derrotado, mas como líder de um campo importante, o da extrema direita. A eleição de 2024 demonstrou que esse campo permanece relevante no Brasil, mas não é majoritário. E nem é um campo sobre o qual ele exerça liderança indiscutível, pois o que Marçal fez foi mostrar, para usar uma expressão minha, que existe “bolsonarismo sem Bolsonaro”.

Na sua avaliação, o governador Tarcísio se projeta para 2026 como representante da extrema direita ou de uma direita mais moderada?

Ele se projeta como um líder bolsonarista. Embora tenha contestado Bolsonaro em alguns pontos, nunca rompeu completamente com ele, fazendo questão de afirmar, até o fim, que “Bolsonaro faz parte desta coalizão que está levando Ricardo Nunes à reeleição”. A compreensão de Tarcísio, que é correta, é que esse bloco precisa estar unido para vencer. Valdemar Costa Neto disse ao Estadão que, sem unidade, a extrema direita não vence – e está correto. Tarcísio se apresenta como um líder bolsonarista, mas enfatiza que sem unidade não é possível vencer. Agora, se ele conseguirá alcançar essa unidade, não sei.

Considerando o desempenho do presidente Lula e do PT, o sr. diria que eles saem vitoriosos deste pleito?

Como eu disse no começo, para a esquerda não foi uma boa eleição. Para o presidente Lula, uma vez que ele apostou em coalizões amplas, diria que foi uma eleição média, tal como vem sendo a avaliação dele até aqui. O problema é que ele precisará chegar em 2026 com uma avaliação melhor para garantir a sua reeleição. Então, ele terá que conquistar nesse último biênio uma avaliação superior à atual para garantir a sua reeleição.

Responsável por cunhar o termo lulismo, o cientista político André Singer considera que o principal sinal das eleições municipais deste ano para a disputa presidencial em 2026 foi a divisão do campo da direita, marcada especialmente pela candidatura de Pablo Marçal (PRTB) em São Paulo. Ele avalia ainda que o governador do Estado, Tarcísio de Freitas (Republicanos), que apoiou a candidatura de Ricardo Nunes (MDB) desde o início, emergiu vitorioso dessa divisão, sendo “o grande vencedor da eleição de 2024″.

Para o professor titular do Departamento de Ciência Política da USP, o governador paulista “se projeta como um líder bolsonarista” para a corrida ao Palácio do Planalto em 2026. Porém, diferente do bolsonarismo tradicional, “que não abre mão de suas características”, Tarcísio, na avaliação de Singer, tem a compreensão correta de que precisará criar uma unidade em torno de seu nome para fazer frente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Algo como ocorreu em São Paulo, onde Nunes se valeu de uma ampla coligação do centro à direita para vencer a disputa pelo comando da maior cidade do País.

“Tarcísio se apresenta como um líder bolsonarista, mas enfatiza que sem unidade não é possível vencer. Agora, se ele conseguirá alcançar essa unidade, não sei”, disse Singer em entrevista ao Estadão, acrescentando que o desempenho da esquerda nesta eleição não foi bom e que o do presidente Lula foi regular, assim como a avaliação do governo federal até o momento. Para ele, o petista precisará alcançar uma avaliação melhor em 2026 para garantir a reeleição.

FR12 SAO PAULO - SP - 30/10/2024 - POLÍTICA - ANDRÉ SINGER - Foto do cientista político André Singer. FOTO: Felipe Rau/Estadão Foto: Felipe Rau/Estadão

Ex-secretário de Imprensa e porta-voz do primeiro governo Lula, Singer recebeu a equipe do Estadão para a entrevista na manhã desta quarta-feira, 30, em seu escritório, na zona oeste de São Paulo. A conversa durou cerca de uma hora. Confira os principais trechos a seguir:

Como o sr. avalia o desempenho da esquerda nas eleições municipais deste ano?

Vejo dois critérios para avaliar essa questão. O primeiro seria o conjunto de partidos que podemos chamar de campo da esquerda: PT, PSB, PDT, PSOL, PCdoB e Rede. Por esse critério, o desempenho não foi bom. Talvez o melhor momento desse campo tenha sido em 2012, quando o governo dirigido pela ex-presidente Dilma (Rousseff) estava com uma aprovação de ótimo e bom de 56%. Considerando o número de prefeituras, esse campo fez nestas eleições aproximadamente metade das prefeituras que fez em 2012.

O segundo critério seria avaliar algumas eleições em capitais significativas, como Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo. Nessas três cidades, a esquerda se apresentou com cara própria, diferentemente de outras capitais em que houve coalizões mais amplas. Em Porto Alegre, o resultado final não foi bom. Em Belo Horizonte, o PT decidiu lançar um candidato próprio, que também não foi bom. Por fim, em São Paulo, o candidato da esquerda foi Guilherme Boulos, do PSOL – um partido que está à esquerda do PT. Boulos teve um bom desempenho, mas já havia alcançado esse resultado em 2020, não sendo, no entanto, suficiente para vencer a eleição. Com base nesses dois critérios, diria que o desempenho da esquerda não foi bom.

Assim como em 2012, o PT está hoje na Presidência. Além disso, os índices econômicos são favoráveis. O que explica, então, a diferença no desempenho eleitoral da esquerda entre esses dois períodos?

Há duas considerações principais. A primeira é que, atualmente, o governo tem uma avaliação regular, com 35% de aprovação entre ótimo e bom – uma avaliação bem diferente da de 2012. Embora o governo esteja indo de forma razoável, os resultados eleitorais refletem essa diferença. Ou seja, até o momento, o governo não conseguiu gerar uma onda positiva como a de 2012. Ressalto, no entanto, que essa avaliação não é ruim; ela é apenas regular.

A segunda consideração é mais complexa. Parece haver um fenômeno no Brasil que guarda semelhança com o que está acontecendo nos Estados Unidos. Esse fenômeno envolve hipóteses ainda não claramente definidas. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, os governos têm mostrado bons números econômicos, mas isso não está se traduzindo em apoio eleitoral. O principal indicador desse fenômeno estranho é o emprego. As taxas de emprego estão boas em ambos os países; no entanto, algo está impedindo que isso se converta no apoio eleitoral esperado. É um paradoxo que os analistas não estão conseguindo resolver. Pode ser que o emprego, e sobretudo o emprego formal, não tenha mais a centralidade que ele teve no passado. É possível, portanto, que a gente esteja assistindo a uma mudança estrutural que venha a explicar esse paradoxo, que é, insisto, algo que ninguém está conseguindo explicar.

Alguns acreditam que o discurso tradicional da esquerda já não ressoa entre a população de baixa renda, que valoriza temas como empreendedorismo e, muitas vezes, vê o Estado como um obstáculo. O sr. concorda com essa visão?

A proposta principal da esquerda é que o Estado deve agir para beneficiar as camadas populares. No entanto, pode estar em curso uma transformação dentro dessas camadas, por meio da qual certos setores enfrentam necessidades específicas que exigem um desdobramento dessa concepção geral. O apoio do presidente Lula entre as camadas de menor renda, na base da pirâmide, permanece mais alto do que a média. Portanto, a base social do lulismo se mantém. Contudo, pode haver uma transformação em camadas que não são exatamente as da base, mas que, de fato, requerem o que eu chamaria de uma especificação do discurso ou dessa concepção geral. Para antecipar um tema que pode surgir depois, essa transformação pode ter encontrado expressão em uma candidatura como a de Pablo Marçal.

Que especificação seria essa? A esquerda deveria adotar o discurso do empreendedorismo?

Adotar o discurso do empreendedorismo propriamente dito seria um erro, pois, em última análise, esse discurso tem como fundo um combate ao Estado – algo que não seria viável para a esquerda. É possível, no entanto, pensar em ações do Estado que beneficiem trabalhadores que enfrentam necessidades diferentes das do trabalhador com carteira assinada. Por exemplo, se o Estado criasse centros de apoio para entregadores e trabalhadores de plataformas, conforme lembra o professor Rodrigo Nunes, isso poderia atender às necessidades de trabalhadores que se encontram em uma nova condição. Seria um equívoco descartar tudo o que foi construído em troca de uma abordagem que, no fundo, poderíamos chamar de ideologia do empreendedorismo – uma ideologia que, na essência, é anti-esquerda.

Em 2023, o sr. afirmou que o presidente Lula precisa reconquistar o que já foi a “nova classe C”. Na sua avaliação, ele tem conseguido fazer isso?

Com base nos dados que encontrei sobre renda e avaliação do governo, minha resposta seria não. O que me chamou a atenção foi que, entre aqueles que consideram o governo Lula ótimo ou bom, a proporção aumenta significativamente até a faixa de dois salários mínimos, mas cai drasticamente acima desse valor. Sendo absolutamente técnico, eu diria que não.

Por que isso acontece?

A explicação de fundo é econômica, embora também possa ter conotações sociológicas. A transformação econômica necessária para, a meu ver, atingir as camadas intermediárias (conhecidas como classe C, com renda entre dois e cinco salários mínimos) é muito mais cara. Por que as camadas de até dois salários mínimos avaliam o governo de forma mais positiva? Porque o governo, por exemplo, aumentou o Bolsa Família. E por que é difícil atender às camadas intermediárias? Porque é preciso gerar bons empregos. E para isso, é necessário reindustrializar o País, o que exige um programa estrutural. O governo Lula lançou um programa, mas, até onde consigo observar, ele não saiu do papel. Esse programa envolve uma mudança estrutural na economia brasileira que, aparentemente, não está sendo possível de realizar.

Na sua avaliação, a esquerda tem conseguido formar novas lideranças?

Diria que sim e não. Precisamos considerar Guilherme Boulos como uma nova liderança jovem de esquerda. Em um campo menos à esquerda, mais próximo da centro-esquerda, João Campos se destaca como uma liderança nova que integra esse espectro amplo e diverso que chamamos de campo da esquerda. Mesmo assim, diria que há algumas dificuldades de renovação. Sobretudo em contraste com as novas lideranças jovens de extrema direita que estão surgindo. Talvez o que mais impacte não seja exatamente a dificuldade de renovação na esquerda, mas sim a facilidade de renovação na direita. Nesta eleição, emergiu uma nova geração de extrema direita que chama bastante atenção.

Qual a explicação para esse fenômeno?

Acredito que estamos diante de um fenômeno geracional. É sabido que as novas gerações tendem a se opor às velhas gerações para buscar seu próprio espaço. O que talvez esteja em curso é o seguinte: vivemos um longo ciclo de centro e de esquerda no Brasil, originado com a redemocratização e a Constituição de 1988. O bolsonarismo parece ter representado uma oposição radical a esse contexto, simbolizando, na verdade, o retorno de ideologias da ditadura, que parecem ter encantado uma parte da nova geração. Esse fenômeno também está relacionado ao fato de que existe uma onda mundial de extrema direita que chegou ao Brasil.

O sr. acredita que hoje há um herdeiro para o período pós-Lula?

Não há um herdeiro inquestionável. O próprio presidente Lula parece não ter feito essa indicação. No entanto, duas figuras começam a se destacar. Uma delas é o ministro Fernando Haddad, que já foi candidato à Presidência indicado por Lula. A outra é Guilherme Boulos, que recebeu um apoio muito significativo do presidente Lula.

Em São Paulo, o candidato apoiado pelo PT, Guilherme Boulos, teve uma votação abaixo do esperado em redutos históricos do partido, como Parelheiros, na zona sul. A que o sr. atribui esse desempenho de Boulos?

Esse acontecimento precisa ser melhor estudado. A impressão que tive é que (o então candidato à reeleição Ricardo) Nunes fez um esforço especial na zona sul, já que ele é dessa região. Além disso, houve um grande investimento da Prefeitura em obras naquela área. O eleitor de baixa renda, e eu diria que as camadas populares em geral, adotam uma postura pragmática. Assim, as necessidades imediatas, que são bastante significativas, se sobrepõem à ideologia, e é a essas necessidades que o eleitor das camadas populares reage.

O sr. considera que a estratégia do PT de apoiar candidaturas de aliados, como Boulos em São Paulo e Eduardo Paes no Rio, em vez de lançar candidatos próprios para fortalecer uma aliança para as eleições de 2026, foi bem-sucedida?

Para compreender bem, precisamos separar duas questões. Uma é a votação do campo da esquerda, como já foi mencionado. Outra, distinta, é a estratégia de coalizão que o presidente Lula está liderando. Ele está liderando uma estratégia de coalizão muito ampla desde a eleição de 2022 e, uma vez no governo, a expandiu ainda mais, trazendo setores do chamado “Centrão” que, até o final de 2022, estavam visivelmente aliados a Bolsonaro. Lula deixou claro que esse amplo espectro de coalizão é o que ele deseja manter para a eleição de 2026, na qual provavelmente será candidato. Esse critério foi aplicado em várias disputas locais na eleição de 2024. Portanto, essa estratégia não representa propriamente uma escolha da esquerda em si, mas sim do presidente Lula. Do ponto de vista do que Lula está desenhando para 2026, diria que a opção foi acertada.

Quais sinais a eleição de 2024 indicou para 2026?

O primeiro sinal é de uma profunda divisão no campo da direita, marcada pela candidatura de Pablo Marçal – uma candidatura que ninguém imaginava que aconteceria. Essa divisão separa uma extrema direita que não abre mão de suas características de uma direita com um perfil diferente. E, digamos, o personagem que emerge desse cenário é o governador Tarcísio de Freitas, possivelmente o grande vencedor da eleição de 2024, considerando que São Paulo é um termômetro político. Agora, veremos como ele lidará com essa divisão.

O ex-presidente Bolsonaro sai como derrotado dessas eleições?

Ele não sai propriamente como derrotado, mas como líder de um campo importante, o da extrema direita. A eleição de 2024 demonstrou que esse campo permanece relevante no Brasil, mas não é majoritário. E nem é um campo sobre o qual ele exerça liderança indiscutível, pois o que Marçal fez foi mostrar, para usar uma expressão minha, que existe “bolsonarismo sem Bolsonaro”.

Na sua avaliação, o governador Tarcísio se projeta para 2026 como representante da extrema direita ou de uma direita mais moderada?

Ele se projeta como um líder bolsonarista. Embora tenha contestado Bolsonaro em alguns pontos, nunca rompeu completamente com ele, fazendo questão de afirmar, até o fim, que “Bolsonaro faz parte desta coalizão que está levando Ricardo Nunes à reeleição”. A compreensão de Tarcísio, que é correta, é que esse bloco precisa estar unido para vencer. Valdemar Costa Neto disse ao Estadão que, sem unidade, a extrema direita não vence – e está correto. Tarcísio se apresenta como um líder bolsonarista, mas enfatiza que sem unidade não é possível vencer. Agora, se ele conseguirá alcançar essa unidade, não sei.

Considerando o desempenho do presidente Lula e do PT, o sr. diria que eles saem vitoriosos deste pleito?

Como eu disse no começo, para a esquerda não foi uma boa eleição. Para o presidente Lula, uma vez que ele apostou em coalizões amplas, diria que foi uma eleição média, tal como vem sendo a avaliação dele até aqui. O problema é que ele precisará chegar em 2026 com uma avaliação melhor para garantir a sua reeleição. Então, ele terá que conquistar nesse último biênio uma avaliação superior à atual para garantir a sua reeleição.

Entrevista por Zeca Ferreira

Repórter de Política em São Paulo. Formado em jornalismo pela USP, com extensão em jornalismo econômico pela FGV. Atuou em Agência Mural, Band TV e Money Times.

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