BRASÍLIA – A criminalidade no Brasil é um fenômeno complexo, com múltiplas causas, e que não será resolvido com soluções simples, como o aumento das penas para determinados crimes ou a presença de mais armas na mão da população civil. O diagnóstico é de especialistas e de estudos consultados pelo Estadão. Também não é verdade que o Brasil seja o “país da impunidade” – na verdade, a população carcerária brasileira cresceu mais de 250% desde o ano 2000.
Saiba mais sobre estes e outros mitos abaixo:
‘Falta dinheiro, com mais recursos os problemas serão resolvidos’
A mera disponibilização de novos recursos financeiros não é suficiente para conter os índices de criminalidade. Um estudo publicado por pesquisadores do Ipea, em dezembro de 2005, discutiu os impactos da criação do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) para que Estados e municípios financiassem ações de segurança pública. A análise dos pesquisadores alerta para o fato de a reserva de recursos para a área nunca estar acompanhada de discussões sobre eficácia ou eficiência da alocação do dinheiro.
“Não se pensou em nenhum momento se o atual modelo de gestão da segurança pública é eficaz e eficiente, ou de forma inversa, não se pensou qual seria o modelo eficaz e eficiente”, diz o texto. “A prática dos gestores tem sido colocar sempre mais do mesmo. E se a estratégia ainda não surtiu efeito, foi porque não se colocou o suficiente.”
‘Quanto mais armas para civis, menos criminalidade’
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) realizou um estudo em 2022 (PDF, 1.410 KB) que calculou o impacto da política de facilitação do acesso a armas de fogo com medidas baixadas por Jair Bolsonaro a partir de 2019. A conclusão foi a de que quanto maior a difusão de armas, maior a taxa de homicídios. Parte do armamento usado em crimes foi, em algum momento, comprado legalmente. O estudo apontou que, sem as medidas pró-armas, 6.379 homicídios teriam deixado de ocorrer entre 2019 e 2021. O número corresponde a todos os homicídios da região Norte em 2021.
A tese de que armar a população reduz crimes ganhou força porque os índices de homicídios continuaram a partir de 2019. Contudo, a redução do número de assassinatos já vinha ocorrendo desde 2018, depois do recorde histórico do ano anterior. Em 2017, mais de 64 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. Ou seja, segundo o estudo do FBSP, a redução poderia ter sido ainda maior, não fosse o incentivo à popularização das armas de fogo nos últimos anos.
Além disso, pesa o fato de armas de fogo apenas produzirem uma sensação de segurança a civis. “Uma arma é muito boa para ataque, mas péssima para defesa. O elemento surpresa conta muito. Há casos de policiais de grupos de elite, como Bope e Rota, serem assaltados e mortos”, disse Rafael Alcadipani, professor da FGV e membro do FBSP.
‘Penas mais severas bastam para coibir crimes’
É recorrente: depois de um crime bárbaro chocar a opinião pública, congressistas fazem discursos inflamados propondo o aumento da pena para a atrocidade em questão. Este padrão se repete no Brasil nos últimos anos, sem que os números da criminalidade caiam.
A escalada do endurecimento de penas se intensificou no início da década de 1990, com a Lei dos Crimes Hediondos. Inicialmente, a lei incluía apenas latrocínio (roubo seguido de morte), sequestro, estupro e alguns outros. Os perpetradores desses crimes não poderiam receber anistia, graça ou indulto; também não poderiam ser libertados mediante fiança e teriam de cumprir a pena toda em regime fechado, na prisão. Ao longo dos anos, a lei foi sendo emendada pelo Congresso para incluir na categoria de crimes hediondos vários outros crimes – sem que, no entanto, a criminalidade tenha diminuído. Em 1990, ano de aprovação da lei, foram ao menos 32 mil homicídios no Brasil, segundo dados do Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Em 2022, foram 47,5 mil mortes violentas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Para o pesquisador do Ipea Daniel Cerqueira, o endurecimento das penas é “parte do ‘kit crise’ que muitas vezes os políticos usam para explorar o medo da população”. “A prisão é para ser enxergada como se fosse um antibiótico (...). Eventualmente há pessoas que são perigosas e precisam estar presas, mas a gente não pode achar que a prisão é um remédio que vai resolver todo o problema da criminalidade, que basta colocar todo mundo na prisão”, diz ele, que é conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“Qual é a consequência de pensar dessa forma? É o hiperencarceramento, com a perda de controle das prisões por parte do Estado, e isso cria um ambiente fértil para o surgimento de facções criminosas que vão fazer ações como as que a gente está vendo no Rio de Janeiro, na Bahia e em outros lugares”, afirma Cerqueira.
‘O Brasil é o país da impunidade’
Não é verdade. No fim de 2022, a população carcerária brasileira chegou a 832,2 mil pessoas, incluindo pessoas em regime fechado, semiaberto e aberto – quando a pessoa pode sair de casa apenas para trabalhar. O número equivale à população da capital da Paraíba, João Pessoa, e corresponde a um aumento de 257% desde o ano 2000. Os dados são do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Sisdepen).
Dentre os presos, quase um quarto está detido provisoriamente – ou seja, sem condenação definitiva. São pelo menos 210,6 mil detentos nessa condição. Em relação a autoridades e políticos, dados do Sisdepen de junho de 2023 mostram que 2.103 estão pessoas presas por crimes contra a administração pública, como corrupção ativa e peculato.
Segundo especialistas, o Brasil não pune pouco – mas pune errado. “O problema é que a gente prende muito e prende mal. A gente prende muito ‘ladrão de galinha’. A gente não pode pensar que uma prisão é igual à outra, e que a gente pode somar as prisões. Na verdade, prender um homicida contumaz é uma coisa importante. Mas prender um cara que cometeu crime de baixo potencial ofensivo, é outra coisa. A gente lota as cadeias, mas deixa os grandes criminosos soltos”, diz Daniel Cerqueira, que é pesquisador do IPEA e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
‘Operações policiais mais frequentes acabariam com os traficantes’
O exemplo do Rio de Janeiro é o mais lembrado por especialistas e em estudos como fracasso da política de “guerra às drogas”. No Estado, o crime recrudesceu e surgiram as milícias. As operações policiais com grandes confrontos provocam efeitos colaterais danosos à população pobre das comunidades e afetam uma parte pequena do crime organizado. Para Rafael Alcadipani, professor da FGV e membro do FBSP, as operações atingem, com prisões e mortes, elos da cadeia do crime que são descartáveis, e raramente alcançam o coração das quadrilhas.
“As operações não combatem a raiz da questão. As condições para o tráfico de drogas continuam. Para desbaratar grupos criminosos é preciso chegar ao coração deles. Com as operações, chegam aos tentáculos, que são rapidamente substituídos. É preciso sufocar financeiramente as quadrilhas e reduzir a corrupção estatal, que também ajuda o crime”, diz.
‘Saúde e educação por si só resolverão a criminalidade’
A recente realidade do Brasil desmente esta afirmação. Nas últimas três décadas, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil avançou significativamente – de 0,610, em 1990, para 0,754, em 2021. O IDH se baseia em variáveis como escolaridade, expectativa de vida e renda – todas as três estatísticas melhoraram no País neste período. E no entanto, a criminalidade não recuou. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes saiu de 22,2 em 1990 para 27,8 em 2018.