BRASÍLIA – Mais da metade (49) das 88 pessoas identificadas pelo Estadão por participarem dos ataques golpistas que vandalizaram as sedes dos Três Poderes em Brasília ainda não foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Desse grupo, 22 sequer respondem a ação penal pela depredação dos prédios públicos e 27 ainda aguardam julgamento.
Outros oito foram condenados. Entre eles está Fátima Mendonça, conhecida como “Fátima de Tubarão”, e a Ana Priscila Silva do Azevedo, que ameaçou “colapsar o sistema”. Ambas tiveram a pena de 17 anos de prisão imposta pela Corte.
Dois acusados fizeram acordo de não persecução penal com o STF e sete estão em outro país. A reportagem não identificou o paradeiro de outros 22 golpistas.
Para Alexandre Wunderlich, professor de Direito Penal no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), há razões variadas para o tempo de análise dos processos, mas, em razão da gravidade dos ataques, é preciso haver mais celeridade.
“É bastante complexo entender as razões da morosidade, mas de fato, há um tempo mais que razoável para a apuração de uma investigação pela gravidade dos fatos”, diz Wunderlich.
Entre os extremistas identificados que não enfrentam a Justiça, alguns participaram das eleições municipais de 2024 e ainda ocupam cargo político. Também há bolsonaristas que continuam exercendo militância nas redes sociais e exaltando atitudes antidemocráticas.
Uma dessas pessoas é Adriano Castro, ex-integrante do Big Brother Brasil, conhecido como Didi Redpill. Ele participou da invasão, convocou as pessoas a aderirem ao ato golpista e fez quatro horas de transmissão ao vivo do vandalismo. “A galera estava ansiosa para sair do quartel. Ninguém aguentava mais. Acabou, chega”, disse no 8 de janeiro.
Até o momento, ele não enfrenta ação penal, mantém um canal ativo no YouTube com 379 mil inscritos e costuma produzir vídeos com ataques ao STF, a Alexandre de Moraes, às Forças Armadas, ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e à imprensa.
Didi Redpill faz lives recorrentes para mais de 5 mil espectadores simultâneos, em que divulga uma chave Pix para receber doações. Ele se diz ser um asilado político e afirma que fugiu para um outro país não revelado.
Candidata à prefeitura de Curitiba em 2024, Cristina Graeml (PMB) publicou um vídeo em seu perfil no YouTube em que Didi Redpill anuncia apoio a ela. “Ela carrega em si os valores que sempre defendemos: Deus, pátria família e liberdade”, diz o ex-BBB no vídeo.
Ao longo de 2023 e 2024, ela gravou entrevistas com pessoas que foram presas em razão do inquérito sobre o 8 de Janeiro, o que serviu de plataforma para ela entre pessoas do grupo. A jornalista foi derrotada no segundo turno por Eduardo Pimentel (PSD). Procurados, Graeml e Castro não responderam.
A guarda municipal Marta Calliari ainda trabalha na prefeitura de Gravataí (RS) e recebe R$ 12,8 mil mensais. No dia dos ataques, ela participou das mobilizações na Esplanada dos Ministérios. “Acabamos de invadir o Congresso Nacional”, postou. Ela não foi presa após o fim do vandalismo.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) não ofereceu denúncia contra Marta, que segue trabalhando em Gravataí. Nas redes sociais, ela permanece publicando postagens com teor antidemocrático. Em uma delas, feita em agosto do ano passado, ela compartilhou uma imagem da Praça dos Três Poderes, invadida por ela em 2023, pegando fogo. Procurada, ela não foi localizada e a prefeitura não se manifestou.
Dois empresários participaram dos atos golpistas e não se tornaram réus. Vinicius Matsunaga Sanches foi flagrado na tomada dos Três Poderes e é dono de uma cutelaria em Cafelândia (SP). Caio Enrico Lima, de Hortolândia (SP), invadiu o Congresso e disse ter reagido por “não estar de acordo com o comunismo” e que “atos totalmente pacíficos não resultam em nada”. Hoje, ele é o administrador de uma empresa de consultoria tecnológica.
No dia dos atos golpistas, o policial legislativo Wallace França posou ao lado de uma partícipe do vandalismo dentro do Congresso Nacional. Ele não foi denunciado pela PGR. No mesmo ano da invasão em Brasília, ele se tornou promotor de Justiça em Santa Catarina.
O Estadão procurou Wallace França e o Senado Federal, mas não obteve retorno.
O advogado paraense Francisco Andrade da Conceição saiu de Santarém (PA) rumo a Brasília para invadir os prédios públicos. Em um vídeo, publicado nas redes sociais, ele anunciou a ocupação do Planalto, do Congresso e do STF. “A invasão de Brasília é inevitável”, disse.
Dois anos após a depredação dos prédios públicos, Francisco continua exercendo a advocacia e está com registro regular na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Ele não foi denunciado pelos atos golpistas.
O Estadão procurou Francisco Andrade da Conceição e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), mas não obteve retorno.
Foragidos atacam Moraes e divulgam desinformação nas redes
Alguns dos foragidos aproveitam a condição para promover desinformação, atacar Moraes e pedir por anistia nas redes sociais. Eles se mantêm ativos e até organizam manifestações.
Um desses atos aconteceu em frente ao Obelisco, principal monumento da Argentina, no dia 7 de setembro do ano passado. Naquela data, um homem publicou nas redes sociais um vídeo em que dissemina informações falsas sobre as urnas eletrônicas e exibia pessoas pedindo “liberdade aos presos políticos”.
Leia mais
Esse conteúdo foi divulgado no Facebook por Joelson Sebastião Freitas, conhecido como “Joelson Bolsolavista”, que se diz um exilado na Argentina. No país vizinho, Joelson faz publicações em que pede a prisão e o impeachment de Moraes.
“Manifesto meu veementemente repúdio à comparação que Elon Musk fez entre o ministro e o papel higiênico. O papel higiênico não merecia isso!!! Acabou o medo. É tempo de ir para cima”, escreveu Joelson, em agosto de 2024.
Joelson era um guarda municipal em Foz do Iguaçu (PR). No dia 8 de janeiro de 2023, Joelson se gravou comemorando o êxito golpista e até mesmo a direção do vento, que jogava a fumaça das bombas de gás na direção dos policiais.
“Como Deus é bom, a fumaça vai só para a polícia”, celebrou, enquanto invadia o Palácio do Planalto ao lado da mulher, Marisa Aparecida Aires Nogueira. “Amor, venha, vamos subir a rampa antes que a polícia chegue.”
Ele chegou a ser preso preventivamente por oito meses e foi solto após ameaçar fazer greve de fome. Depois disso, ele cortou a tornozeleira e fugiu para a Argentina, deixando a mulher sozinha no Paraná.
Marisa não foi denunciada pela PGR e continua exercendo a função de guarda municipal e recebe pouco mais de R$ 7 mil da prefeitura de Foz do Iguaçu.
A Argentina foi um dos principais alvos da maioria dos foragidos. O país é presidido por Javier Milei, aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro. Mas o grupo ainda enfrenta reveses.
A Justiça Federal brasileira emitiu em novembro mais de 50 mandados de prisão contra brasileiros em solo argentino — cinco deles já foram detidos enquanto os demais ainda não foram localizados.
É o caso de Alessandra Faria Rondon e do marido, Joelton Gusmão de Oliveira. Ela invadiu o Senado ao lado de Joelton e foi mais uma identificada pelo Estadão. Alessandra então publicou vídeo nas redes em que pede intervenção militar e a prisão de senadores do Mato Grosso, seu Estado.
“Eu só saio daqui quando os traidores da pátria estiverem presos. Queremos intervenção militar”, afirma. Ela chama os senadores Jayme Campos (União-MT) e Wellington Fagundes (PL-MT) de “traidores”.
Relatório da Polícia Federal também mostra que Joelton fez gravações do celular e afirmou que “é assim que toma o poder” ao chegar à Casa legislativa. Ele então conclamou para outras pessoas subirem a rampa do Congresso Nacional.
Alessandra ficou seis meses presa preventivamente na Colmeia e Joelton dez meses na Papuda em 2023. O casal então fugiu para a Argentina após a soltura.
Em março de 2024, Joelton foi condenado a 16 anos e meio de prisão em fevereiro e foi preso na Argentina na cidade de La Plata. Alessandra, que recebeu a mesma pena, conseguiu fugir e ainda não foi encontrada.
Leia mais
Simone Tosato é outra foragida ativa nas redes. Ela esteve no acampamento em frente ao QG do Exército e participou da invasão na Praça dos Três Poderes. Tosato foi presa preventivamente e posteriormente solta.
Em uma postagem nas redes sociais, Tosato ri da tornozeleira eletrônica imposta por Moraes em um evento do PL, partido de Bolsonaro. Ela foi condenada em novembro do ano passado e fugiu para a Argentina. Agora, ela diz estar asilada nos Estados Unidos e ainda frequenta círculos bolsonaristas mais restritos.
O cearense Romário Garcia, que se apresenta nas redes sociais como um influencer LGBTQIA+ pró-Bolsonaro, foi condenado a dois anos e cinco meses de prisão por associação criminosa e incitação ao crime. No dia dos atos golpistas, ele participou da invasão do gramado do Congresso Nacional.
Romário não chegou a cumprir a pena imposta pelo STF, pois quebrou a tornozeleira eletrônica e fugiu do Brasil. No último dia 17, a Justiça do Peru avisou ao governo brasileiro que localizou Romário e outros três foragidos no país.
Simone Tosato se recusou a responder as perguntas feitas pela equipe de reportagem. “Quanto menos vocês souberem da nossa vida, melhor. Mesmo porque tudo o que eu falar, vocês vão inverter”, disse ao Estadão.
O Estadão procurou as defesas de Alessandra Faria Rondon, Adriano Castro, Edina Cordeiro, Joelson Sebastião Freitas, Joelton Gusmão, Marisa Aparecida Aires Nogueira e Romário Garcia mas não obteve retorno.
Identificados no 8 de Janeiro tentaram cargo político em 2024
Ainda sem condenação, outros dois dos 88 identificados pelo Estadão pleiteram cargos públicos nas eleições de 2024. Um deles foi Leonardo Rodrigues de Jesus, o Leo Índio (PP), sobrinho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que saiu candidato a vereador em Cascavel (PR). Ele teve apenas 700 votos e não foi eleito. Ele foi alvo de operação de busca e apreensão pela Polícia Federal, mas não tem uma ação penal no STF.
Leia mais
Há ainda o caso da deputada federal bolsonarista Sílvia Waiãpi (PL-AP), que exerce o cargo parlamentar. Ela gravou vídeos de cima do Congresso Nacional. Depois, apagou o material das redes. Dias depois, Moraes abriu uma investigação sobre a conduta dela. A PGR deu um parecer pedindo o arquivamento do inquérito e disse não haver “qualquer indício da prática de crime”. O processo está engavetado no STF desde maio de 2023.
O Estadão procurou Léo Índio e a assessoria da deputada federal Silvia Waiãpi, mas não obteve retorno.