As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Análise|A explicação do general Tomás por que não houve golpe e as acusações às quais ninguém deu atenção


É preciso retomar o áudio da reunião, gravado clandestinamente, para ouvi-lo dizer ‘não é um borra-botas desses que vai me falar de coragem’ e afirmar aos extremistas: ‘Prestamos continência à autoridade, se não vira milícia, vira bando’

Por Marcelo Godoy
Atualização:

O comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, expôs em conversa com seus subordinados as razões pelas quais o Exército se afastou de Jair Bolsonaro e rejeitou a tentativa de golpe de 8 de janeiro. Disse que foi Bolsonaro quem deu a ordem para não “mexer” com os acampamentos em frente aos quartéis. E rebateu a acusação da extrema direita de prestar continência a ladrão: “Prestamos continência à autoridade; se não, não é Exército, não é Força Armada, vira milícia, vira bando”.

O comandante do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva participa da cerimônia em comemoração ao Dia do Soldado no Quartel-General da Força Terrestre, em Brasília Foto: WILTON JUNIOR

Disse tudo isso, mas ninguém lhe deu muita atenção. Isso aconteceu pouco antes de ele assumir o comando da Força Terrestre. Aos subordinados, ele explicou também como seria a relação do Exército para reduzir danos à Força diante das pressões contra a instituição. É preciso ouvir com atenção renovada a gravação histórica de quase uma hora para entender as atuais manchetes dos jornais.

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É que há muitas razões para o fracasso do golpe bolsonarista. Mas uma delas ainda merece uma explicação: o que fez com que generais se transformassem no principal obstáculo à intentona urdida e engendrada por Jair Bolsonaro e seus turibulários do Planalto? Por que homens sem nenhuma simpatia pelo PT ou por Lula – conservadores e marcadamente de direita – e treinados para a guerra se manifestaram pela manutenção da legalidade e do estado democrático de direito?

Depois das operações Venire e Tempus Veritatis, da Polícia Federal, é fácil enxergar motivos e justificações para a manutenção da legalidade e a derrota do golpe. Mas seria assim antes de se conhecer o contrabando e a venda das joias? E as falsificações de documentos? Ou os pagamentos para a manutenção dos acampamentos e as mensagens abjetas de Braga Netto sobre seus camaradas generais. Enfim, seria assim quando não existia a delação do tenente-coronel Mauro Cid?

O tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, que foi ajudante de ordens do ex-presidente da República Jair Bolsonaro Foto: Geraldo Magela/Agencia Senado
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É fácil justificar a oposição ao golpe quando se está demonstrado o que muitos hoje consideram ser o enredo de sempre das conspirações palacianas: deslealdade, traição e a sede de dinheiro, poder e privilégio. Tudo sempre disfarçado de ideologia salvadora da Pátria para convencer ingênuos e satisfazer fanáticos. Mas em 2022 era diferente. Podia-se desconfiar, mas não se tinha os detalhes.

Como então capturar o espírito que moveu os generais naquele ano sem vê-lo corrompido pelo que se soube depois? Como escapar à leitura anacrônica do passado e ao mesmo tempo se compreender à luz do que se sabe hoje o que moveu a conduta descrita nos depoimentos à PF prestados pelo general Marco Antonio Freire Gomes e pelo brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, ex-comandantes do Exército e da Força Aérea? Enfim, por que a maioria dos generais das forças singulares se opôs ao golpe?

‘Peço que ninguém grave nada’

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É aí que ganha novo sentido e importância um áudio gravado clandestinamente por um militar em 18 de janeiro de 2023. Era uma reunião do general Tomás, então comandante militar do Sudeste, com seu Estado-Maior, logo depois de uma cerimônia em homenagem aos mortos da Força de Paz, no Haiti. Ele começa com o general dizendo que se recusava a pedir que deixassem o “celular fora” pois tinha “plena confiança” em seu staff para falar em caráter reservado. “Peço que ninguém grave nada.”

O engano de Tomás sobre a confiança que podia depositar em seus homens ironicamente permite hoje conhecer o que o atual chefe do Exército – um dos generais que se opuseram ao golpe – pensava quando era um oficial que teria apenas mais quatro meses na ativa, portanto, sem maiores interesses políticos ou pessoais. Mais do que isso: havia sido preterido para assumir o comando do Exército pela infeliz decisão de Lula de escolher, sem outro critério, o quatro estrelas mais antigo da lista para chefiar a Força Terrestre.

Ou seja, Tomás não tinha outra razão para dizer o que disse, além de prestar contas aos subordinados. Mas quando o áudio foi publicado no Posdast Roteirices, em fevereiro de 2023, o general já comandava o Exército – ele fora nomeado para o cargo em 21 de janeiro. Prestou-se então apenas atenção a um trecho de sua fala, o que dizia: “Eu tenho o testemunho de quem participou da comissão de fiscalização (das eleições). Não aconteceu nada. Infelizmente foi o resultado que, para a maioria de nós, foi indesejado, mas que aconteceu”. Ninguém deu muita importância ao restante. Um erro.

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O comandante militar do Sudeste, general Tomás Miguel Ribeiro de Paiva discursa em defesa da democracia para a tropa  Foto: Reprodução/CMSE

Tomás virou comandante do Exército justamente porque o homem que o presidente escolhera para a função, o general Julio Cesar Arruda havia se recusado a cumprir a ordem de Lula de retirar o tenente-coronel Mauro Cid do comando do Batalhão de Ações e Comandos. Ou seja, à luz do que se sabe hoje sobre Cid e sobre presença de militares das Forças Especiais no plano do golpe, pode-se afirmar que, dificilmente, existiria razão mais acertada para derrubar um comandante do Exército com menos de um mês no cargo.

O caso Cid não era uma mera gota d’água a encher o copo de Arruda após a intentona do 8 de janeiro. Ele seria uma espada acima do pescoço da democracia? Há já quem enxergue no PT que a sua nomeação para o batalhão de Goiânia, ainda que decidida antes da eleição de 2022, pudesse se transformar em uma ameaça ao novo governo, deixando aos conspiradores tropas à disposição para que, diante de uma futura crise, fosse possível prender o ministro Alexandre Moraes, Lula ou quem quer que fosse.

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Cid foi imediatamente removido por Tomás. Mas o que ele pensava então? É preciso revisitar sua fala naquele dia 18 de janeiro para compreender o estado de espírito que manteve a caserna distante do golpe. “Vocês têm que ouvir de maneira direta e franca o que o comandante pensa. Nós fomos formados tanto na Escola de Sargentos quanto na Academia Militar para suportar adversidades. Não somos formados como as crianças de hoje em dia que papai só pode elogiar.”

O evento de Bolsonaro nas Agulhas Negras e a eleição

Então com 47 anos de carreira, Tomás começa recuperando um episódio que ficou conhecido por simbolizar o lançamento da candidatura à presidência de Bolsonaro, logo após sua reeleição como deputado federal em 2014.” O general conta tudo com a ajuda de slides: “Ele era deputado federal e sempre comparecia aos eventos (na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, na época, comandada por Tomás) e era recebido.”

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Bolsonaro na cerimônia de entrega de espadins aos cadetes da Turma Dom Pedro II, da Academia Militar dos Agulhas Negras. Foto: Clauber Cleber Caetano

Tomás, que era acusado pela oposição de permitir o deputado usar a academia como palanque, explicou o que houve naquele dia. “Ele (Bolsonaro) conhece a academia e sabe onde os cadetes ficam concentrados antes de entrar e escapou – eu não estava lá, eu estava no hotel de trânsito, recebendo as autoridades. E isso virou o start da candidatura dele. E ele foi aplaudido como qualquer outro cara que chegasse ali.”

Tomás tentou se dissociar e ao mesmo tempo afastava o Exército do evento, tratado como um marco pelo bolsonarismo. “Ele (Bolsonaro) apresenta isso aqui. E foi uma coisa que eu como comandante da Aman tive de responder como é que foi. A presidente na época era a Dilma, e eu tive de responder. Como aconteceu isso aí? Aconteceu. Como algumas coisas acontecem, escapam do controle.”

O relato de Tomás então segue para 2018, quando se formou a chapa de Bolsonaro com o general Mourão. “Mourão tinha acabado de sair do Alto Comando, quando teve três episódios controversos, é meu amigo pessoal, grande camarada, mas eu estou colocando que começou a entrar política e Forças Armadas, e o pessoal começou a não entender bem essa divisão. Passei 2018, até outubro, no gabinete do comandante do Exército (general Villas Bôas) e, a partir de novembro, fui comandar a 5ª DE (Divisão de Exército), no Paraná. E o discurso que a gente conversava com a tropa era: ‘Minha gente, política dentro do quartel dá ruim, não é coisa legal’. O que eu falava naquela época é que política partidária sempre divide.”

O general continuou descrevendo os eventos daquele ano, como a facada dada em Bolsonaro. “O presidente quase morreu, foi real.” Lembrou dos números dos votos no segundo turno, que deram 53% a Bolsonaro ante 44% ao candidato do PT, Fernando Haddad. Relatou as promessas de campanha de Bolsonaro e chegou à pandemia de covid-19. “Tivemos dois anos e meio de pandemia” Chegou então ao ponto central da conversa: a militarização do governo.

A militarização do governo e suas interferências na área militar

“Superou (os presidentes) Geisel, Médici e Figueiredo em ministros militares. Isso aconteceu. Isso é real. Em 2020, tínhamos esse quadro de general, inclusive com algumas pastas como o Pazuello na Saúde. Esse era o quadro ou da reserva ou gente que estava na ativa ainda.” O número de militares cedidos para cargos civis foi grande, com um aumento de 108%, relatou. “É natural que o presidente chame as pessoas de sua confiança.”

Em seguida, ele exibiu a seus homens uma pesquisa em que 47% da população achava ruim a presença de militares em cargos civis. O general parecia tentar alertar a tropa sobre o que pensavam as pessoas fora da bolha dos militares. Abordou a nomeação de militares como ministros da Defesa. Relembrou a criação da Pasta, no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1999. “Até 2018 todos os ministros da Defesa foram civis. O militar pode ser ministro? Pode. Mas quem enquadra os militares é o poder político. Isso acontecia até nos governos militares.”

O presidente Jair Bolsonaro participa da cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto; à esquerda estão os ministros Braga Netto (Defesa) e Luiz Eduardo Ramos (secretaria da Presidência) e à direita do presidente estão os generais Pimentel e Paulo Sérgio de Oliveira  Foto: Marcos Corrêa/PR

Realçou a instabilidade na área militar durante o governo Bolsonaro, com três mudanças no ministério da Defesa, assim como três no comando da Força Terrestre, duas na Aeronáutica e duas na Marinha, o que não havia acontecido em nenhum período da Nova República. Para lançar sua primeira acusação direta ao ex-presidente: o relato do que chamou de “algumas interferências do governo diretas na área militar”. É aqui que começa a explicação sobre o descolamento dos militares em relação ao ex-presidente, que buscava comandantes subservientes.

Passou despercebido de todos o que Tomás leu aos seus subordinados. Era o título de uma reportagem: “Próxima motociata de Bolsonaro será na Aman”. Ele comentou: “É verdade. Não ocorreu porque os comandantes convenceram Bolsonaro de que não era uma coisa adequada.” Tomás não forneceu detalhes do caso. Mas esta coluna os revelou em outubro de 2023.

O episódio representou um embate que opôs o governo ao então comandante da Aman, general Paulo Roberto Rodrigues Pimentel. Ao iniciar suas motociatas pelo País, Bolsonaro teve a ideia de entrar com uma delas, vinda de Resende (RJ), pelo portal monumental da Academia, no dia da cerimônia de entrega dos espadins. Era 14 de agosto de 2021. Pimentel, um Força Especial, foi abordado pelos ministros Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto. Tentaram convencê-lo a permitir a algazarra. O general respondeu que só havia um jeito disso acontecer: nomeando outro oficial para comandar a escola.

“Ele queria fazer a motociata, um ato político dentro da academia militar. Alguém aqui acha isso uma coisa adequada a gente ter uma manifestação dessa dentro de uma academia militar? Estou colocando aqui o que ocorreu”, afirmou Tomás. Em seguida, passou a tratar das comemorações do Bicentenário da Independência, em Copacabana, no Rio, evento que meses depois serviria para a segunda condenação de Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O governador do Estado do Rio de Janeiro e candidato a reeleição, Cláudio Castro, o empresário Luciano Hang, e o presidente da República e candidato à reeleição pelo PL, Jair Bolsonaro, durante o ato em celebração aos 200 anos de independência do Brasil, em 7 de setembro, no bairro de Copacabana, na zona sul do Rio Foto: PEDRO KIRILOS/ESTADÃO

Tomás fez um pedido aos subordinados: “Quem serviu no Rio de Janeiro levanta a mão” Ouve-se a voz de um oficial ao qual o comandante pergunta: “Daniel, onde é que era o desfile de 7 de Setembro?”. Ao que o militar responde: “Na Avenida Presidente Vargas.” “Desde quando?” pergunta Tomás. “Desde...” E o general interrompe a resposta do subordinado e emenda: “...Desde sempre. Eu desfilei na Avenida Presidente Vargas no ano de 1979, em 1980 e em 1981. Nesse ano que passou, mudou. Passou a ser em Copacabana. No final não teve desfile. Mas para o povo estava tudo misturado, o que era militar e o que era político.”

Tomás comentava as notícias. “Houve diversos pontos de interferência política em temas militares. Em 2021, estava na pandemia, o general Pazuello estava na ativa e foi em uma motociata, acompanhando o presidente. E sobe no palanque do presidente. Comportamento adequado ou inadequado? Inadequado. Quando o ato é público, a gente tem de falar publicamente que foi inadequado.”

Comparou o fato ao que houve em São Paulo após a eleição de Lula. “Nesse período de manifestação, de 1º de novembro até 9 de janeiro, não tivemos na área do Comando Militar do Sudeste nenhum militar da ativa que se envolveu em manifestação em todo Estado.” Pazuello foi inocentado pelo general Paulo Sérgio de Oliveira, então comandante do Exército, que mais tarde assumiria a Defesa. Tomás disse que não podia criticar a decisão dele, mas fez questão de lembrar que houve um erro. “A gente não pode aceitar o erro. O erro aconteceu.” O episódio foi um dos momentos-chave da cisão entre os generais e o Planalto.

Política partidária no quartel e a falta de prova de fraude nas urnas

Tomás mostrou como esses eventos afetaram a credibilidade do Exército, muito antes da intentona do dia 8 de Janeiro. “Política partidária dentro da Força gera desgaste. Todos nós estamos na bolha, na bolha fardada, na bola conservadora, de direita, militarista; raramente, um de nós frequenta a outra bollha. Mas existe outra bolha. E ela não é pequena; ela é grande e se manifesta nas redes sociais”, afirmou.

Evento faz parte da Operação Formosa, da Marinha; foi a primeira vez que os blindados passaram por Brasília e foram recebidos por um presidente da República. Foto: GABRIELA BILÓ/ESTADÃO

O general exibiu aos subordinados charges publicadas quando a Marinha desfilou com carros de combate pela Esplanada, no dia da votação da PEC do Voto Impresso. “A gente fica puto quando vê isso aqui. Ninguém gosta.” E afirmou que a proposta do presidente era legítima, mas lembrou que quem elabora as leis no País é o Congresso. “Essa proposta foi rejeitada. Foi uma derrota para o governo. O que aconteceu? Foi democracia, regra do jogo. Não estou fazendo julgamento de valor.”

Tomás explicou que era a favor da medida. “Mas minha opinião não interessa. Ela interessa, como cidadão; o que interessa naquele caso é a opinião do Congresso Nacional, que votou contra.” Em seguida, passou ao convite feito pelo então presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, para que as Forças Armadas participassem da comissão de transparência eleitoral. “Ele, não nós, é quem convida o representante das Forças Armadas para participar. Foi iniciativa do TSE. Entramos posteriormente na comissão de fiscalização. Não fomos nós.”

O general passou então a analisar as eleições de 2022, a vitória de Lula. “Mas aí o cara fala pra mim: mas general, teve fraude. Nós participamos de toda a fiscalização. Fizemos relatório. Fizemos tudo. Constatou-se fraude? Não. Esse mesmo processo eleitoral que elegeu o atual presidente foi o mesmo que elegeu majoritariamente um Congresso conservador e governadores conservadores. Então, a fraude foi só para cargo de presidente?” Descreveu então um a um os candidatos eleitos pela direita ao Senado.

“Eu tenho o testemunho de quem participou da comissão de fiscalização. Não aconteceu nada. Infelizmente foi o resultado que, para a maioria de nós, foi indesejado, mas que aconteceu. O que tudo isso acarretou? Os protestos nos quartéis. No dia 1.º de novembro, começou a aparecer gente na frente dos quarteis.” Tomás lembrou que esse movimento começou havia muito tempo. E relatou que desde 2018 já havia gente acampada em frente ao quartel, pedindo “intervenção militar”. “E ninguém falou nada.”

Apoiadores do presidente Bolsonaro pedem 'intervenção militar' em frente ao Comando Militar do sudeste Foto: FELIPE RAU/ESTADAO

Foi a partir desse trecho que a fala de Tomás despertou a atenção quando foi divulgada. Estava então no 37.º minuto da gravação. Era natural que assim fosse, pois era ali que o general tratava dos fatos que levaram ao 8 de Janeiro e ao comando da Força. “Até 31 de dezembro essas manifestações ficaram em frente aos quartéis. Não parou São Paulo”. Tomás dimensionou-lhes o tamanho. Disse que reuniam até 1,7 mil pessoas por dia em um Estado com 42 milhões de pessoas. “É uma parte que tem de ser respeitada.”

A ordem de Bolsonaro para os acampados nos quartéis

Analisado agora, o relato de Tomás coincide em linhas gerais aos dos ex-comandantes ouvidos pela PF. Parte delas complica a situação de Bolsonaro e isenta o Exército. “Teve uma nota à imprensa (dos comandantes das Forças), que foi emitida, e foi uma orientação generalizada: os caras estão manifestando. Havia um entendimento do comandante em chefe das Forças Armadas, que era o presidente da República, de que não era para mexer, que aquilo ali era legítimo. Ninguém se manifestou para nada. A Justiça não se manifestou, Ministério Público não se manifestou; não teve nada. Ninguém pediu para tirar.”

O trecho passou quase despercebido – foi citado apenas em uma reportagem localizada pela coluna. Soa como uma peça que liga o Planalto às manifestações que desembocaram na Festa da Selma, o plano B do bolsonarismo para o golpe, diante da recusa dos comandantes das Forças em aderir à intentona. Ao mesmo tempo, está ali já a defesa dos comandantes militares feita em depoimentos à PF e às CPIs diante da acusação de leniência com os acampados. Tudo dito claramente em janeiro de 2023.

“Eu falei de 1º de novembro a 31 de dezembro. Por quê? Mas quem era o governo de 1.º janeiro ao dia 8? O atual governo. E qual a ordem que teve para retirar? Nenhuma. Não teve ordem. Porque a expectativa era que o movimento ia naturalmente se dissolver. O que não ocorreu em Brasília. No dia 8, a gente teve um evento inaceitável em qualquer circunstância. Vandalismo. Projetou a imagem negativa do Brasil no mundo e, do ponto de vista estratégico, fortalece o adversário. Aí deu problema. Aí, no dia 9, nós tivemos ordem para retirar. Aqui no Estado de São Paulo não tivemos um problema.”

Peritos da Polícia Federal no STF verificam a destruição no prédio, em Brasília, após ataque do dia 8 de janeiro Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

O adversário pode ser entendido aqui de diversas formas. Cabe a Tomás explicar a passagem. É a partir desse trecho que o general parece se colocar na mesma bolha de seus comandados, a da direita. Mostrava o que chamava de charges “do outro lado”, que ridicularizavam militares. “Todo mundo fica puto. Aqui botando a gente como marionete. Aqui uma sacanagem, botando a gente com viagra. Aqui o papa-léguas, que sempre entra pelo cano. Coisa maldosa, agressiva, acintosa, mas faz parte do jogo democrático.”

A campanha contra os generais, o ‘borra-botas’, a chantagem e a cara do diabo

De repente, ele mudou de trajeto e passou a mostrar agressões virtuais aos generais legalistas. Disse que tinham o objetivo de acabar com “a nossa coesão”. “Isso aqui é para minar.” E descreveu uma delas, uma mensagem distribuída nas redes sociais que dizia: “Quem presta continência a ladrão não merece respeito da população”. Tomás abandonava a bolha da esquerda e passava a tratar da campanha da extrema direita, coordenada por integrantes do Palácio e por influenciadores bolsonaristas. Não sabia ainda da participação de Braga Netto, mas pressentia que se buscava levar descrédito aos comandantes diante da tropa.

O ladrão da mensagem era uma referência a Lula, o presidente eleito. “O que aprendemos em nossas escolas: a gente presta continência à pessoa ou à autoridade? Daqui a pouco eu não gosto daquele comandante e não presto continência a ele? Quantas vezes a gente foi comandado por um major, capitão ou tenente que a gente não gostava do cara, ou que a gente identificava que o cara tem defeito?” E concluiu: “Prestamos continência à autoridade; se não, não é Exército, não é Força Armada, vira milícia, vira bando”. E descreveu ataques aos generais, descritos como “melancias”.

O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a cerimônia de passagem de comando do Comando Militar do Nordeste, no Recife, com o comandante do Exército, general Tomás Paiva Foto: Foto: Ricardo Stuckert / PR

E definiu seu objetivo. “O nosso papel é identificar os dois extremos, usando a mesma tática que o outro usa contra a gente.” Tomás reagiu de forma enfática contra o linchamento moral dos generais. “Ataques sórdidos, mentirosos, infames e desleais e covardes. Usam do anonimato. Isso sim é covardia. Tentativa de assassinar a reputação.” Tomás exibia aos seus subordinados um slide no qual os generais legalistas eram chamados de covardes. O discurso tinha o mesmo teor dos comentários de Braga Netto para o major Airton Barros, ao chamar o então comandante do Exército, Freire Gomes, de “cagão” por ter sido contra o golpe.

Braga mandou Barros difamar os generais. Tomás não sabia. Sua resposta era dirigida ao blogueiro Paulo Figueiredo, a face visível da campanha coordenada pelo Planalto contra os generais. “Para você tomar decisão que contraria interesses, você tem de ter coragem moral, coragem física; para você mandar o cara para a guerra, para mandar o cara destruir uma posição de metralhadora, para entregar o menino que morreu, como eu já tive de entregar para o pai, você precisa ter coragem. O comandante não pode delegar a sua missão. Eu não desejo isso para ninguém. Eu tive de entregar na Academia, no Haiti e no (Complexo do) Alemão. Não é um borra-botas desses que vai me falar de coragem.”

Tomás descreveu ali o episódio da conversa com Villas Bôas em dezembro de 2022, na qual Braga Netto afirma que ele foi repreender o ex-comandante em razão dos acampamentos. Figueiredo divulgou a informação de que o general “foi chantagear Villas Bôas”. “Ficou bonita essa foto aqui, eu com cara de diabo: foi chantagear o general Villas Bôas. O General Villas Bôas me mandou um zap recentemente dizendo que ‘você é meu amigo, irmão, parente e filho’. A relação que eu tenho com ele é de cadete, meu comandante de companhia. Foram colocar essa mentira sórdida que eu fui chantagear o general Villas Bôas.”

E prosseguiu exibindo as publicações da campanha orquestrada contra os generais para constrangê-los ou até que os coronéis decidissem ultrapassar seus comandantes e dar o golpe. “Aqui ô. Frouxo, melancia, covarde, comunista, achando que vou me intimidar com essa p*. Não vou mudar um milímetro do que eu penso.” É quando o futuro comandante do Exército passa a analisar as fotografias do ataque à sede dos Três Poderes. Tomás é duro ao condenar os atos, mas evita classificá-lo como golpe ou terrorismo – as revelações da PF ainda não eram conhecidas.

O repúdio ao golpe: evitar um banho de sangue e o isolamento do País

Eis o seu repúdio: “Aqui as cenas deploráveis e lamentáveis. A gente deu ferramenta para o cara (Alexandre de Moraes) chamar de terrorista. Isso aqui é vândalo, isso é maluco, é cara que entrou em espiral de fanatismo que não se sustenta. O que produziu? Nada. O cara cagou na cadeira do Supremo. O que isso muda? Muda p* nenhuma”. “Se nego (sic) destruísse, jogasse uma bomba no Palácio presidencial, ele ia despachar de outro palácio. Que coisa infantil, burra, eles entregaram um salvo-conduto enorme para uma narrativa que a gente está vendo que está sendo estabelecida agora.”

Ministro Alexandre de Moraes visita o edifício sede do STF após depredação de bolsonaristas no dia 8 de janeiro Foto:

É quando Tomás chegou à razão de o golpe ter sido rejeitado pelos militares. Ele lê o que estava escrito em um cartaz de um manifestante: “Intervenção militar com Bolsonaro na Presidência”. Em seguida, fez seu comentário. “Impossível de fazer. A gente viu as consequências disso. Vocês viram a repercussão mundial. Imagina se a gente tivesse enveredado para uma aventura? A gente não sobreviveria como País; a moeda explodiria. A gente ia levar um bloqueio econômico jamais visto. Você ia ficar um pária, e o nosso povo ia sofrer as consequências. Ia ter sangue na rua. Ou você acha que o povo ia ficar em casa. Não ia acontecer.”

Então, o general concluiu: “Coragem é o reverso. A coragem é a gente se manter instituição de Estado, mesmo que isso custe alguma coisa de popularidade. Não interessa; isso você recupera. Mergulharíamos o País no caos.” E mostrou as pesquisas que mostraram a rejeição de 75% dos brasileiros ao 8 de Janeiro e constatou a falta de lideranças políticas no protesto. Bolsonaro estava na Flórida. “O filho do presidente (Eduardo Bolsonaro) foi para onde? Foi para o Catar assistir à Copa do Mundo. Agora querem terceirizar a culpa e botar a culpa na gente.”

Tomás encerrou a reunião elogiando o então comandante do Exército, a quem chamou de corajoso e correto. “Uma pessoa com coração enorme, patriota, sincero, tranquilo.” Disse que tudo o que aconteceu no dia 8 estava sendo apurado e quem fez coisa errada seria punido ainda que tivesse “gente nossa”.

Por fim, afirmou que ninguém aproveitaria o momento para enfraquecer as Forças Armadas. “Nós não trabalhamos para governo. Nós trabalhamos para o Estado. Da nossa postura, da manutenção dos valores, da hierarquia e da disciplina depende a força dos comandantes de Força. General de Exército não tem partido. Se a gente permitir que o Exército fique partidário será o início da nossa derrocada.”

O comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, expôs em conversa com seus subordinados as razões pelas quais o Exército se afastou de Jair Bolsonaro e rejeitou a tentativa de golpe de 8 de janeiro. Disse que foi Bolsonaro quem deu a ordem para não “mexer” com os acampamentos em frente aos quartéis. E rebateu a acusação da extrema direita de prestar continência a ladrão: “Prestamos continência à autoridade; se não, não é Exército, não é Força Armada, vira milícia, vira bando”.

O comandante do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva participa da cerimônia em comemoração ao Dia do Soldado no Quartel-General da Força Terrestre, em Brasília Foto: WILTON JUNIOR

Disse tudo isso, mas ninguém lhe deu muita atenção. Isso aconteceu pouco antes de ele assumir o comando da Força Terrestre. Aos subordinados, ele explicou também como seria a relação do Exército para reduzir danos à Força diante das pressões contra a instituição. É preciso ouvir com atenção renovada a gravação histórica de quase uma hora para entender as atuais manchetes dos jornais.

É que há muitas razões para o fracasso do golpe bolsonarista. Mas uma delas ainda merece uma explicação: o que fez com que generais se transformassem no principal obstáculo à intentona urdida e engendrada por Jair Bolsonaro e seus turibulários do Planalto? Por que homens sem nenhuma simpatia pelo PT ou por Lula – conservadores e marcadamente de direita – e treinados para a guerra se manifestaram pela manutenção da legalidade e do estado democrático de direito?

Depois das operações Venire e Tempus Veritatis, da Polícia Federal, é fácil enxergar motivos e justificações para a manutenção da legalidade e a derrota do golpe. Mas seria assim antes de se conhecer o contrabando e a venda das joias? E as falsificações de documentos? Ou os pagamentos para a manutenção dos acampamentos e as mensagens abjetas de Braga Netto sobre seus camaradas generais. Enfim, seria assim quando não existia a delação do tenente-coronel Mauro Cid?

O tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, que foi ajudante de ordens do ex-presidente da República Jair Bolsonaro Foto: Geraldo Magela/Agencia Senado

É fácil justificar a oposição ao golpe quando se está demonstrado o que muitos hoje consideram ser o enredo de sempre das conspirações palacianas: deslealdade, traição e a sede de dinheiro, poder e privilégio. Tudo sempre disfarçado de ideologia salvadora da Pátria para convencer ingênuos e satisfazer fanáticos. Mas em 2022 era diferente. Podia-se desconfiar, mas não se tinha os detalhes.

Como então capturar o espírito que moveu os generais naquele ano sem vê-lo corrompido pelo que se soube depois? Como escapar à leitura anacrônica do passado e ao mesmo tempo se compreender à luz do que se sabe hoje o que moveu a conduta descrita nos depoimentos à PF prestados pelo general Marco Antonio Freire Gomes e pelo brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, ex-comandantes do Exército e da Força Aérea? Enfim, por que a maioria dos generais das forças singulares se opôs ao golpe?

‘Peço que ninguém grave nada’

É aí que ganha novo sentido e importância um áudio gravado clandestinamente por um militar em 18 de janeiro de 2023. Era uma reunião do general Tomás, então comandante militar do Sudeste, com seu Estado-Maior, logo depois de uma cerimônia em homenagem aos mortos da Força de Paz, no Haiti. Ele começa com o general dizendo que se recusava a pedir que deixassem o “celular fora” pois tinha “plena confiança” em seu staff para falar em caráter reservado. “Peço que ninguém grave nada.”

O engano de Tomás sobre a confiança que podia depositar em seus homens ironicamente permite hoje conhecer o que o atual chefe do Exército – um dos generais que se opuseram ao golpe – pensava quando era um oficial que teria apenas mais quatro meses na ativa, portanto, sem maiores interesses políticos ou pessoais. Mais do que isso: havia sido preterido para assumir o comando do Exército pela infeliz decisão de Lula de escolher, sem outro critério, o quatro estrelas mais antigo da lista para chefiar a Força Terrestre.

Ou seja, Tomás não tinha outra razão para dizer o que disse, além de prestar contas aos subordinados. Mas quando o áudio foi publicado no Posdast Roteirices, em fevereiro de 2023, o general já comandava o Exército – ele fora nomeado para o cargo em 21 de janeiro. Prestou-se então apenas atenção a um trecho de sua fala, o que dizia: “Eu tenho o testemunho de quem participou da comissão de fiscalização (das eleições). Não aconteceu nada. Infelizmente foi o resultado que, para a maioria de nós, foi indesejado, mas que aconteceu”. Ninguém deu muita importância ao restante. Um erro.

O comandante militar do Sudeste, general Tomás Miguel Ribeiro de Paiva discursa em defesa da democracia para a tropa  Foto: Reprodução/CMSE

Tomás virou comandante do Exército justamente porque o homem que o presidente escolhera para a função, o general Julio Cesar Arruda havia se recusado a cumprir a ordem de Lula de retirar o tenente-coronel Mauro Cid do comando do Batalhão de Ações e Comandos. Ou seja, à luz do que se sabe hoje sobre Cid e sobre presença de militares das Forças Especiais no plano do golpe, pode-se afirmar que, dificilmente, existiria razão mais acertada para derrubar um comandante do Exército com menos de um mês no cargo.

O caso Cid não era uma mera gota d’água a encher o copo de Arruda após a intentona do 8 de janeiro. Ele seria uma espada acima do pescoço da democracia? Há já quem enxergue no PT que a sua nomeação para o batalhão de Goiânia, ainda que decidida antes da eleição de 2022, pudesse se transformar em uma ameaça ao novo governo, deixando aos conspiradores tropas à disposição para que, diante de uma futura crise, fosse possível prender o ministro Alexandre Moraes, Lula ou quem quer que fosse.

Cid foi imediatamente removido por Tomás. Mas o que ele pensava então? É preciso revisitar sua fala naquele dia 18 de janeiro para compreender o estado de espírito que manteve a caserna distante do golpe. “Vocês têm que ouvir de maneira direta e franca o que o comandante pensa. Nós fomos formados tanto na Escola de Sargentos quanto na Academia Militar para suportar adversidades. Não somos formados como as crianças de hoje em dia que papai só pode elogiar.”

O evento de Bolsonaro nas Agulhas Negras e a eleição

Então com 47 anos de carreira, Tomás começa recuperando um episódio que ficou conhecido por simbolizar o lançamento da candidatura à presidência de Bolsonaro, logo após sua reeleição como deputado federal em 2014.” O general conta tudo com a ajuda de slides: “Ele era deputado federal e sempre comparecia aos eventos (na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, na época, comandada por Tomás) e era recebido.”

Bolsonaro na cerimônia de entrega de espadins aos cadetes da Turma Dom Pedro II, da Academia Militar dos Agulhas Negras. Foto: Clauber Cleber Caetano

Tomás, que era acusado pela oposição de permitir o deputado usar a academia como palanque, explicou o que houve naquele dia. “Ele (Bolsonaro) conhece a academia e sabe onde os cadetes ficam concentrados antes de entrar e escapou – eu não estava lá, eu estava no hotel de trânsito, recebendo as autoridades. E isso virou o start da candidatura dele. E ele foi aplaudido como qualquer outro cara que chegasse ali.”

Tomás tentou se dissociar e ao mesmo tempo afastava o Exército do evento, tratado como um marco pelo bolsonarismo. “Ele (Bolsonaro) apresenta isso aqui. E foi uma coisa que eu como comandante da Aman tive de responder como é que foi. A presidente na época era a Dilma, e eu tive de responder. Como aconteceu isso aí? Aconteceu. Como algumas coisas acontecem, escapam do controle.”

O relato de Tomás então segue para 2018, quando se formou a chapa de Bolsonaro com o general Mourão. “Mourão tinha acabado de sair do Alto Comando, quando teve três episódios controversos, é meu amigo pessoal, grande camarada, mas eu estou colocando que começou a entrar política e Forças Armadas, e o pessoal começou a não entender bem essa divisão. Passei 2018, até outubro, no gabinete do comandante do Exército (general Villas Bôas) e, a partir de novembro, fui comandar a 5ª DE (Divisão de Exército), no Paraná. E o discurso que a gente conversava com a tropa era: ‘Minha gente, política dentro do quartel dá ruim, não é coisa legal’. O que eu falava naquela época é que política partidária sempre divide.”

O general continuou descrevendo os eventos daquele ano, como a facada dada em Bolsonaro. “O presidente quase morreu, foi real.” Lembrou dos números dos votos no segundo turno, que deram 53% a Bolsonaro ante 44% ao candidato do PT, Fernando Haddad. Relatou as promessas de campanha de Bolsonaro e chegou à pandemia de covid-19. “Tivemos dois anos e meio de pandemia” Chegou então ao ponto central da conversa: a militarização do governo.

A militarização do governo e suas interferências na área militar

“Superou (os presidentes) Geisel, Médici e Figueiredo em ministros militares. Isso aconteceu. Isso é real. Em 2020, tínhamos esse quadro de general, inclusive com algumas pastas como o Pazuello na Saúde. Esse era o quadro ou da reserva ou gente que estava na ativa ainda.” O número de militares cedidos para cargos civis foi grande, com um aumento de 108%, relatou. “É natural que o presidente chame as pessoas de sua confiança.”

Em seguida, ele exibiu a seus homens uma pesquisa em que 47% da população achava ruim a presença de militares em cargos civis. O general parecia tentar alertar a tropa sobre o que pensavam as pessoas fora da bolha dos militares. Abordou a nomeação de militares como ministros da Defesa. Relembrou a criação da Pasta, no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1999. “Até 2018 todos os ministros da Defesa foram civis. O militar pode ser ministro? Pode. Mas quem enquadra os militares é o poder político. Isso acontecia até nos governos militares.”

O presidente Jair Bolsonaro participa da cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto; à esquerda estão os ministros Braga Netto (Defesa) e Luiz Eduardo Ramos (secretaria da Presidência) e à direita do presidente estão os generais Pimentel e Paulo Sérgio de Oliveira  Foto: Marcos Corrêa/PR

Realçou a instabilidade na área militar durante o governo Bolsonaro, com três mudanças no ministério da Defesa, assim como três no comando da Força Terrestre, duas na Aeronáutica e duas na Marinha, o que não havia acontecido em nenhum período da Nova República. Para lançar sua primeira acusação direta ao ex-presidente: o relato do que chamou de “algumas interferências do governo diretas na área militar”. É aqui que começa a explicação sobre o descolamento dos militares em relação ao ex-presidente, que buscava comandantes subservientes.

Passou despercebido de todos o que Tomás leu aos seus subordinados. Era o título de uma reportagem: “Próxima motociata de Bolsonaro será na Aman”. Ele comentou: “É verdade. Não ocorreu porque os comandantes convenceram Bolsonaro de que não era uma coisa adequada.” Tomás não forneceu detalhes do caso. Mas esta coluna os revelou em outubro de 2023.

O episódio representou um embate que opôs o governo ao então comandante da Aman, general Paulo Roberto Rodrigues Pimentel. Ao iniciar suas motociatas pelo País, Bolsonaro teve a ideia de entrar com uma delas, vinda de Resende (RJ), pelo portal monumental da Academia, no dia da cerimônia de entrega dos espadins. Era 14 de agosto de 2021. Pimentel, um Força Especial, foi abordado pelos ministros Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto. Tentaram convencê-lo a permitir a algazarra. O general respondeu que só havia um jeito disso acontecer: nomeando outro oficial para comandar a escola.

“Ele queria fazer a motociata, um ato político dentro da academia militar. Alguém aqui acha isso uma coisa adequada a gente ter uma manifestação dessa dentro de uma academia militar? Estou colocando aqui o que ocorreu”, afirmou Tomás. Em seguida, passou a tratar das comemorações do Bicentenário da Independência, em Copacabana, no Rio, evento que meses depois serviria para a segunda condenação de Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O governador do Estado do Rio de Janeiro e candidato a reeleição, Cláudio Castro, o empresário Luciano Hang, e o presidente da República e candidato à reeleição pelo PL, Jair Bolsonaro, durante o ato em celebração aos 200 anos de independência do Brasil, em 7 de setembro, no bairro de Copacabana, na zona sul do Rio Foto: PEDRO KIRILOS/ESTADÃO

Tomás fez um pedido aos subordinados: “Quem serviu no Rio de Janeiro levanta a mão” Ouve-se a voz de um oficial ao qual o comandante pergunta: “Daniel, onde é que era o desfile de 7 de Setembro?”. Ao que o militar responde: “Na Avenida Presidente Vargas.” “Desde quando?” pergunta Tomás. “Desde...” E o general interrompe a resposta do subordinado e emenda: “...Desde sempre. Eu desfilei na Avenida Presidente Vargas no ano de 1979, em 1980 e em 1981. Nesse ano que passou, mudou. Passou a ser em Copacabana. No final não teve desfile. Mas para o povo estava tudo misturado, o que era militar e o que era político.”

Tomás comentava as notícias. “Houve diversos pontos de interferência política em temas militares. Em 2021, estava na pandemia, o general Pazuello estava na ativa e foi em uma motociata, acompanhando o presidente. E sobe no palanque do presidente. Comportamento adequado ou inadequado? Inadequado. Quando o ato é público, a gente tem de falar publicamente que foi inadequado.”

Comparou o fato ao que houve em São Paulo após a eleição de Lula. “Nesse período de manifestação, de 1º de novembro até 9 de janeiro, não tivemos na área do Comando Militar do Sudeste nenhum militar da ativa que se envolveu em manifestação em todo Estado.” Pazuello foi inocentado pelo general Paulo Sérgio de Oliveira, então comandante do Exército, que mais tarde assumiria a Defesa. Tomás disse que não podia criticar a decisão dele, mas fez questão de lembrar que houve um erro. “A gente não pode aceitar o erro. O erro aconteceu.” O episódio foi um dos momentos-chave da cisão entre os generais e o Planalto.

Política partidária no quartel e a falta de prova de fraude nas urnas

Tomás mostrou como esses eventos afetaram a credibilidade do Exército, muito antes da intentona do dia 8 de Janeiro. “Política partidária dentro da Força gera desgaste. Todos nós estamos na bolha, na bolha fardada, na bola conservadora, de direita, militarista; raramente, um de nós frequenta a outra bollha. Mas existe outra bolha. E ela não é pequena; ela é grande e se manifesta nas redes sociais”, afirmou.

Evento faz parte da Operação Formosa, da Marinha; foi a primeira vez que os blindados passaram por Brasília e foram recebidos por um presidente da República. Foto: GABRIELA BILÓ/ESTADÃO

O general exibiu aos subordinados charges publicadas quando a Marinha desfilou com carros de combate pela Esplanada, no dia da votação da PEC do Voto Impresso. “A gente fica puto quando vê isso aqui. Ninguém gosta.” E afirmou que a proposta do presidente era legítima, mas lembrou que quem elabora as leis no País é o Congresso. “Essa proposta foi rejeitada. Foi uma derrota para o governo. O que aconteceu? Foi democracia, regra do jogo. Não estou fazendo julgamento de valor.”

Tomás explicou que era a favor da medida. “Mas minha opinião não interessa. Ela interessa, como cidadão; o que interessa naquele caso é a opinião do Congresso Nacional, que votou contra.” Em seguida, passou ao convite feito pelo então presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, para que as Forças Armadas participassem da comissão de transparência eleitoral. “Ele, não nós, é quem convida o representante das Forças Armadas para participar. Foi iniciativa do TSE. Entramos posteriormente na comissão de fiscalização. Não fomos nós.”

O general passou então a analisar as eleições de 2022, a vitória de Lula. “Mas aí o cara fala pra mim: mas general, teve fraude. Nós participamos de toda a fiscalização. Fizemos relatório. Fizemos tudo. Constatou-se fraude? Não. Esse mesmo processo eleitoral que elegeu o atual presidente foi o mesmo que elegeu majoritariamente um Congresso conservador e governadores conservadores. Então, a fraude foi só para cargo de presidente?” Descreveu então um a um os candidatos eleitos pela direita ao Senado.

“Eu tenho o testemunho de quem participou da comissão de fiscalização. Não aconteceu nada. Infelizmente foi o resultado que, para a maioria de nós, foi indesejado, mas que aconteceu. O que tudo isso acarretou? Os protestos nos quartéis. No dia 1.º de novembro, começou a aparecer gente na frente dos quarteis.” Tomás lembrou que esse movimento começou havia muito tempo. E relatou que desde 2018 já havia gente acampada em frente ao quartel, pedindo “intervenção militar”. “E ninguém falou nada.”

Apoiadores do presidente Bolsonaro pedem 'intervenção militar' em frente ao Comando Militar do sudeste Foto: FELIPE RAU/ESTADAO

Foi a partir desse trecho que a fala de Tomás despertou a atenção quando foi divulgada. Estava então no 37.º minuto da gravação. Era natural que assim fosse, pois era ali que o general tratava dos fatos que levaram ao 8 de Janeiro e ao comando da Força. “Até 31 de dezembro essas manifestações ficaram em frente aos quartéis. Não parou São Paulo”. Tomás dimensionou-lhes o tamanho. Disse que reuniam até 1,7 mil pessoas por dia em um Estado com 42 milhões de pessoas. “É uma parte que tem de ser respeitada.”

A ordem de Bolsonaro para os acampados nos quartéis

Analisado agora, o relato de Tomás coincide em linhas gerais aos dos ex-comandantes ouvidos pela PF. Parte delas complica a situação de Bolsonaro e isenta o Exército. “Teve uma nota à imprensa (dos comandantes das Forças), que foi emitida, e foi uma orientação generalizada: os caras estão manifestando. Havia um entendimento do comandante em chefe das Forças Armadas, que era o presidente da República, de que não era para mexer, que aquilo ali era legítimo. Ninguém se manifestou para nada. A Justiça não se manifestou, Ministério Público não se manifestou; não teve nada. Ninguém pediu para tirar.”

O trecho passou quase despercebido – foi citado apenas em uma reportagem localizada pela coluna. Soa como uma peça que liga o Planalto às manifestações que desembocaram na Festa da Selma, o plano B do bolsonarismo para o golpe, diante da recusa dos comandantes das Forças em aderir à intentona. Ao mesmo tempo, está ali já a defesa dos comandantes militares feita em depoimentos à PF e às CPIs diante da acusação de leniência com os acampados. Tudo dito claramente em janeiro de 2023.

“Eu falei de 1º de novembro a 31 de dezembro. Por quê? Mas quem era o governo de 1.º janeiro ao dia 8? O atual governo. E qual a ordem que teve para retirar? Nenhuma. Não teve ordem. Porque a expectativa era que o movimento ia naturalmente se dissolver. O que não ocorreu em Brasília. No dia 8, a gente teve um evento inaceitável em qualquer circunstância. Vandalismo. Projetou a imagem negativa do Brasil no mundo e, do ponto de vista estratégico, fortalece o adversário. Aí deu problema. Aí, no dia 9, nós tivemos ordem para retirar. Aqui no Estado de São Paulo não tivemos um problema.”

Peritos da Polícia Federal no STF verificam a destruição no prédio, em Brasília, após ataque do dia 8 de janeiro Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

O adversário pode ser entendido aqui de diversas formas. Cabe a Tomás explicar a passagem. É a partir desse trecho que o general parece se colocar na mesma bolha de seus comandados, a da direita. Mostrava o que chamava de charges “do outro lado”, que ridicularizavam militares. “Todo mundo fica puto. Aqui botando a gente como marionete. Aqui uma sacanagem, botando a gente com viagra. Aqui o papa-léguas, que sempre entra pelo cano. Coisa maldosa, agressiva, acintosa, mas faz parte do jogo democrático.”

A campanha contra os generais, o ‘borra-botas’, a chantagem e a cara do diabo

De repente, ele mudou de trajeto e passou a mostrar agressões virtuais aos generais legalistas. Disse que tinham o objetivo de acabar com “a nossa coesão”. “Isso aqui é para minar.” E descreveu uma delas, uma mensagem distribuída nas redes sociais que dizia: “Quem presta continência a ladrão não merece respeito da população”. Tomás abandonava a bolha da esquerda e passava a tratar da campanha da extrema direita, coordenada por integrantes do Palácio e por influenciadores bolsonaristas. Não sabia ainda da participação de Braga Netto, mas pressentia que se buscava levar descrédito aos comandantes diante da tropa.

O ladrão da mensagem era uma referência a Lula, o presidente eleito. “O que aprendemos em nossas escolas: a gente presta continência à pessoa ou à autoridade? Daqui a pouco eu não gosto daquele comandante e não presto continência a ele? Quantas vezes a gente foi comandado por um major, capitão ou tenente que a gente não gostava do cara, ou que a gente identificava que o cara tem defeito?” E concluiu: “Prestamos continência à autoridade; se não, não é Exército, não é Força Armada, vira milícia, vira bando”. E descreveu ataques aos generais, descritos como “melancias”.

O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a cerimônia de passagem de comando do Comando Militar do Nordeste, no Recife, com o comandante do Exército, general Tomás Paiva Foto: Foto: Ricardo Stuckert / PR

E definiu seu objetivo. “O nosso papel é identificar os dois extremos, usando a mesma tática que o outro usa contra a gente.” Tomás reagiu de forma enfática contra o linchamento moral dos generais. “Ataques sórdidos, mentirosos, infames e desleais e covardes. Usam do anonimato. Isso sim é covardia. Tentativa de assassinar a reputação.” Tomás exibia aos seus subordinados um slide no qual os generais legalistas eram chamados de covardes. O discurso tinha o mesmo teor dos comentários de Braga Netto para o major Airton Barros, ao chamar o então comandante do Exército, Freire Gomes, de “cagão” por ter sido contra o golpe.

Braga mandou Barros difamar os generais. Tomás não sabia. Sua resposta era dirigida ao blogueiro Paulo Figueiredo, a face visível da campanha coordenada pelo Planalto contra os generais. “Para você tomar decisão que contraria interesses, você tem de ter coragem moral, coragem física; para você mandar o cara para a guerra, para mandar o cara destruir uma posição de metralhadora, para entregar o menino que morreu, como eu já tive de entregar para o pai, você precisa ter coragem. O comandante não pode delegar a sua missão. Eu não desejo isso para ninguém. Eu tive de entregar na Academia, no Haiti e no (Complexo do) Alemão. Não é um borra-botas desses que vai me falar de coragem.”

Tomás descreveu ali o episódio da conversa com Villas Bôas em dezembro de 2022, na qual Braga Netto afirma que ele foi repreender o ex-comandante em razão dos acampamentos. Figueiredo divulgou a informação de que o general “foi chantagear Villas Bôas”. “Ficou bonita essa foto aqui, eu com cara de diabo: foi chantagear o general Villas Bôas. O General Villas Bôas me mandou um zap recentemente dizendo que ‘você é meu amigo, irmão, parente e filho’. A relação que eu tenho com ele é de cadete, meu comandante de companhia. Foram colocar essa mentira sórdida que eu fui chantagear o general Villas Bôas.”

E prosseguiu exibindo as publicações da campanha orquestrada contra os generais para constrangê-los ou até que os coronéis decidissem ultrapassar seus comandantes e dar o golpe. “Aqui ô. Frouxo, melancia, covarde, comunista, achando que vou me intimidar com essa p*. Não vou mudar um milímetro do que eu penso.” É quando o futuro comandante do Exército passa a analisar as fotografias do ataque à sede dos Três Poderes. Tomás é duro ao condenar os atos, mas evita classificá-lo como golpe ou terrorismo – as revelações da PF ainda não eram conhecidas.

O repúdio ao golpe: evitar um banho de sangue e o isolamento do País

Eis o seu repúdio: “Aqui as cenas deploráveis e lamentáveis. A gente deu ferramenta para o cara (Alexandre de Moraes) chamar de terrorista. Isso aqui é vândalo, isso é maluco, é cara que entrou em espiral de fanatismo que não se sustenta. O que produziu? Nada. O cara cagou na cadeira do Supremo. O que isso muda? Muda p* nenhuma”. “Se nego (sic) destruísse, jogasse uma bomba no Palácio presidencial, ele ia despachar de outro palácio. Que coisa infantil, burra, eles entregaram um salvo-conduto enorme para uma narrativa que a gente está vendo que está sendo estabelecida agora.”

Ministro Alexandre de Moraes visita o edifício sede do STF após depredação de bolsonaristas no dia 8 de janeiro Foto:

É quando Tomás chegou à razão de o golpe ter sido rejeitado pelos militares. Ele lê o que estava escrito em um cartaz de um manifestante: “Intervenção militar com Bolsonaro na Presidência”. Em seguida, fez seu comentário. “Impossível de fazer. A gente viu as consequências disso. Vocês viram a repercussão mundial. Imagina se a gente tivesse enveredado para uma aventura? A gente não sobreviveria como País; a moeda explodiria. A gente ia levar um bloqueio econômico jamais visto. Você ia ficar um pária, e o nosso povo ia sofrer as consequências. Ia ter sangue na rua. Ou você acha que o povo ia ficar em casa. Não ia acontecer.”

Então, o general concluiu: “Coragem é o reverso. A coragem é a gente se manter instituição de Estado, mesmo que isso custe alguma coisa de popularidade. Não interessa; isso você recupera. Mergulharíamos o País no caos.” E mostrou as pesquisas que mostraram a rejeição de 75% dos brasileiros ao 8 de Janeiro e constatou a falta de lideranças políticas no protesto. Bolsonaro estava na Flórida. “O filho do presidente (Eduardo Bolsonaro) foi para onde? Foi para o Catar assistir à Copa do Mundo. Agora querem terceirizar a culpa e botar a culpa na gente.”

Tomás encerrou a reunião elogiando o então comandante do Exército, a quem chamou de corajoso e correto. “Uma pessoa com coração enorme, patriota, sincero, tranquilo.” Disse que tudo o que aconteceu no dia 8 estava sendo apurado e quem fez coisa errada seria punido ainda que tivesse “gente nossa”.

Por fim, afirmou que ninguém aproveitaria o momento para enfraquecer as Forças Armadas. “Nós não trabalhamos para governo. Nós trabalhamos para o Estado. Da nossa postura, da manutenção dos valores, da hierarquia e da disciplina depende a força dos comandantes de Força. General de Exército não tem partido. Se a gente permitir que o Exército fique partidário será o início da nossa derrocada.”

O comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, expôs em conversa com seus subordinados as razões pelas quais o Exército se afastou de Jair Bolsonaro e rejeitou a tentativa de golpe de 8 de janeiro. Disse que foi Bolsonaro quem deu a ordem para não “mexer” com os acampamentos em frente aos quartéis. E rebateu a acusação da extrema direita de prestar continência a ladrão: “Prestamos continência à autoridade; se não, não é Exército, não é Força Armada, vira milícia, vira bando”.

O comandante do Exército, general Tomás Ribeiro Paiva participa da cerimônia em comemoração ao Dia do Soldado no Quartel-General da Força Terrestre, em Brasília Foto: WILTON JUNIOR

Disse tudo isso, mas ninguém lhe deu muita atenção. Isso aconteceu pouco antes de ele assumir o comando da Força Terrestre. Aos subordinados, ele explicou também como seria a relação do Exército para reduzir danos à Força diante das pressões contra a instituição. É preciso ouvir com atenção renovada a gravação histórica de quase uma hora para entender as atuais manchetes dos jornais.

É que há muitas razões para o fracasso do golpe bolsonarista. Mas uma delas ainda merece uma explicação: o que fez com que generais se transformassem no principal obstáculo à intentona urdida e engendrada por Jair Bolsonaro e seus turibulários do Planalto? Por que homens sem nenhuma simpatia pelo PT ou por Lula – conservadores e marcadamente de direita – e treinados para a guerra se manifestaram pela manutenção da legalidade e do estado democrático de direito?

Depois das operações Venire e Tempus Veritatis, da Polícia Federal, é fácil enxergar motivos e justificações para a manutenção da legalidade e a derrota do golpe. Mas seria assim antes de se conhecer o contrabando e a venda das joias? E as falsificações de documentos? Ou os pagamentos para a manutenção dos acampamentos e as mensagens abjetas de Braga Netto sobre seus camaradas generais. Enfim, seria assim quando não existia a delação do tenente-coronel Mauro Cid?

O tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, que foi ajudante de ordens do ex-presidente da República Jair Bolsonaro Foto: Geraldo Magela/Agencia Senado

É fácil justificar a oposição ao golpe quando se está demonstrado o que muitos hoje consideram ser o enredo de sempre das conspirações palacianas: deslealdade, traição e a sede de dinheiro, poder e privilégio. Tudo sempre disfarçado de ideologia salvadora da Pátria para convencer ingênuos e satisfazer fanáticos. Mas em 2022 era diferente. Podia-se desconfiar, mas não se tinha os detalhes.

Como então capturar o espírito que moveu os generais naquele ano sem vê-lo corrompido pelo que se soube depois? Como escapar à leitura anacrônica do passado e ao mesmo tempo se compreender à luz do que se sabe hoje o que moveu a conduta descrita nos depoimentos à PF prestados pelo general Marco Antonio Freire Gomes e pelo brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, ex-comandantes do Exército e da Força Aérea? Enfim, por que a maioria dos generais das forças singulares se opôs ao golpe?

‘Peço que ninguém grave nada’

É aí que ganha novo sentido e importância um áudio gravado clandestinamente por um militar em 18 de janeiro de 2023. Era uma reunião do general Tomás, então comandante militar do Sudeste, com seu Estado-Maior, logo depois de uma cerimônia em homenagem aos mortos da Força de Paz, no Haiti. Ele começa com o general dizendo que se recusava a pedir que deixassem o “celular fora” pois tinha “plena confiança” em seu staff para falar em caráter reservado. “Peço que ninguém grave nada.”

O engano de Tomás sobre a confiança que podia depositar em seus homens ironicamente permite hoje conhecer o que o atual chefe do Exército – um dos generais que se opuseram ao golpe – pensava quando era um oficial que teria apenas mais quatro meses na ativa, portanto, sem maiores interesses políticos ou pessoais. Mais do que isso: havia sido preterido para assumir o comando do Exército pela infeliz decisão de Lula de escolher, sem outro critério, o quatro estrelas mais antigo da lista para chefiar a Força Terrestre.

Ou seja, Tomás não tinha outra razão para dizer o que disse, além de prestar contas aos subordinados. Mas quando o áudio foi publicado no Posdast Roteirices, em fevereiro de 2023, o general já comandava o Exército – ele fora nomeado para o cargo em 21 de janeiro. Prestou-se então apenas atenção a um trecho de sua fala, o que dizia: “Eu tenho o testemunho de quem participou da comissão de fiscalização (das eleições). Não aconteceu nada. Infelizmente foi o resultado que, para a maioria de nós, foi indesejado, mas que aconteceu”. Ninguém deu muita importância ao restante. Um erro.

O comandante militar do Sudeste, general Tomás Miguel Ribeiro de Paiva discursa em defesa da democracia para a tropa  Foto: Reprodução/CMSE

Tomás virou comandante do Exército justamente porque o homem que o presidente escolhera para a função, o general Julio Cesar Arruda havia se recusado a cumprir a ordem de Lula de retirar o tenente-coronel Mauro Cid do comando do Batalhão de Ações e Comandos. Ou seja, à luz do que se sabe hoje sobre Cid e sobre presença de militares das Forças Especiais no plano do golpe, pode-se afirmar que, dificilmente, existiria razão mais acertada para derrubar um comandante do Exército com menos de um mês no cargo.

O caso Cid não era uma mera gota d’água a encher o copo de Arruda após a intentona do 8 de janeiro. Ele seria uma espada acima do pescoço da democracia? Há já quem enxergue no PT que a sua nomeação para o batalhão de Goiânia, ainda que decidida antes da eleição de 2022, pudesse se transformar em uma ameaça ao novo governo, deixando aos conspiradores tropas à disposição para que, diante de uma futura crise, fosse possível prender o ministro Alexandre Moraes, Lula ou quem quer que fosse.

Cid foi imediatamente removido por Tomás. Mas o que ele pensava então? É preciso revisitar sua fala naquele dia 18 de janeiro para compreender o estado de espírito que manteve a caserna distante do golpe. “Vocês têm que ouvir de maneira direta e franca o que o comandante pensa. Nós fomos formados tanto na Escola de Sargentos quanto na Academia Militar para suportar adversidades. Não somos formados como as crianças de hoje em dia que papai só pode elogiar.”

O evento de Bolsonaro nas Agulhas Negras e a eleição

Então com 47 anos de carreira, Tomás começa recuperando um episódio que ficou conhecido por simbolizar o lançamento da candidatura à presidência de Bolsonaro, logo após sua reeleição como deputado federal em 2014.” O general conta tudo com a ajuda de slides: “Ele era deputado federal e sempre comparecia aos eventos (na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, na época, comandada por Tomás) e era recebido.”

Bolsonaro na cerimônia de entrega de espadins aos cadetes da Turma Dom Pedro II, da Academia Militar dos Agulhas Negras. Foto: Clauber Cleber Caetano

Tomás, que era acusado pela oposição de permitir o deputado usar a academia como palanque, explicou o que houve naquele dia. “Ele (Bolsonaro) conhece a academia e sabe onde os cadetes ficam concentrados antes de entrar e escapou – eu não estava lá, eu estava no hotel de trânsito, recebendo as autoridades. E isso virou o start da candidatura dele. E ele foi aplaudido como qualquer outro cara que chegasse ali.”

Tomás tentou se dissociar e ao mesmo tempo afastava o Exército do evento, tratado como um marco pelo bolsonarismo. “Ele (Bolsonaro) apresenta isso aqui. E foi uma coisa que eu como comandante da Aman tive de responder como é que foi. A presidente na época era a Dilma, e eu tive de responder. Como aconteceu isso aí? Aconteceu. Como algumas coisas acontecem, escapam do controle.”

O relato de Tomás então segue para 2018, quando se formou a chapa de Bolsonaro com o general Mourão. “Mourão tinha acabado de sair do Alto Comando, quando teve três episódios controversos, é meu amigo pessoal, grande camarada, mas eu estou colocando que começou a entrar política e Forças Armadas, e o pessoal começou a não entender bem essa divisão. Passei 2018, até outubro, no gabinete do comandante do Exército (general Villas Bôas) e, a partir de novembro, fui comandar a 5ª DE (Divisão de Exército), no Paraná. E o discurso que a gente conversava com a tropa era: ‘Minha gente, política dentro do quartel dá ruim, não é coisa legal’. O que eu falava naquela época é que política partidária sempre divide.”

O general continuou descrevendo os eventos daquele ano, como a facada dada em Bolsonaro. “O presidente quase morreu, foi real.” Lembrou dos números dos votos no segundo turno, que deram 53% a Bolsonaro ante 44% ao candidato do PT, Fernando Haddad. Relatou as promessas de campanha de Bolsonaro e chegou à pandemia de covid-19. “Tivemos dois anos e meio de pandemia” Chegou então ao ponto central da conversa: a militarização do governo.

A militarização do governo e suas interferências na área militar

“Superou (os presidentes) Geisel, Médici e Figueiredo em ministros militares. Isso aconteceu. Isso é real. Em 2020, tínhamos esse quadro de general, inclusive com algumas pastas como o Pazuello na Saúde. Esse era o quadro ou da reserva ou gente que estava na ativa ainda.” O número de militares cedidos para cargos civis foi grande, com um aumento de 108%, relatou. “É natural que o presidente chame as pessoas de sua confiança.”

Em seguida, ele exibiu a seus homens uma pesquisa em que 47% da população achava ruim a presença de militares em cargos civis. O general parecia tentar alertar a tropa sobre o que pensavam as pessoas fora da bolha dos militares. Abordou a nomeação de militares como ministros da Defesa. Relembrou a criação da Pasta, no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1999. “Até 2018 todos os ministros da Defesa foram civis. O militar pode ser ministro? Pode. Mas quem enquadra os militares é o poder político. Isso acontecia até nos governos militares.”

O presidente Jair Bolsonaro participa da cerimônia de Entrega de Espadim aos Cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto; à esquerda estão os ministros Braga Netto (Defesa) e Luiz Eduardo Ramos (secretaria da Presidência) e à direita do presidente estão os generais Pimentel e Paulo Sérgio de Oliveira  Foto: Marcos Corrêa/PR

Realçou a instabilidade na área militar durante o governo Bolsonaro, com três mudanças no ministério da Defesa, assim como três no comando da Força Terrestre, duas na Aeronáutica e duas na Marinha, o que não havia acontecido em nenhum período da Nova República. Para lançar sua primeira acusação direta ao ex-presidente: o relato do que chamou de “algumas interferências do governo diretas na área militar”. É aqui que começa a explicação sobre o descolamento dos militares em relação ao ex-presidente, que buscava comandantes subservientes.

Passou despercebido de todos o que Tomás leu aos seus subordinados. Era o título de uma reportagem: “Próxima motociata de Bolsonaro será na Aman”. Ele comentou: “É verdade. Não ocorreu porque os comandantes convenceram Bolsonaro de que não era uma coisa adequada.” Tomás não forneceu detalhes do caso. Mas esta coluna os revelou em outubro de 2023.

O episódio representou um embate que opôs o governo ao então comandante da Aman, general Paulo Roberto Rodrigues Pimentel. Ao iniciar suas motociatas pelo País, Bolsonaro teve a ideia de entrar com uma delas, vinda de Resende (RJ), pelo portal monumental da Academia, no dia da cerimônia de entrega dos espadins. Era 14 de agosto de 2021. Pimentel, um Força Especial, foi abordado pelos ministros Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto. Tentaram convencê-lo a permitir a algazarra. O general respondeu que só havia um jeito disso acontecer: nomeando outro oficial para comandar a escola.

“Ele queria fazer a motociata, um ato político dentro da academia militar. Alguém aqui acha isso uma coisa adequada a gente ter uma manifestação dessa dentro de uma academia militar? Estou colocando aqui o que ocorreu”, afirmou Tomás. Em seguida, passou a tratar das comemorações do Bicentenário da Independência, em Copacabana, no Rio, evento que meses depois serviria para a segunda condenação de Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O governador do Estado do Rio de Janeiro e candidato a reeleição, Cláudio Castro, o empresário Luciano Hang, e o presidente da República e candidato à reeleição pelo PL, Jair Bolsonaro, durante o ato em celebração aos 200 anos de independência do Brasil, em 7 de setembro, no bairro de Copacabana, na zona sul do Rio Foto: PEDRO KIRILOS/ESTADÃO

Tomás fez um pedido aos subordinados: “Quem serviu no Rio de Janeiro levanta a mão” Ouve-se a voz de um oficial ao qual o comandante pergunta: “Daniel, onde é que era o desfile de 7 de Setembro?”. Ao que o militar responde: “Na Avenida Presidente Vargas.” “Desde quando?” pergunta Tomás. “Desde...” E o general interrompe a resposta do subordinado e emenda: “...Desde sempre. Eu desfilei na Avenida Presidente Vargas no ano de 1979, em 1980 e em 1981. Nesse ano que passou, mudou. Passou a ser em Copacabana. No final não teve desfile. Mas para o povo estava tudo misturado, o que era militar e o que era político.”

Tomás comentava as notícias. “Houve diversos pontos de interferência política em temas militares. Em 2021, estava na pandemia, o general Pazuello estava na ativa e foi em uma motociata, acompanhando o presidente. E sobe no palanque do presidente. Comportamento adequado ou inadequado? Inadequado. Quando o ato é público, a gente tem de falar publicamente que foi inadequado.”

Comparou o fato ao que houve em São Paulo após a eleição de Lula. “Nesse período de manifestação, de 1º de novembro até 9 de janeiro, não tivemos na área do Comando Militar do Sudeste nenhum militar da ativa que se envolveu em manifestação em todo Estado.” Pazuello foi inocentado pelo general Paulo Sérgio de Oliveira, então comandante do Exército, que mais tarde assumiria a Defesa. Tomás disse que não podia criticar a decisão dele, mas fez questão de lembrar que houve um erro. “A gente não pode aceitar o erro. O erro aconteceu.” O episódio foi um dos momentos-chave da cisão entre os generais e o Planalto.

Política partidária no quartel e a falta de prova de fraude nas urnas

Tomás mostrou como esses eventos afetaram a credibilidade do Exército, muito antes da intentona do dia 8 de Janeiro. “Política partidária dentro da Força gera desgaste. Todos nós estamos na bolha, na bolha fardada, na bola conservadora, de direita, militarista; raramente, um de nós frequenta a outra bollha. Mas existe outra bolha. E ela não é pequena; ela é grande e se manifesta nas redes sociais”, afirmou.

Evento faz parte da Operação Formosa, da Marinha; foi a primeira vez que os blindados passaram por Brasília e foram recebidos por um presidente da República. Foto: GABRIELA BILÓ/ESTADÃO

O general exibiu aos subordinados charges publicadas quando a Marinha desfilou com carros de combate pela Esplanada, no dia da votação da PEC do Voto Impresso. “A gente fica puto quando vê isso aqui. Ninguém gosta.” E afirmou que a proposta do presidente era legítima, mas lembrou que quem elabora as leis no País é o Congresso. “Essa proposta foi rejeitada. Foi uma derrota para o governo. O que aconteceu? Foi democracia, regra do jogo. Não estou fazendo julgamento de valor.”

Tomás explicou que era a favor da medida. “Mas minha opinião não interessa. Ela interessa, como cidadão; o que interessa naquele caso é a opinião do Congresso Nacional, que votou contra.” Em seguida, passou ao convite feito pelo então presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, para que as Forças Armadas participassem da comissão de transparência eleitoral. “Ele, não nós, é quem convida o representante das Forças Armadas para participar. Foi iniciativa do TSE. Entramos posteriormente na comissão de fiscalização. Não fomos nós.”

O general passou então a analisar as eleições de 2022, a vitória de Lula. “Mas aí o cara fala pra mim: mas general, teve fraude. Nós participamos de toda a fiscalização. Fizemos relatório. Fizemos tudo. Constatou-se fraude? Não. Esse mesmo processo eleitoral que elegeu o atual presidente foi o mesmo que elegeu majoritariamente um Congresso conservador e governadores conservadores. Então, a fraude foi só para cargo de presidente?” Descreveu então um a um os candidatos eleitos pela direita ao Senado.

“Eu tenho o testemunho de quem participou da comissão de fiscalização. Não aconteceu nada. Infelizmente foi o resultado que, para a maioria de nós, foi indesejado, mas que aconteceu. O que tudo isso acarretou? Os protestos nos quartéis. No dia 1.º de novembro, começou a aparecer gente na frente dos quarteis.” Tomás lembrou que esse movimento começou havia muito tempo. E relatou que desde 2018 já havia gente acampada em frente ao quartel, pedindo “intervenção militar”. “E ninguém falou nada.”

Apoiadores do presidente Bolsonaro pedem 'intervenção militar' em frente ao Comando Militar do sudeste Foto: FELIPE RAU/ESTADAO

Foi a partir desse trecho que a fala de Tomás despertou a atenção quando foi divulgada. Estava então no 37.º minuto da gravação. Era natural que assim fosse, pois era ali que o general tratava dos fatos que levaram ao 8 de Janeiro e ao comando da Força. “Até 31 de dezembro essas manifestações ficaram em frente aos quartéis. Não parou São Paulo”. Tomás dimensionou-lhes o tamanho. Disse que reuniam até 1,7 mil pessoas por dia em um Estado com 42 milhões de pessoas. “É uma parte que tem de ser respeitada.”

A ordem de Bolsonaro para os acampados nos quartéis

Analisado agora, o relato de Tomás coincide em linhas gerais aos dos ex-comandantes ouvidos pela PF. Parte delas complica a situação de Bolsonaro e isenta o Exército. “Teve uma nota à imprensa (dos comandantes das Forças), que foi emitida, e foi uma orientação generalizada: os caras estão manifestando. Havia um entendimento do comandante em chefe das Forças Armadas, que era o presidente da República, de que não era para mexer, que aquilo ali era legítimo. Ninguém se manifestou para nada. A Justiça não se manifestou, Ministério Público não se manifestou; não teve nada. Ninguém pediu para tirar.”

O trecho passou quase despercebido – foi citado apenas em uma reportagem localizada pela coluna. Soa como uma peça que liga o Planalto às manifestações que desembocaram na Festa da Selma, o plano B do bolsonarismo para o golpe, diante da recusa dos comandantes das Forças em aderir à intentona. Ao mesmo tempo, está ali já a defesa dos comandantes militares feita em depoimentos à PF e às CPIs diante da acusação de leniência com os acampados. Tudo dito claramente em janeiro de 2023.

“Eu falei de 1º de novembro a 31 de dezembro. Por quê? Mas quem era o governo de 1.º janeiro ao dia 8? O atual governo. E qual a ordem que teve para retirar? Nenhuma. Não teve ordem. Porque a expectativa era que o movimento ia naturalmente se dissolver. O que não ocorreu em Brasília. No dia 8, a gente teve um evento inaceitável em qualquer circunstância. Vandalismo. Projetou a imagem negativa do Brasil no mundo e, do ponto de vista estratégico, fortalece o adversário. Aí deu problema. Aí, no dia 9, nós tivemos ordem para retirar. Aqui no Estado de São Paulo não tivemos um problema.”

Peritos da Polícia Federal no STF verificam a destruição no prédio, em Brasília, após ataque do dia 8 de janeiro Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

O adversário pode ser entendido aqui de diversas formas. Cabe a Tomás explicar a passagem. É a partir desse trecho que o general parece se colocar na mesma bolha de seus comandados, a da direita. Mostrava o que chamava de charges “do outro lado”, que ridicularizavam militares. “Todo mundo fica puto. Aqui botando a gente como marionete. Aqui uma sacanagem, botando a gente com viagra. Aqui o papa-léguas, que sempre entra pelo cano. Coisa maldosa, agressiva, acintosa, mas faz parte do jogo democrático.”

A campanha contra os generais, o ‘borra-botas’, a chantagem e a cara do diabo

De repente, ele mudou de trajeto e passou a mostrar agressões virtuais aos generais legalistas. Disse que tinham o objetivo de acabar com “a nossa coesão”. “Isso aqui é para minar.” E descreveu uma delas, uma mensagem distribuída nas redes sociais que dizia: “Quem presta continência a ladrão não merece respeito da população”. Tomás abandonava a bolha da esquerda e passava a tratar da campanha da extrema direita, coordenada por integrantes do Palácio e por influenciadores bolsonaristas. Não sabia ainda da participação de Braga Netto, mas pressentia que se buscava levar descrédito aos comandantes diante da tropa.

O ladrão da mensagem era uma referência a Lula, o presidente eleito. “O que aprendemos em nossas escolas: a gente presta continência à pessoa ou à autoridade? Daqui a pouco eu não gosto daquele comandante e não presto continência a ele? Quantas vezes a gente foi comandado por um major, capitão ou tenente que a gente não gostava do cara, ou que a gente identificava que o cara tem defeito?” E concluiu: “Prestamos continência à autoridade; se não, não é Exército, não é Força Armada, vira milícia, vira bando”. E descreveu ataques aos generais, descritos como “melancias”.

O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a cerimônia de passagem de comando do Comando Militar do Nordeste, no Recife, com o comandante do Exército, general Tomás Paiva Foto: Foto: Ricardo Stuckert / PR

E definiu seu objetivo. “O nosso papel é identificar os dois extremos, usando a mesma tática que o outro usa contra a gente.” Tomás reagiu de forma enfática contra o linchamento moral dos generais. “Ataques sórdidos, mentirosos, infames e desleais e covardes. Usam do anonimato. Isso sim é covardia. Tentativa de assassinar a reputação.” Tomás exibia aos seus subordinados um slide no qual os generais legalistas eram chamados de covardes. O discurso tinha o mesmo teor dos comentários de Braga Netto para o major Airton Barros, ao chamar o então comandante do Exército, Freire Gomes, de “cagão” por ter sido contra o golpe.

Braga mandou Barros difamar os generais. Tomás não sabia. Sua resposta era dirigida ao blogueiro Paulo Figueiredo, a face visível da campanha coordenada pelo Planalto contra os generais. “Para você tomar decisão que contraria interesses, você tem de ter coragem moral, coragem física; para você mandar o cara para a guerra, para mandar o cara destruir uma posição de metralhadora, para entregar o menino que morreu, como eu já tive de entregar para o pai, você precisa ter coragem. O comandante não pode delegar a sua missão. Eu não desejo isso para ninguém. Eu tive de entregar na Academia, no Haiti e no (Complexo do) Alemão. Não é um borra-botas desses que vai me falar de coragem.”

Tomás descreveu ali o episódio da conversa com Villas Bôas em dezembro de 2022, na qual Braga Netto afirma que ele foi repreender o ex-comandante em razão dos acampamentos. Figueiredo divulgou a informação de que o general “foi chantagear Villas Bôas”. “Ficou bonita essa foto aqui, eu com cara de diabo: foi chantagear o general Villas Bôas. O General Villas Bôas me mandou um zap recentemente dizendo que ‘você é meu amigo, irmão, parente e filho’. A relação que eu tenho com ele é de cadete, meu comandante de companhia. Foram colocar essa mentira sórdida que eu fui chantagear o general Villas Bôas.”

E prosseguiu exibindo as publicações da campanha orquestrada contra os generais para constrangê-los ou até que os coronéis decidissem ultrapassar seus comandantes e dar o golpe. “Aqui ô. Frouxo, melancia, covarde, comunista, achando que vou me intimidar com essa p*. Não vou mudar um milímetro do que eu penso.” É quando o futuro comandante do Exército passa a analisar as fotografias do ataque à sede dos Três Poderes. Tomás é duro ao condenar os atos, mas evita classificá-lo como golpe ou terrorismo – as revelações da PF ainda não eram conhecidas.

O repúdio ao golpe: evitar um banho de sangue e o isolamento do País

Eis o seu repúdio: “Aqui as cenas deploráveis e lamentáveis. A gente deu ferramenta para o cara (Alexandre de Moraes) chamar de terrorista. Isso aqui é vândalo, isso é maluco, é cara que entrou em espiral de fanatismo que não se sustenta. O que produziu? Nada. O cara cagou na cadeira do Supremo. O que isso muda? Muda p* nenhuma”. “Se nego (sic) destruísse, jogasse uma bomba no Palácio presidencial, ele ia despachar de outro palácio. Que coisa infantil, burra, eles entregaram um salvo-conduto enorme para uma narrativa que a gente está vendo que está sendo estabelecida agora.”

Ministro Alexandre de Moraes visita o edifício sede do STF após depredação de bolsonaristas no dia 8 de janeiro Foto:

É quando Tomás chegou à razão de o golpe ter sido rejeitado pelos militares. Ele lê o que estava escrito em um cartaz de um manifestante: “Intervenção militar com Bolsonaro na Presidência”. Em seguida, fez seu comentário. “Impossível de fazer. A gente viu as consequências disso. Vocês viram a repercussão mundial. Imagina se a gente tivesse enveredado para uma aventura? A gente não sobreviveria como País; a moeda explodiria. A gente ia levar um bloqueio econômico jamais visto. Você ia ficar um pária, e o nosso povo ia sofrer as consequências. Ia ter sangue na rua. Ou você acha que o povo ia ficar em casa. Não ia acontecer.”

Então, o general concluiu: “Coragem é o reverso. A coragem é a gente se manter instituição de Estado, mesmo que isso custe alguma coisa de popularidade. Não interessa; isso você recupera. Mergulharíamos o País no caos.” E mostrou as pesquisas que mostraram a rejeição de 75% dos brasileiros ao 8 de Janeiro e constatou a falta de lideranças políticas no protesto. Bolsonaro estava na Flórida. “O filho do presidente (Eduardo Bolsonaro) foi para onde? Foi para o Catar assistir à Copa do Mundo. Agora querem terceirizar a culpa e botar a culpa na gente.”

Tomás encerrou a reunião elogiando o então comandante do Exército, a quem chamou de corajoso e correto. “Uma pessoa com coração enorme, patriota, sincero, tranquilo.” Disse que tudo o que aconteceu no dia 8 estava sendo apurado e quem fez coisa errada seria punido ainda que tivesse “gente nossa”.

Por fim, afirmou que ninguém aproveitaria o momento para enfraquecer as Forças Armadas. “Nós não trabalhamos para governo. Nós trabalhamos para o Estado. Da nossa postura, da manutenção dos valores, da hierarquia e da disciplina depende a força dos comandantes de Força. General de Exército não tem partido. Se a gente permitir que o Exército fique partidário será o início da nossa derrocada.”

Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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