As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Guerra das Malvinas: A lição inglesa para os extremistas que desejam rasgar a Constituição


Diálogo de ex-chanceler do governo Médici com conselheiro de Thatcher mostra uma das consequências de um governo autoritário de extremistas

Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor,

A Guerra das Malvinas faz 40 anos. O Brasil equilibrou-se entre uma neutralidade simpática à Argentina e a necessidade de manter boas relações com o Reino Unido, enquanto os beligerantes adotavam uma espécie de brinkmanship diplomacy, a diplomacia do fio da navalha, que os aproximava do precipício. Se a Inglaterra de então era uma potência de segunda categoria, seu corpo diplomático era de primeira linha. Está no livro O Brasil e a Guerra das Malvinas: Entre Dois Fogos, do professor João Roberto Martins Filho, a prova disso. Trata-se de um telegrama que o ex-chanceler Mario Gibson Barbosa, recém-nomeado embaixador em Londres, endereçou em 1983 ao sucessor, Saraiva Guerreiro, relatando sua conversa com Anthony Parsons, assessor especial de Margaret Thatcher.

O ex-chanceler Mario Gibson Barbosa mandou de Londres mensagem sobre encontro com Anthony Parsons Foto: Estadão
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Sir Anthony era embaixador na ONU quando obteve a maior vitória da Inglaterra no conflito: a aprovação da Resolução 502 no Conselho de Segurança, em 3 de abril de 1982, um dia depois da invasão argentina. Por dez votos a um – com as abstenções da Espanha, da URSS, da Polônia e da China –, o conselho ordenou a cessação das hostilidades, a retirada imediata das forças argentinas nas ilhas e que os dois países abrissem negociações diplomáticas, respeitado o princípio da autodeterminação dos ilhéus. Assim, os poucos mais de 2 mil habitantes do lugar – todos simpáticos ao Reino Unido – teriam a palavra final.

Gibson Barbosa argumentara com o britânico que a democratização da Argentina – derrotados nas Malvinas, os militares foram substituídos pelo centrista Raúl Alfonsín (UCR) – daria maior confiabilidade internacional ao governo e “enorme vantagem nos foros externos”, principalmente entre os países que não apoiaram a Argentina em razão do caráter do regime. O inglês ouviu e concordou: “Sem o fator ideológico anti-argentino teria sido impossível obter a aprovação da Resolução 502″.

O brasileiro foi mais longe: perguntou o que o Reino Unido concordaria em negociar com a cessação das hostilidades. Parsons afirmou: “Este é um problema gravíssimo, pois uma coisa é certa: de nossa parte não negociaremos em absoluto a soberania”. O ex-chanceler fez notar ao inglês que, naquele ponto, os argentinos concordavam com os ingleses. E concluiu que era melhor esquecer essa “palavra mágica, soberania, pois ela era um símbolo e contra os símbolos não se luta”.

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As lições de Gibson Barbosa e de Sir Anthony Parsons deveriam ser aprendidas em Brasília. Há muito tumulto na Praça dos Três Poderes em torno das três tentações da cidade: dinheiro, poder e privilégio. Muitos se esforçam para definir o que é a liberdade e seus limites, tarefa que seduz e enfeitiça ouvidos no Planalto, emprestando atributos sobrenaturais a outro símbolo de nossos dias: as urnas eletrônicas. Em nome de palavras mágicas, Braga Netto ameaçou as eleições de 2022 se não fosse adotado o voto impresso.

Há, na verdade, muito encantamento na discussão. Primeiro porque nunca houve tanta fraude como na época em que se votava em cédula. Bastava um escrutinador desonesto e o truque se consumava. Em tempos de milícias, pode-se imaginar a confusão que se pretendia lançar às eleições de 2022 com a tese da recontagem infinita do voto impresso. A velha magia de quem não tem voto é salgar o processo eleitoral ou impedir o acesso às urnas. Na monarquia, evitava-se o voto dos pobres. A República excluiu os analfabetos quando estes eram a maioria. A ditadura militar baniu partidos, cassou políticos e até fechou o Congresso.

No limite, deslegitima-se o voto. Na semana passada, muita gente repetiu em Brasília o dito espanhol: “No creo en brujas, pero que las hay, las hay”. Edson Fachin, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sabia disso ao afirmar ser preciso “paz e segurança” na eleição. “É hora de ficar dentro das balizas dos limites e das possibilidades fixadas pelo Poder Legislativo.” O ministro falou na abertura da primeira reunião da Comissão de Transparência das Eleições sob sua gestão. Tinha endereço certo: os ouvidos do general Heber Garcia Portella, representante das Forças Armadas na comissão.

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Se é verdade que o ministro Luís Roberto Barroso não tomou cuidado com o que disse no dia 24, é também verdade que o general se descuidou ao escrever “sugestões” para o plano de Ampliação da Transparência no Processo Eleitoral. O documento do TSE de 81 páginas contém oito linhas escritas pelo militar com o potencial de envenenar as eleições. É preciso lembrar como o jabuti subiu na árvore. Barroso, então presidente do TSE, convidou as Forças Armadas para compor a comissão. Parecia uma boa ideia. Com um general atestando o óbvio – a idoneidade das urnas eletrônicas –, Bolsonaro veria seu discurso esvaziar.

Mas esperteza quando é muita come o dono. O presidente é quem explica: “Eles (os ministros do TSE) convidaram as Forças Armadas a participarem do processo eleitoral. Será que esqueceram que o chefe supremo das Forças Armadas se chama Bolsonaro?” Foi o candidato a vice na chapa do capitão e então ministro da Defesa, general Braga Netto, quem nomeou Heber para a comissão. Ou seja: um candidato indicou para o grupo um representante que pode questionar o sistema de voto.

Jair Bolsonaro e Braga Netto, ex-ministro da Defesa; general é apontado como vice do presidente na eleição de 2022 Foto: Gabriela Biló/Estadão
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Braga Netto expôs o subordinado ao desafio da mulher de César, aquela a quem não bastava ser honesta. Porque ninguém é absolutamente honesto a ponto de ser imune a conflitos de interesses. Se o chefe agia como político na Defesa, por que não pode um adversário ver nesse fato a explicação para o comportamento de Heber? A comissão da qual o general participa é formada por sete peritos, além de representantes do Congresso, do MPF e da OAB. Ninguém escreveu o que o general escreveu. Todos trataram de questões técnicas. O general também fez isso e recebeu respostas do TSE. Depois disso, apresentou o texto de oito linhas. Ei-lo:

“Considerando o voto como um direito e um dever inarredáveis de cada cidadão, sugere-se a adoção de medidas que permitam a validação e a contagem de cada voto sufragado, mesmo que, por qualquer motivo, as respectivas mídias ou urnas eletrônicas sejam descartadas. Destaca-se que, a despeito do esforço em se prever ações em face da observância de falhas durante o pleito eleitoral, até o presente momento, salvo melhor juízo, não foi possível visualizar medidas a serem tomadas em caso da constatação de irregularidades nas eleições. Nesse diapasão, propõe-se a previsão e divulgação antecipada de consequências para o processo eleitoral, caso seja identificada alguma irregularidade.”

Uma pessoa desavisada pode enxergar ali um manifesto político. A começar por sugerir “medidas que permitam a validação e a contagem de cada voto sufragado, mesmo que, por qualquer motivo, as respectivas mídias ou urnas eletrônicas sejam descartadas”. O general parece propor o voto impresso, matéria rejeitada por quem tem de decidir isso no País: o Congresso. Se deseja fazer esse tipo de proposta, deve saber endereçá-la ao lugar certo: o eleitor brasileiro.

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O texto contém ainda uma frase cabalística. Apesar de duas décadas de testes e análises de peritos e diante de toda a legislação eleitoral, Heber sentenciou: “Não foi possível visualizar medidas a serem tomadas em caso da constatação de irregularidades nas eleições”. Recebeu do TSE dez páginas de resoluções, normas e leis sobre a matéria publicadas, mas que o general, como a Carolina da música, não viu. Heber questionou as consequências para as eleições se fosse identificada alguma irregularidade. E o tribunal informou ao general as hipóteses legais para se anular um voto ou uma votação.

Heber agora sabe como se faz isso dentro da lei. Ele é general de divisão da turma de 1985 da Academia das Agulhas Negras. Oficial da Arma de Infantaria, deve disputar a última estrela agora, depois de concluídas as promoções da turma de 1984. Ao fazer sugestões em um português que lhe permite dizer tudo e nada ao mesmo tempo, o general teria agradado a alguém? “Cui prodest scelus, is fecit”, escreveu Sêneca, em Medeia. E assim leu Barroso. E, como resposta, no 1.º de Maio, viu-se manifestante rasgar a Constituição e gente armada questionar o STF à luz do dia. Em uma democracia, essas questões se resolvem nas urnas. O que interessa saber é quantos votos terá Bolsonaro. E as pesquisas sugerem que o presidente não terá o suficiente para vencer.

Em vez de discutir magias, o eleitor votará debaixo de uma inflação de dois dígitos, com o litro da gasolina custando quase o mesmo que um quilo de feijão carioca. Ele não terá ouvido explicação convincente para a mansão de R$ 6 milhões (preço no cartório) de Flávio Bolsonaro. Ou a razão pela qual se atrasou a compra de vacinas e se distribuiu cloroquina. A realidade persegue Bolsonaro. Em Brasília, apesar da advertência do ex-chanceler, há muita gente se batendo por símbolos. Evocam-se assombrações e sortilégios. O pragmatismo do diplomata é a melhor forma de desarmá-los. Sem voto ou se vai para casa ou se dá um golpe. E, se é golpe que se quer dar, é bom lembrar a lição de Sir Anthony: o extremismo ideológico permite unir contra alguém os mais improváveis aliados.

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*A partir de hoje, a supercoluna passa a ser publicada como coluna, em novo formato.

Caro leitor,

A Guerra das Malvinas faz 40 anos. O Brasil equilibrou-se entre uma neutralidade simpática à Argentina e a necessidade de manter boas relações com o Reino Unido, enquanto os beligerantes adotavam uma espécie de brinkmanship diplomacy, a diplomacia do fio da navalha, que os aproximava do precipício. Se a Inglaterra de então era uma potência de segunda categoria, seu corpo diplomático era de primeira linha. Está no livro O Brasil e a Guerra das Malvinas: Entre Dois Fogos, do professor João Roberto Martins Filho, a prova disso. Trata-se de um telegrama que o ex-chanceler Mario Gibson Barbosa, recém-nomeado embaixador em Londres, endereçou em 1983 ao sucessor, Saraiva Guerreiro, relatando sua conversa com Anthony Parsons, assessor especial de Margaret Thatcher.

O ex-chanceler Mario Gibson Barbosa mandou de Londres mensagem sobre encontro com Anthony Parsons Foto: Estadão

Sir Anthony era embaixador na ONU quando obteve a maior vitória da Inglaterra no conflito: a aprovação da Resolução 502 no Conselho de Segurança, em 3 de abril de 1982, um dia depois da invasão argentina. Por dez votos a um – com as abstenções da Espanha, da URSS, da Polônia e da China –, o conselho ordenou a cessação das hostilidades, a retirada imediata das forças argentinas nas ilhas e que os dois países abrissem negociações diplomáticas, respeitado o princípio da autodeterminação dos ilhéus. Assim, os poucos mais de 2 mil habitantes do lugar – todos simpáticos ao Reino Unido – teriam a palavra final.

Gibson Barbosa argumentara com o britânico que a democratização da Argentina – derrotados nas Malvinas, os militares foram substituídos pelo centrista Raúl Alfonsín (UCR) – daria maior confiabilidade internacional ao governo e “enorme vantagem nos foros externos”, principalmente entre os países que não apoiaram a Argentina em razão do caráter do regime. O inglês ouviu e concordou: “Sem o fator ideológico anti-argentino teria sido impossível obter a aprovação da Resolução 502″.

O brasileiro foi mais longe: perguntou o que o Reino Unido concordaria em negociar com a cessação das hostilidades. Parsons afirmou: “Este é um problema gravíssimo, pois uma coisa é certa: de nossa parte não negociaremos em absoluto a soberania”. O ex-chanceler fez notar ao inglês que, naquele ponto, os argentinos concordavam com os ingleses. E concluiu que era melhor esquecer essa “palavra mágica, soberania, pois ela era um símbolo e contra os símbolos não se luta”.

As lições de Gibson Barbosa e de Sir Anthony Parsons deveriam ser aprendidas em Brasília. Há muito tumulto na Praça dos Três Poderes em torno das três tentações da cidade: dinheiro, poder e privilégio. Muitos se esforçam para definir o que é a liberdade e seus limites, tarefa que seduz e enfeitiça ouvidos no Planalto, emprestando atributos sobrenaturais a outro símbolo de nossos dias: as urnas eletrônicas. Em nome de palavras mágicas, Braga Netto ameaçou as eleições de 2022 se não fosse adotado o voto impresso.

Há, na verdade, muito encantamento na discussão. Primeiro porque nunca houve tanta fraude como na época em que se votava em cédula. Bastava um escrutinador desonesto e o truque se consumava. Em tempos de milícias, pode-se imaginar a confusão que se pretendia lançar às eleições de 2022 com a tese da recontagem infinita do voto impresso. A velha magia de quem não tem voto é salgar o processo eleitoral ou impedir o acesso às urnas. Na monarquia, evitava-se o voto dos pobres. A República excluiu os analfabetos quando estes eram a maioria. A ditadura militar baniu partidos, cassou políticos e até fechou o Congresso.

No limite, deslegitima-se o voto. Na semana passada, muita gente repetiu em Brasília o dito espanhol: “No creo en brujas, pero que las hay, las hay”. Edson Fachin, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sabia disso ao afirmar ser preciso “paz e segurança” na eleição. “É hora de ficar dentro das balizas dos limites e das possibilidades fixadas pelo Poder Legislativo.” O ministro falou na abertura da primeira reunião da Comissão de Transparência das Eleições sob sua gestão. Tinha endereço certo: os ouvidos do general Heber Garcia Portella, representante das Forças Armadas na comissão.

Se é verdade que o ministro Luís Roberto Barroso não tomou cuidado com o que disse no dia 24, é também verdade que o general se descuidou ao escrever “sugestões” para o plano de Ampliação da Transparência no Processo Eleitoral. O documento do TSE de 81 páginas contém oito linhas escritas pelo militar com o potencial de envenenar as eleições. É preciso lembrar como o jabuti subiu na árvore. Barroso, então presidente do TSE, convidou as Forças Armadas para compor a comissão. Parecia uma boa ideia. Com um general atestando o óbvio – a idoneidade das urnas eletrônicas –, Bolsonaro veria seu discurso esvaziar.

Mas esperteza quando é muita come o dono. O presidente é quem explica: “Eles (os ministros do TSE) convidaram as Forças Armadas a participarem do processo eleitoral. Será que esqueceram que o chefe supremo das Forças Armadas se chama Bolsonaro?” Foi o candidato a vice na chapa do capitão e então ministro da Defesa, general Braga Netto, quem nomeou Heber para a comissão. Ou seja: um candidato indicou para o grupo um representante que pode questionar o sistema de voto.

Jair Bolsonaro e Braga Netto, ex-ministro da Defesa; general é apontado como vice do presidente na eleição de 2022 Foto: Gabriela Biló/Estadão

Braga Netto expôs o subordinado ao desafio da mulher de César, aquela a quem não bastava ser honesta. Porque ninguém é absolutamente honesto a ponto de ser imune a conflitos de interesses. Se o chefe agia como político na Defesa, por que não pode um adversário ver nesse fato a explicação para o comportamento de Heber? A comissão da qual o general participa é formada por sete peritos, além de representantes do Congresso, do MPF e da OAB. Ninguém escreveu o que o general escreveu. Todos trataram de questões técnicas. O general também fez isso e recebeu respostas do TSE. Depois disso, apresentou o texto de oito linhas. Ei-lo:

“Considerando o voto como um direito e um dever inarredáveis de cada cidadão, sugere-se a adoção de medidas que permitam a validação e a contagem de cada voto sufragado, mesmo que, por qualquer motivo, as respectivas mídias ou urnas eletrônicas sejam descartadas. Destaca-se que, a despeito do esforço em se prever ações em face da observância de falhas durante o pleito eleitoral, até o presente momento, salvo melhor juízo, não foi possível visualizar medidas a serem tomadas em caso da constatação de irregularidades nas eleições. Nesse diapasão, propõe-se a previsão e divulgação antecipada de consequências para o processo eleitoral, caso seja identificada alguma irregularidade.”

Uma pessoa desavisada pode enxergar ali um manifesto político. A começar por sugerir “medidas que permitam a validação e a contagem de cada voto sufragado, mesmo que, por qualquer motivo, as respectivas mídias ou urnas eletrônicas sejam descartadas”. O general parece propor o voto impresso, matéria rejeitada por quem tem de decidir isso no País: o Congresso. Se deseja fazer esse tipo de proposta, deve saber endereçá-la ao lugar certo: o eleitor brasileiro.

O texto contém ainda uma frase cabalística. Apesar de duas décadas de testes e análises de peritos e diante de toda a legislação eleitoral, Heber sentenciou: “Não foi possível visualizar medidas a serem tomadas em caso da constatação de irregularidades nas eleições”. Recebeu do TSE dez páginas de resoluções, normas e leis sobre a matéria publicadas, mas que o general, como a Carolina da música, não viu. Heber questionou as consequências para as eleições se fosse identificada alguma irregularidade. E o tribunal informou ao general as hipóteses legais para se anular um voto ou uma votação.

Heber agora sabe como se faz isso dentro da lei. Ele é general de divisão da turma de 1985 da Academia das Agulhas Negras. Oficial da Arma de Infantaria, deve disputar a última estrela agora, depois de concluídas as promoções da turma de 1984. Ao fazer sugestões em um português que lhe permite dizer tudo e nada ao mesmo tempo, o general teria agradado a alguém? “Cui prodest scelus, is fecit”, escreveu Sêneca, em Medeia. E assim leu Barroso. E, como resposta, no 1.º de Maio, viu-se manifestante rasgar a Constituição e gente armada questionar o STF à luz do dia. Em uma democracia, essas questões se resolvem nas urnas. O que interessa saber é quantos votos terá Bolsonaro. E as pesquisas sugerem que o presidente não terá o suficiente para vencer.

Em vez de discutir magias, o eleitor votará debaixo de uma inflação de dois dígitos, com o litro da gasolina custando quase o mesmo que um quilo de feijão carioca. Ele não terá ouvido explicação convincente para a mansão de R$ 6 milhões (preço no cartório) de Flávio Bolsonaro. Ou a razão pela qual se atrasou a compra de vacinas e se distribuiu cloroquina. A realidade persegue Bolsonaro. Em Brasília, apesar da advertência do ex-chanceler, há muita gente se batendo por símbolos. Evocam-se assombrações e sortilégios. O pragmatismo do diplomata é a melhor forma de desarmá-los. Sem voto ou se vai para casa ou se dá um golpe. E, se é golpe que se quer dar, é bom lembrar a lição de Sir Anthony: o extremismo ideológico permite unir contra alguém os mais improváveis aliados.

*A partir de hoje, a supercoluna passa a ser publicada como coluna, em novo formato.

Caro leitor,

A Guerra das Malvinas faz 40 anos. O Brasil equilibrou-se entre uma neutralidade simpática à Argentina e a necessidade de manter boas relações com o Reino Unido, enquanto os beligerantes adotavam uma espécie de brinkmanship diplomacy, a diplomacia do fio da navalha, que os aproximava do precipício. Se a Inglaterra de então era uma potência de segunda categoria, seu corpo diplomático era de primeira linha. Está no livro O Brasil e a Guerra das Malvinas: Entre Dois Fogos, do professor João Roberto Martins Filho, a prova disso. Trata-se de um telegrama que o ex-chanceler Mario Gibson Barbosa, recém-nomeado embaixador em Londres, endereçou em 1983 ao sucessor, Saraiva Guerreiro, relatando sua conversa com Anthony Parsons, assessor especial de Margaret Thatcher.

O ex-chanceler Mario Gibson Barbosa mandou de Londres mensagem sobre encontro com Anthony Parsons Foto: Estadão

Sir Anthony era embaixador na ONU quando obteve a maior vitória da Inglaterra no conflito: a aprovação da Resolução 502 no Conselho de Segurança, em 3 de abril de 1982, um dia depois da invasão argentina. Por dez votos a um – com as abstenções da Espanha, da URSS, da Polônia e da China –, o conselho ordenou a cessação das hostilidades, a retirada imediata das forças argentinas nas ilhas e que os dois países abrissem negociações diplomáticas, respeitado o princípio da autodeterminação dos ilhéus. Assim, os poucos mais de 2 mil habitantes do lugar – todos simpáticos ao Reino Unido – teriam a palavra final.

Gibson Barbosa argumentara com o britânico que a democratização da Argentina – derrotados nas Malvinas, os militares foram substituídos pelo centrista Raúl Alfonsín (UCR) – daria maior confiabilidade internacional ao governo e “enorme vantagem nos foros externos”, principalmente entre os países que não apoiaram a Argentina em razão do caráter do regime. O inglês ouviu e concordou: “Sem o fator ideológico anti-argentino teria sido impossível obter a aprovação da Resolução 502″.

O brasileiro foi mais longe: perguntou o que o Reino Unido concordaria em negociar com a cessação das hostilidades. Parsons afirmou: “Este é um problema gravíssimo, pois uma coisa é certa: de nossa parte não negociaremos em absoluto a soberania”. O ex-chanceler fez notar ao inglês que, naquele ponto, os argentinos concordavam com os ingleses. E concluiu que era melhor esquecer essa “palavra mágica, soberania, pois ela era um símbolo e contra os símbolos não se luta”.

As lições de Gibson Barbosa e de Sir Anthony Parsons deveriam ser aprendidas em Brasília. Há muito tumulto na Praça dos Três Poderes em torno das três tentações da cidade: dinheiro, poder e privilégio. Muitos se esforçam para definir o que é a liberdade e seus limites, tarefa que seduz e enfeitiça ouvidos no Planalto, emprestando atributos sobrenaturais a outro símbolo de nossos dias: as urnas eletrônicas. Em nome de palavras mágicas, Braga Netto ameaçou as eleições de 2022 se não fosse adotado o voto impresso.

Há, na verdade, muito encantamento na discussão. Primeiro porque nunca houve tanta fraude como na época em que se votava em cédula. Bastava um escrutinador desonesto e o truque se consumava. Em tempos de milícias, pode-se imaginar a confusão que se pretendia lançar às eleições de 2022 com a tese da recontagem infinita do voto impresso. A velha magia de quem não tem voto é salgar o processo eleitoral ou impedir o acesso às urnas. Na monarquia, evitava-se o voto dos pobres. A República excluiu os analfabetos quando estes eram a maioria. A ditadura militar baniu partidos, cassou políticos e até fechou o Congresso.

No limite, deslegitima-se o voto. Na semana passada, muita gente repetiu em Brasília o dito espanhol: “No creo en brujas, pero que las hay, las hay”. Edson Fachin, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sabia disso ao afirmar ser preciso “paz e segurança” na eleição. “É hora de ficar dentro das balizas dos limites e das possibilidades fixadas pelo Poder Legislativo.” O ministro falou na abertura da primeira reunião da Comissão de Transparência das Eleições sob sua gestão. Tinha endereço certo: os ouvidos do general Heber Garcia Portella, representante das Forças Armadas na comissão.

Se é verdade que o ministro Luís Roberto Barroso não tomou cuidado com o que disse no dia 24, é também verdade que o general se descuidou ao escrever “sugestões” para o plano de Ampliação da Transparência no Processo Eleitoral. O documento do TSE de 81 páginas contém oito linhas escritas pelo militar com o potencial de envenenar as eleições. É preciso lembrar como o jabuti subiu na árvore. Barroso, então presidente do TSE, convidou as Forças Armadas para compor a comissão. Parecia uma boa ideia. Com um general atestando o óbvio – a idoneidade das urnas eletrônicas –, Bolsonaro veria seu discurso esvaziar.

Mas esperteza quando é muita come o dono. O presidente é quem explica: “Eles (os ministros do TSE) convidaram as Forças Armadas a participarem do processo eleitoral. Será que esqueceram que o chefe supremo das Forças Armadas se chama Bolsonaro?” Foi o candidato a vice na chapa do capitão e então ministro da Defesa, general Braga Netto, quem nomeou Heber para a comissão. Ou seja: um candidato indicou para o grupo um representante que pode questionar o sistema de voto.

Jair Bolsonaro e Braga Netto, ex-ministro da Defesa; general é apontado como vice do presidente na eleição de 2022 Foto: Gabriela Biló/Estadão

Braga Netto expôs o subordinado ao desafio da mulher de César, aquela a quem não bastava ser honesta. Porque ninguém é absolutamente honesto a ponto de ser imune a conflitos de interesses. Se o chefe agia como político na Defesa, por que não pode um adversário ver nesse fato a explicação para o comportamento de Heber? A comissão da qual o general participa é formada por sete peritos, além de representantes do Congresso, do MPF e da OAB. Ninguém escreveu o que o general escreveu. Todos trataram de questões técnicas. O general também fez isso e recebeu respostas do TSE. Depois disso, apresentou o texto de oito linhas. Ei-lo:

“Considerando o voto como um direito e um dever inarredáveis de cada cidadão, sugere-se a adoção de medidas que permitam a validação e a contagem de cada voto sufragado, mesmo que, por qualquer motivo, as respectivas mídias ou urnas eletrônicas sejam descartadas. Destaca-se que, a despeito do esforço em se prever ações em face da observância de falhas durante o pleito eleitoral, até o presente momento, salvo melhor juízo, não foi possível visualizar medidas a serem tomadas em caso da constatação de irregularidades nas eleições. Nesse diapasão, propõe-se a previsão e divulgação antecipada de consequências para o processo eleitoral, caso seja identificada alguma irregularidade.”

Uma pessoa desavisada pode enxergar ali um manifesto político. A começar por sugerir “medidas que permitam a validação e a contagem de cada voto sufragado, mesmo que, por qualquer motivo, as respectivas mídias ou urnas eletrônicas sejam descartadas”. O general parece propor o voto impresso, matéria rejeitada por quem tem de decidir isso no País: o Congresso. Se deseja fazer esse tipo de proposta, deve saber endereçá-la ao lugar certo: o eleitor brasileiro.

O texto contém ainda uma frase cabalística. Apesar de duas décadas de testes e análises de peritos e diante de toda a legislação eleitoral, Heber sentenciou: “Não foi possível visualizar medidas a serem tomadas em caso da constatação de irregularidades nas eleições”. Recebeu do TSE dez páginas de resoluções, normas e leis sobre a matéria publicadas, mas que o general, como a Carolina da música, não viu. Heber questionou as consequências para as eleições se fosse identificada alguma irregularidade. E o tribunal informou ao general as hipóteses legais para se anular um voto ou uma votação.

Heber agora sabe como se faz isso dentro da lei. Ele é general de divisão da turma de 1985 da Academia das Agulhas Negras. Oficial da Arma de Infantaria, deve disputar a última estrela agora, depois de concluídas as promoções da turma de 1984. Ao fazer sugestões em um português que lhe permite dizer tudo e nada ao mesmo tempo, o general teria agradado a alguém? “Cui prodest scelus, is fecit”, escreveu Sêneca, em Medeia. E assim leu Barroso. E, como resposta, no 1.º de Maio, viu-se manifestante rasgar a Constituição e gente armada questionar o STF à luz do dia. Em uma democracia, essas questões se resolvem nas urnas. O que interessa saber é quantos votos terá Bolsonaro. E as pesquisas sugerem que o presidente não terá o suficiente para vencer.

Em vez de discutir magias, o eleitor votará debaixo de uma inflação de dois dígitos, com o litro da gasolina custando quase o mesmo que um quilo de feijão carioca. Ele não terá ouvido explicação convincente para a mansão de R$ 6 milhões (preço no cartório) de Flávio Bolsonaro. Ou a razão pela qual se atrasou a compra de vacinas e se distribuiu cloroquina. A realidade persegue Bolsonaro. Em Brasília, apesar da advertência do ex-chanceler, há muita gente se batendo por símbolos. Evocam-se assombrações e sortilégios. O pragmatismo do diplomata é a melhor forma de desarmá-los. Sem voto ou se vai para casa ou se dá um golpe. E, se é golpe que se quer dar, é bom lembrar a lição de Sir Anthony: o extremismo ideológico permite unir contra alguém os mais improváveis aliados.

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