As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Análise|A vitória do crime organizado refletida nas ausências de um encontro de Moraes e a cúpula da PF


Não é só a incompetência e a burocracia que atrapalham o combate aos criminosos no País: falta união entre as polícias, a Receita e os Ministério Públicos para enfrentar o problema

Por Marcelo Godoy

A tarde do dia 12 de julho estava fria em São Paulo. O auditório da sede da Superintendência da Polícia Federal começou a lotar. Ali estavam o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, o diretor-geral da PF, delegado Andrei Passos Rodrigues, e outras autoridades para a cerimônia de posse do novo superintendente da PF no Estado, delegado Rodrigo Luís Sanfurgo de Carvalho.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, conversa com o delegado-geral da PF, Andrei Passos Rodrigues, enquanto o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, discursa na posse do novo superintendente da PF em São Paulo, delegado Rodrigo Luís Sanfurgo de Carvalho Foto: Marcelo Godoy / Estadão

Disse o doutor Sanfurgo de Carvalho: “Atravessamos tempos desafiadores. A integração e a cooperação dos órgãos do Sistema Único de Segurança Pública são essenciais para o combate à criminalidade. A união de esforços e o compartilhamento de informações são essenciais para enfrentar essa ameaça de forma coordenada e abrangente. Essa sinergia maximiza os recursos públicos, o que fortalece a capacidade de investigação e repressão.” Era tudo o que parecia não haver ali.

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É que nenhum dos titulares da Segurança Pública paulista apareceu na cerimônia. Nem o secretário Guilherme Derrite ou os chefes da Polícias Civil e Militar. Do Estado, só o procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, estava presente. As ausências mostravam a fratura, o distanciamento entre as cúpulas dos aparelhos de segurança responsáveis pelo combate ao crime organizado no País: a PF, ao combater o crime transnacional, e as polícias do Estado que foi o berço e é a principal base da maior de todas as organizações criminosas: o Primeiro Comando da Capital (PCC).

A falta de coordenação entre as polícias, procuradores e fiscais da Receita Federal gerou situações constrangedoras nos últimos anos. No dia 9 de abril, a maior operação da história contra a captura do sistema público de transporte na cidade de São Paulo, viu a Polícia Civil paulista ser excluída da ação. A bancada da entrevista coletiva sobre a Operação Fim da Linha reuniu Derrite, o comandante da PM, coronel Cássio de Araújo Freitas, o procurador-geral, a chefe regional da Receita, Márcia Cecília Meng, e até o prefeito Ricardo Nunes em um auditório lotado. Mas não havia ali um único policial civil.

A coletiva sobre a Operação Fim da Linha, na sede do Ministério Público, contou com o coronel Cássio e o secretário Derrite, na ala esquerda da mesa, e o prefeito Ricardo Nunes e a superintendente da Receita Federal, Maria Cecilia Meng, na ponta oposta. No centro, três integrantes do MPE. Foto: Werther Santana/Estadão
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A desconfiança entre os integrantes das instituições provocou o protesto solitário do diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), delegado Fábio Pinheiro Lopes, o Fábio Caipira, que deixou um grupo de WhatsApp que reunia policiais e promotores. Nos dias seguintes, a Associação dos delegados da Polícia Civil chegou a questionar a legalidade da operação em razão da ausência da Polícia Civil nas investigações.

Policiais civis acusam o Ministério Público de se apropriar de informações de seus inquéritos para montar as operações enquanto promotores desconfiam que inquéritos e ações da polícia se desenvolvem para se adiantar às suas operações. O bater de cabeças na área é antigo. Em 2022, ele envolveu a investigação a respeito da empresa de ônibus UPBus e o contador João Muniz Leite. Ele e a mulher eram investigados por terem supostamente movimentado R$ 525.778.863,00 entre 2020 e 2021 em suas contas bancárias, embora Muniz declarasse salário de R$ 26 mil no período.

A coluna teve acesso à íntegra do inquérito n°. 020/2022 da PF sobre o caso. Os papéis mostram que em 12 de maio de 2022 o delegado Flávio Vieitez Reis, supervisor do Grupo de Investigações Sensíveis da Superintendência da PF em São Paulo, enviou ao juiz Guilherme Eduardo Martins Kellner, da 1.ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital, os autos da investigação sobre a lavagem de dinheiro para que o caso fosse apreciado pela Força Tarefa X, do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo.

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Documento da Polícia Federal sobre o envio do caso de Muniz ao Gaeco Foto: Reprodução / Estadão

Ou seja, a PF estava trabalhando em conjunto com a promotoria. O delegado pediu a expedição de mandados de busca contra alvos ligados ao contador e ao traficante de drogas Anselmo Santa Fausta, o Cara Preta, e outros investigados. Ele descobrira que Muniz ganhara 640 prêmios lotéricos. Cara Preta, assassinado em dezembro de 2021, era ainda suspeito de ser um dos donos da UPBus, empresa que foi um dos alvos da Operação Fim da Linha.

Na mesma época, os policiais do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), preparavam os últimos detalhes para o lançamento da Operação Ataraxia, que tinha como alvos Muniz, parentes de Cara Preta, a UPBus e outras pessoas ligadas à facção. A ação foi desencadeada no dia 2 de junho, quando os policiais civis cumpriram 62 mandados de busca e apreensão expedidos pela mesma 1.ª Vara de Crimes Tributários e Financeiros, Organizações Criminosas e Lavagem da capital que examinava o pedido da PF sem que uma polícia soubesse oficialmente do pedido feito pela outra.

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Os policiais do Denarc apreenderam então celulares, computadores, documentos, dois fuzis, pistolas, revólveres e grande quantidade de munição. E pediram à Justiça o sequestro dos bens dos acusados do caso. Diante disso, em 21 de junho de 2022, o delegado da PF informou à Justiça que estava desistindo das buscas e do sequestro de bens dos acusados. Pediu ainda que o inquérito enviado fosse incluído no inquérito da Polícia Civil. Muniz só foi ouvido nessa investigação no fim de 2022. Dois anos depois, as investigações contra ele permaneciam sem solução.

O traficante de drogas Anselmo Becheli Santa Fausta, o Cara Preta ou Magrelo, assassinado em 27 de dezembro de 2021 Foto: Reprodução / Estadão

Nesse período, conforme mostrou o Estadão, as empresas de ônibus investigadas pela polícia por suspeitas de relação com a facção receberam quase R$ 850 milhões da Prefeitura depois que os inquéritos foram abertos. Entre junho de 2022 e abril de 2024, só a UPBus contou com cerca de R$ 150 milhões de repasses da Prefeitura mesmo depois de ser alvo da Operação Ataraxia. Foi só depois de ser alvo de outra operação, a Fim da Linha, que a Prefeitura decretou intervenção na empresa para cumprir decisão da Justiça.

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Só por esse caso pode-se medir o tamanho da encrenca que é o desencontro e desconfianças entre os doutores. Suspeitas de corrupção, histórias de vazamento de operações e de ligações espúrias de autoridades envenenam o combate ao crime organizado, enfraquecendo o cumprimento da lei. Mas não só. O desencontro é também burocrático e administrativo.

Hoje, a reportagem do Estadão mostrou outra face dos descaminhos da Segurança Pública no País: o atraso dos Estados para investir R$ 370 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) pode levá-los a “desperdiçar” o dinheiro. Entraves burocráticos e a incapacidade dos gestores de aplicar o dinheiro posto à disposição pelo governo federal em 2019 e 2020, ainda na gestão de Jair Bolsonaro, pode levar com que a verba seja direcionada em dezembro para outra finalidade: pagar dívidas dos Estados com a União.

Operação da Polícia Civil mirou rede de 78 hotéis e hospedarias do PCC no centro de São Paulo; na Praça Júlio Prestes, um dos acusados foi preso Foto: Werther Santana/Estadão
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O problema atinge os 26 Estados e o Distrito Federal, administrados pelos mais diversos partidos políticos. Como mostrou o repórter Guilherme Caetano, o FNSP, criado em 2018 pelo governo de Michel Temer, tem recursos para os Estados que devem ser usados para custear políticas de segurança pública, com base em critérios definidos pela União. Entre as prioridades está o combate ao crime organizado. “De 2019 a 2023, a União repassou R$ 4,4 bilhões, dos quais quase metade (R$ 2,8 bilhões) ainda está em saldo para executar”, relata o repórter.

São Paulo conseguiu executar 85% dos R$ 168,8 milhões transferidos de 2019 a 2022. Já Santa Catarina, onde o PCC comprou parte de sua flotilha para explorar o tráfico transatlântico de drogas para a Europa e a África, conseguiu gastar apenas 34,2% dos R$ 100,9 milhões recebidos nesse período.

Enquanto sobra burocracia estatal e falta de trabalho conjunto entre as polícias, o crime organizado no Brasil atinge um nível cada vez maior de captura de contratos com o Estado e de ostentação de riquezas. Só o Rio ainda conserva parte das lideranças do crime morando em comunidades. No restante do País, os maiores narcotraficantes moram em fazendas, condomínios fechados no interior, casas na praia ou apartamentos de alto padrão em cidades como São Paulo, Camboriú e Fortaleza.

Apartamento de um acusado de ligação com o PCC revistado pelos agentes durante a Operação Fim da Linha Foto: Receita Federal

O estelionato cresce enquanto o roubo cai no País. O avanço dos golpes digitais esconde um outro fenômeno: a ação da criminalidade organizada. É que os estelionatários do passado, aqueles de golpes como o cochilo bancário, agora operam verdadeiros bancos do crime e lesam investidores incautos bem como cuidam dos esquemas de lavagem de recursos para o PCC. Foi a necessidade de legalizar o dinheiro das drogas que levou os traficantes da facção a se unirem aos criminosos especialistas em papelada em busca de brechas para montar armadilhas, fraudes e esquemas.

É sobre esse estado de coisas que as autoridades estaduais e federais que produziram as cenas na posse do doutor Sanfurgo de Carvalho e na Operação Fim da Linha deviam refletir. Não é demonstrando desapreço por Moraes, por Lewandowski, por Derrite ou por qualquer outra autoridade que o País vai conseguir enfrentar sua maior ameaça: o crime organizado. Cenas como essas duas são uma derrota diante da criminalidade. E só podem ser comemoradas pelos narcotraficantes das facções criminosas.

A tarde do dia 12 de julho estava fria em São Paulo. O auditório da sede da Superintendência da Polícia Federal começou a lotar. Ali estavam o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, o diretor-geral da PF, delegado Andrei Passos Rodrigues, e outras autoridades para a cerimônia de posse do novo superintendente da PF no Estado, delegado Rodrigo Luís Sanfurgo de Carvalho.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, conversa com o delegado-geral da PF, Andrei Passos Rodrigues, enquanto o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, discursa na posse do novo superintendente da PF em São Paulo, delegado Rodrigo Luís Sanfurgo de Carvalho Foto: Marcelo Godoy / Estadão

Disse o doutor Sanfurgo de Carvalho: “Atravessamos tempos desafiadores. A integração e a cooperação dos órgãos do Sistema Único de Segurança Pública são essenciais para o combate à criminalidade. A união de esforços e o compartilhamento de informações são essenciais para enfrentar essa ameaça de forma coordenada e abrangente. Essa sinergia maximiza os recursos públicos, o que fortalece a capacidade de investigação e repressão.” Era tudo o que parecia não haver ali.

É que nenhum dos titulares da Segurança Pública paulista apareceu na cerimônia. Nem o secretário Guilherme Derrite ou os chefes da Polícias Civil e Militar. Do Estado, só o procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, estava presente. As ausências mostravam a fratura, o distanciamento entre as cúpulas dos aparelhos de segurança responsáveis pelo combate ao crime organizado no País: a PF, ao combater o crime transnacional, e as polícias do Estado que foi o berço e é a principal base da maior de todas as organizações criminosas: o Primeiro Comando da Capital (PCC).

A falta de coordenação entre as polícias, procuradores e fiscais da Receita Federal gerou situações constrangedoras nos últimos anos. No dia 9 de abril, a maior operação da história contra a captura do sistema público de transporte na cidade de São Paulo, viu a Polícia Civil paulista ser excluída da ação. A bancada da entrevista coletiva sobre a Operação Fim da Linha reuniu Derrite, o comandante da PM, coronel Cássio de Araújo Freitas, o procurador-geral, a chefe regional da Receita, Márcia Cecília Meng, e até o prefeito Ricardo Nunes em um auditório lotado. Mas não havia ali um único policial civil.

A coletiva sobre a Operação Fim da Linha, na sede do Ministério Público, contou com o coronel Cássio e o secretário Derrite, na ala esquerda da mesa, e o prefeito Ricardo Nunes e a superintendente da Receita Federal, Maria Cecilia Meng, na ponta oposta. No centro, três integrantes do MPE. Foto: Werther Santana/Estadão

A desconfiança entre os integrantes das instituições provocou o protesto solitário do diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), delegado Fábio Pinheiro Lopes, o Fábio Caipira, que deixou um grupo de WhatsApp que reunia policiais e promotores. Nos dias seguintes, a Associação dos delegados da Polícia Civil chegou a questionar a legalidade da operação em razão da ausência da Polícia Civil nas investigações.

Policiais civis acusam o Ministério Público de se apropriar de informações de seus inquéritos para montar as operações enquanto promotores desconfiam que inquéritos e ações da polícia se desenvolvem para se adiantar às suas operações. O bater de cabeças na área é antigo. Em 2022, ele envolveu a investigação a respeito da empresa de ônibus UPBus e o contador João Muniz Leite. Ele e a mulher eram investigados por terem supostamente movimentado R$ 525.778.863,00 entre 2020 e 2021 em suas contas bancárias, embora Muniz declarasse salário de R$ 26 mil no período.

A coluna teve acesso à íntegra do inquérito n°. 020/2022 da PF sobre o caso. Os papéis mostram que em 12 de maio de 2022 o delegado Flávio Vieitez Reis, supervisor do Grupo de Investigações Sensíveis da Superintendência da PF em São Paulo, enviou ao juiz Guilherme Eduardo Martins Kellner, da 1.ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital, os autos da investigação sobre a lavagem de dinheiro para que o caso fosse apreciado pela Força Tarefa X, do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo.

Documento da Polícia Federal sobre o envio do caso de Muniz ao Gaeco Foto: Reprodução / Estadão

Ou seja, a PF estava trabalhando em conjunto com a promotoria. O delegado pediu a expedição de mandados de busca contra alvos ligados ao contador e ao traficante de drogas Anselmo Santa Fausta, o Cara Preta, e outros investigados. Ele descobrira que Muniz ganhara 640 prêmios lotéricos. Cara Preta, assassinado em dezembro de 2021, era ainda suspeito de ser um dos donos da UPBus, empresa que foi um dos alvos da Operação Fim da Linha.

Na mesma época, os policiais do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), preparavam os últimos detalhes para o lançamento da Operação Ataraxia, que tinha como alvos Muniz, parentes de Cara Preta, a UPBus e outras pessoas ligadas à facção. A ação foi desencadeada no dia 2 de junho, quando os policiais civis cumpriram 62 mandados de busca e apreensão expedidos pela mesma 1.ª Vara de Crimes Tributários e Financeiros, Organizações Criminosas e Lavagem da capital que examinava o pedido da PF sem que uma polícia soubesse oficialmente do pedido feito pela outra.

Os policiais do Denarc apreenderam então celulares, computadores, documentos, dois fuzis, pistolas, revólveres e grande quantidade de munição. E pediram à Justiça o sequestro dos bens dos acusados do caso. Diante disso, em 21 de junho de 2022, o delegado da PF informou à Justiça que estava desistindo das buscas e do sequestro de bens dos acusados. Pediu ainda que o inquérito enviado fosse incluído no inquérito da Polícia Civil. Muniz só foi ouvido nessa investigação no fim de 2022. Dois anos depois, as investigações contra ele permaneciam sem solução.

O traficante de drogas Anselmo Becheli Santa Fausta, o Cara Preta ou Magrelo, assassinado em 27 de dezembro de 2021 Foto: Reprodução / Estadão

Nesse período, conforme mostrou o Estadão, as empresas de ônibus investigadas pela polícia por suspeitas de relação com a facção receberam quase R$ 850 milhões da Prefeitura depois que os inquéritos foram abertos. Entre junho de 2022 e abril de 2024, só a UPBus contou com cerca de R$ 150 milhões de repasses da Prefeitura mesmo depois de ser alvo da Operação Ataraxia. Foi só depois de ser alvo de outra operação, a Fim da Linha, que a Prefeitura decretou intervenção na empresa para cumprir decisão da Justiça.

Só por esse caso pode-se medir o tamanho da encrenca que é o desencontro e desconfianças entre os doutores. Suspeitas de corrupção, histórias de vazamento de operações e de ligações espúrias de autoridades envenenam o combate ao crime organizado, enfraquecendo o cumprimento da lei. Mas não só. O desencontro é também burocrático e administrativo.

Hoje, a reportagem do Estadão mostrou outra face dos descaminhos da Segurança Pública no País: o atraso dos Estados para investir R$ 370 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) pode levá-los a “desperdiçar” o dinheiro. Entraves burocráticos e a incapacidade dos gestores de aplicar o dinheiro posto à disposição pelo governo federal em 2019 e 2020, ainda na gestão de Jair Bolsonaro, pode levar com que a verba seja direcionada em dezembro para outra finalidade: pagar dívidas dos Estados com a União.

Operação da Polícia Civil mirou rede de 78 hotéis e hospedarias do PCC no centro de São Paulo; na Praça Júlio Prestes, um dos acusados foi preso Foto: Werther Santana/Estadão

O problema atinge os 26 Estados e o Distrito Federal, administrados pelos mais diversos partidos políticos. Como mostrou o repórter Guilherme Caetano, o FNSP, criado em 2018 pelo governo de Michel Temer, tem recursos para os Estados que devem ser usados para custear políticas de segurança pública, com base em critérios definidos pela União. Entre as prioridades está o combate ao crime organizado. “De 2019 a 2023, a União repassou R$ 4,4 bilhões, dos quais quase metade (R$ 2,8 bilhões) ainda está em saldo para executar”, relata o repórter.

São Paulo conseguiu executar 85% dos R$ 168,8 milhões transferidos de 2019 a 2022. Já Santa Catarina, onde o PCC comprou parte de sua flotilha para explorar o tráfico transatlântico de drogas para a Europa e a África, conseguiu gastar apenas 34,2% dos R$ 100,9 milhões recebidos nesse período.

Enquanto sobra burocracia estatal e falta de trabalho conjunto entre as polícias, o crime organizado no Brasil atinge um nível cada vez maior de captura de contratos com o Estado e de ostentação de riquezas. Só o Rio ainda conserva parte das lideranças do crime morando em comunidades. No restante do País, os maiores narcotraficantes moram em fazendas, condomínios fechados no interior, casas na praia ou apartamentos de alto padrão em cidades como São Paulo, Camboriú e Fortaleza.

Apartamento de um acusado de ligação com o PCC revistado pelos agentes durante a Operação Fim da Linha Foto: Receita Federal

O estelionato cresce enquanto o roubo cai no País. O avanço dos golpes digitais esconde um outro fenômeno: a ação da criminalidade organizada. É que os estelionatários do passado, aqueles de golpes como o cochilo bancário, agora operam verdadeiros bancos do crime e lesam investidores incautos bem como cuidam dos esquemas de lavagem de recursos para o PCC. Foi a necessidade de legalizar o dinheiro das drogas que levou os traficantes da facção a se unirem aos criminosos especialistas em papelada em busca de brechas para montar armadilhas, fraudes e esquemas.

É sobre esse estado de coisas que as autoridades estaduais e federais que produziram as cenas na posse do doutor Sanfurgo de Carvalho e na Operação Fim da Linha deviam refletir. Não é demonstrando desapreço por Moraes, por Lewandowski, por Derrite ou por qualquer outra autoridade que o País vai conseguir enfrentar sua maior ameaça: o crime organizado. Cenas como essas duas são uma derrota diante da criminalidade. E só podem ser comemoradas pelos narcotraficantes das facções criminosas.

A tarde do dia 12 de julho estava fria em São Paulo. O auditório da sede da Superintendência da Polícia Federal começou a lotar. Ali estavam o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, o diretor-geral da PF, delegado Andrei Passos Rodrigues, e outras autoridades para a cerimônia de posse do novo superintendente da PF no Estado, delegado Rodrigo Luís Sanfurgo de Carvalho.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, conversa com o delegado-geral da PF, Andrei Passos Rodrigues, enquanto o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, discursa na posse do novo superintendente da PF em São Paulo, delegado Rodrigo Luís Sanfurgo de Carvalho Foto: Marcelo Godoy / Estadão

Disse o doutor Sanfurgo de Carvalho: “Atravessamos tempos desafiadores. A integração e a cooperação dos órgãos do Sistema Único de Segurança Pública são essenciais para o combate à criminalidade. A união de esforços e o compartilhamento de informações são essenciais para enfrentar essa ameaça de forma coordenada e abrangente. Essa sinergia maximiza os recursos públicos, o que fortalece a capacidade de investigação e repressão.” Era tudo o que parecia não haver ali.

É que nenhum dos titulares da Segurança Pública paulista apareceu na cerimônia. Nem o secretário Guilherme Derrite ou os chefes da Polícias Civil e Militar. Do Estado, só o procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, estava presente. As ausências mostravam a fratura, o distanciamento entre as cúpulas dos aparelhos de segurança responsáveis pelo combate ao crime organizado no País: a PF, ao combater o crime transnacional, e as polícias do Estado que foi o berço e é a principal base da maior de todas as organizações criminosas: o Primeiro Comando da Capital (PCC).

A falta de coordenação entre as polícias, procuradores e fiscais da Receita Federal gerou situações constrangedoras nos últimos anos. No dia 9 de abril, a maior operação da história contra a captura do sistema público de transporte na cidade de São Paulo, viu a Polícia Civil paulista ser excluída da ação. A bancada da entrevista coletiva sobre a Operação Fim da Linha reuniu Derrite, o comandante da PM, coronel Cássio de Araújo Freitas, o procurador-geral, a chefe regional da Receita, Márcia Cecília Meng, e até o prefeito Ricardo Nunes em um auditório lotado. Mas não havia ali um único policial civil.

A coletiva sobre a Operação Fim da Linha, na sede do Ministério Público, contou com o coronel Cássio e o secretário Derrite, na ala esquerda da mesa, e o prefeito Ricardo Nunes e a superintendente da Receita Federal, Maria Cecilia Meng, na ponta oposta. No centro, três integrantes do MPE. Foto: Werther Santana/Estadão

A desconfiança entre os integrantes das instituições provocou o protesto solitário do diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), delegado Fábio Pinheiro Lopes, o Fábio Caipira, que deixou um grupo de WhatsApp que reunia policiais e promotores. Nos dias seguintes, a Associação dos delegados da Polícia Civil chegou a questionar a legalidade da operação em razão da ausência da Polícia Civil nas investigações.

Policiais civis acusam o Ministério Público de se apropriar de informações de seus inquéritos para montar as operações enquanto promotores desconfiam que inquéritos e ações da polícia se desenvolvem para se adiantar às suas operações. O bater de cabeças na área é antigo. Em 2022, ele envolveu a investigação a respeito da empresa de ônibus UPBus e o contador João Muniz Leite. Ele e a mulher eram investigados por terem supostamente movimentado R$ 525.778.863,00 entre 2020 e 2021 em suas contas bancárias, embora Muniz declarasse salário de R$ 26 mil no período.

A coluna teve acesso à íntegra do inquérito n°. 020/2022 da PF sobre o caso. Os papéis mostram que em 12 de maio de 2022 o delegado Flávio Vieitez Reis, supervisor do Grupo de Investigações Sensíveis da Superintendência da PF em São Paulo, enviou ao juiz Guilherme Eduardo Martins Kellner, da 1.ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital, os autos da investigação sobre a lavagem de dinheiro para que o caso fosse apreciado pela Força Tarefa X, do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo.

Documento da Polícia Federal sobre o envio do caso de Muniz ao Gaeco Foto: Reprodução / Estadão

Ou seja, a PF estava trabalhando em conjunto com a promotoria. O delegado pediu a expedição de mandados de busca contra alvos ligados ao contador e ao traficante de drogas Anselmo Santa Fausta, o Cara Preta, e outros investigados. Ele descobrira que Muniz ganhara 640 prêmios lotéricos. Cara Preta, assassinado em dezembro de 2021, era ainda suspeito de ser um dos donos da UPBus, empresa que foi um dos alvos da Operação Fim da Linha.

Na mesma época, os policiais do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), preparavam os últimos detalhes para o lançamento da Operação Ataraxia, que tinha como alvos Muniz, parentes de Cara Preta, a UPBus e outras pessoas ligadas à facção. A ação foi desencadeada no dia 2 de junho, quando os policiais civis cumpriram 62 mandados de busca e apreensão expedidos pela mesma 1.ª Vara de Crimes Tributários e Financeiros, Organizações Criminosas e Lavagem da capital que examinava o pedido da PF sem que uma polícia soubesse oficialmente do pedido feito pela outra.

Os policiais do Denarc apreenderam então celulares, computadores, documentos, dois fuzis, pistolas, revólveres e grande quantidade de munição. E pediram à Justiça o sequestro dos bens dos acusados do caso. Diante disso, em 21 de junho de 2022, o delegado da PF informou à Justiça que estava desistindo das buscas e do sequestro de bens dos acusados. Pediu ainda que o inquérito enviado fosse incluído no inquérito da Polícia Civil. Muniz só foi ouvido nessa investigação no fim de 2022. Dois anos depois, as investigações contra ele permaneciam sem solução.

O traficante de drogas Anselmo Becheli Santa Fausta, o Cara Preta ou Magrelo, assassinado em 27 de dezembro de 2021 Foto: Reprodução / Estadão

Nesse período, conforme mostrou o Estadão, as empresas de ônibus investigadas pela polícia por suspeitas de relação com a facção receberam quase R$ 850 milhões da Prefeitura depois que os inquéritos foram abertos. Entre junho de 2022 e abril de 2024, só a UPBus contou com cerca de R$ 150 milhões de repasses da Prefeitura mesmo depois de ser alvo da Operação Ataraxia. Foi só depois de ser alvo de outra operação, a Fim da Linha, que a Prefeitura decretou intervenção na empresa para cumprir decisão da Justiça.

Só por esse caso pode-se medir o tamanho da encrenca que é o desencontro e desconfianças entre os doutores. Suspeitas de corrupção, histórias de vazamento de operações e de ligações espúrias de autoridades envenenam o combate ao crime organizado, enfraquecendo o cumprimento da lei. Mas não só. O desencontro é também burocrático e administrativo.

Hoje, a reportagem do Estadão mostrou outra face dos descaminhos da Segurança Pública no País: o atraso dos Estados para investir R$ 370 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) pode levá-los a “desperdiçar” o dinheiro. Entraves burocráticos e a incapacidade dos gestores de aplicar o dinheiro posto à disposição pelo governo federal em 2019 e 2020, ainda na gestão de Jair Bolsonaro, pode levar com que a verba seja direcionada em dezembro para outra finalidade: pagar dívidas dos Estados com a União.

Operação da Polícia Civil mirou rede de 78 hotéis e hospedarias do PCC no centro de São Paulo; na Praça Júlio Prestes, um dos acusados foi preso Foto: Werther Santana/Estadão

O problema atinge os 26 Estados e o Distrito Federal, administrados pelos mais diversos partidos políticos. Como mostrou o repórter Guilherme Caetano, o FNSP, criado em 2018 pelo governo de Michel Temer, tem recursos para os Estados que devem ser usados para custear políticas de segurança pública, com base em critérios definidos pela União. Entre as prioridades está o combate ao crime organizado. “De 2019 a 2023, a União repassou R$ 4,4 bilhões, dos quais quase metade (R$ 2,8 bilhões) ainda está em saldo para executar”, relata o repórter.

São Paulo conseguiu executar 85% dos R$ 168,8 milhões transferidos de 2019 a 2022. Já Santa Catarina, onde o PCC comprou parte de sua flotilha para explorar o tráfico transatlântico de drogas para a Europa e a África, conseguiu gastar apenas 34,2% dos R$ 100,9 milhões recebidos nesse período.

Enquanto sobra burocracia estatal e falta de trabalho conjunto entre as polícias, o crime organizado no Brasil atinge um nível cada vez maior de captura de contratos com o Estado e de ostentação de riquezas. Só o Rio ainda conserva parte das lideranças do crime morando em comunidades. No restante do País, os maiores narcotraficantes moram em fazendas, condomínios fechados no interior, casas na praia ou apartamentos de alto padrão em cidades como São Paulo, Camboriú e Fortaleza.

Apartamento de um acusado de ligação com o PCC revistado pelos agentes durante a Operação Fim da Linha Foto: Receita Federal

O estelionato cresce enquanto o roubo cai no País. O avanço dos golpes digitais esconde um outro fenômeno: a ação da criminalidade organizada. É que os estelionatários do passado, aqueles de golpes como o cochilo bancário, agora operam verdadeiros bancos do crime e lesam investidores incautos bem como cuidam dos esquemas de lavagem de recursos para o PCC. Foi a necessidade de legalizar o dinheiro das drogas que levou os traficantes da facção a se unirem aos criminosos especialistas em papelada em busca de brechas para montar armadilhas, fraudes e esquemas.

É sobre esse estado de coisas que as autoridades estaduais e federais que produziram as cenas na posse do doutor Sanfurgo de Carvalho e na Operação Fim da Linha deviam refletir. Não é demonstrando desapreço por Moraes, por Lewandowski, por Derrite ou por qualquer outra autoridade que o País vai conseguir enfrentar sua maior ameaça: o crime organizado. Cenas como essas duas são uma derrota diante da criminalidade. E só podem ser comemoradas pelos narcotraficantes das facções criminosas.

A tarde do dia 12 de julho estava fria em São Paulo. O auditório da sede da Superintendência da Polícia Federal começou a lotar. Ali estavam o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, o diretor-geral da PF, delegado Andrei Passos Rodrigues, e outras autoridades para a cerimônia de posse do novo superintendente da PF no Estado, delegado Rodrigo Luís Sanfurgo de Carvalho.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, conversa com o delegado-geral da PF, Andrei Passos Rodrigues, enquanto o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, discursa na posse do novo superintendente da PF em São Paulo, delegado Rodrigo Luís Sanfurgo de Carvalho Foto: Marcelo Godoy / Estadão

Disse o doutor Sanfurgo de Carvalho: “Atravessamos tempos desafiadores. A integração e a cooperação dos órgãos do Sistema Único de Segurança Pública são essenciais para o combate à criminalidade. A união de esforços e o compartilhamento de informações são essenciais para enfrentar essa ameaça de forma coordenada e abrangente. Essa sinergia maximiza os recursos públicos, o que fortalece a capacidade de investigação e repressão.” Era tudo o que parecia não haver ali.

É que nenhum dos titulares da Segurança Pública paulista apareceu na cerimônia. Nem o secretário Guilherme Derrite ou os chefes da Polícias Civil e Militar. Do Estado, só o procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, estava presente. As ausências mostravam a fratura, o distanciamento entre as cúpulas dos aparelhos de segurança responsáveis pelo combate ao crime organizado no País: a PF, ao combater o crime transnacional, e as polícias do Estado que foi o berço e é a principal base da maior de todas as organizações criminosas: o Primeiro Comando da Capital (PCC).

A falta de coordenação entre as polícias, procuradores e fiscais da Receita Federal gerou situações constrangedoras nos últimos anos. No dia 9 de abril, a maior operação da história contra a captura do sistema público de transporte na cidade de São Paulo, viu a Polícia Civil paulista ser excluída da ação. A bancada da entrevista coletiva sobre a Operação Fim da Linha reuniu Derrite, o comandante da PM, coronel Cássio de Araújo Freitas, o procurador-geral, a chefe regional da Receita, Márcia Cecília Meng, e até o prefeito Ricardo Nunes em um auditório lotado. Mas não havia ali um único policial civil.

A coletiva sobre a Operação Fim da Linha, na sede do Ministério Público, contou com o coronel Cássio e o secretário Derrite, na ala esquerda da mesa, e o prefeito Ricardo Nunes e a superintendente da Receita Federal, Maria Cecilia Meng, na ponta oposta. No centro, três integrantes do MPE. Foto: Werther Santana/Estadão

A desconfiança entre os integrantes das instituições provocou o protesto solitário do diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), delegado Fábio Pinheiro Lopes, o Fábio Caipira, que deixou um grupo de WhatsApp que reunia policiais e promotores. Nos dias seguintes, a Associação dos delegados da Polícia Civil chegou a questionar a legalidade da operação em razão da ausência da Polícia Civil nas investigações.

Policiais civis acusam o Ministério Público de se apropriar de informações de seus inquéritos para montar as operações enquanto promotores desconfiam que inquéritos e ações da polícia se desenvolvem para se adiantar às suas operações. O bater de cabeças na área é antigo. Em 2022, ele envolveu a investigação a respeito da empresa de ônibus UPBus e o contador João Muniz Leite. Ele e a mulher eram investigados por terem supostamente movimentado R$ 525.778.863,00 entre 2020 e 2021 em suas contas bancárias, embora Muniz declarasse salário de R$ 26 mil no período.

A coluna teve acesso à íntegra do inquérito n°. 020/2022 da PF sobre o caso. Os papéis mostram que em 12 de maio de 2022 o delegado Flávio Vieitez Reis, supervisor do Grupo de Investigações Sensíveis da Superintendência da PF em São Paulo, enviou ao juiz Guilherme Eduardo Martins Kellner, da 1.ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Bens e Valores da Capital, os autos da investigação sobre a lavagem de dinheiro para que o caso fosse apreciado pela Força Tarefa X, do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo.

Documento da Polícia Federal sobre o envio do caso de Muniz ao Gaeco Foto: Reprodução / Estadão

Ou seja, a PF estava trabalhando em conjunto com a promotoria. O delegado pediu a expedição de mandados de busca contra alvos ligados ao contador e ao traficante de drogas Anselmo Santa Fausta, o Cara Preta, e outros investigados. Ele descobrira que Muniz ganhara 640 prêmios lotéricos. Cara Preta, assassinado em dezembro de 2021, era ainda suspeito de ser um dos donos da UPBus, empresa que foi um dos alvos da Operação Fim da Linha.

Na mesma época, os policiais do Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (Denarc), preparavam os últimos detalhes para o lançamento da Operação Ataraxia, que tinha como alvos Muniz, parentes de Cara Preta, a UPBus e outras pessoas ligadas à facção. A ação foi desencadeada no dia 2 de junho, quando os policiais civis cumpriram 62 mandados de busca e apreensão expedidos pela mesma 1.ª Vara de Crimes Tributários e Financeiros, Organizações Criminosas e Lavagem da capital que examinava o pedido da PF sem que uma polícia soubesse oficialmente do pedido feito pela outra.

Os policiais do Denarc apreenderam então celulares, computadores, documentos, dois fuzis, pistolas, revólveres e grande quantidade de munição. E pediram à Justiça o sequestro dos bens dos acusados do caso. Diante disso, em 21 de junho de 2022, o delegado da PF informou à Justiça que estava desistindo das buscas e do sequestro de bens dos acusados. Pediu ainda que o inquérito enviado fosse incluído no inquérito da Polícia Civil. Muniz só foi ouvido nessa investigação no fim de 2022. Dois anos depois, as investigações contra ele permaneciam sem solução.

O traficante de drogas Anselmo Becheli Santa Fausta, o Cara Preta ou Magrelo, assassinado em 27 de dezembro de 2021 Foto: Reprodução / Estadão

Nesse período, conforme mostrou o Estadão, as empresas de ônibus investigadas pela polícia por suspeitas de relação com a facção receberam quase R$ 850 milhões da Prefeitura depois que os inquéritos foram abertos. Entre junho de 2022 e abril de 2024, só a UPBus contou com cerca de R$ 150 milhões de repasses da Prefeitura mesmo depois de ser alvo da Operação Ataraxia. Foi só depois de ser alvo de outra operação, a Fim da Linha, que a Prefeitura decretou intervenção na empresa para cumprir decisão da Justiça.

Só por esse caso pode-se medir o tamanho da encrenca que é o desencontro e desconfianças entre os doutores. Suspeitas de corrupção, histórias de vazamento de operações e de ligações espúrias de autoridades envenenam o combate ao crime organizado, enfraquecendo o cumprimento da lei. Mas não só. O desencontro é também burocrático e administrativo.

Hoje, a reportagem do Estadão mostrou outra face dos descaminhos da Segurança Pública no País: o atraso dos Estados para investir R$ 370 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) pode levá-los a “desperdiçar” o dinheiro. Entraves burocráticos e a incapacidade dos gestores de aplicar o dinheiro posto à disposição pelo governo federal em 2019 e 2020, ainda na gestão de Jair Bolsonaro, pode levar com que a verba seja direcionada em dezembro para outra finalidade: pagar dívidas dos Estados com a União.

Operação da Polícia Civil mirou rede de 78 hotéis e hospedarias do PCC no centro de São Paulo; na Praça Júlio Prestes, um dos acusados foi preso Foto: Werther Santana/Estadão

O problema atinge os 26 Estados e o Distrito Federal, administrados pelos mais diversos partidos políticos. Como mostrou o repórter Guilherme Caetano, o FNSP, criado em 2018 pelo governo de Michel Temer, tem recursos para os Estados que devem ser usados para custear políticas de segurança pública, com base em critérios definidos pela União. Entre as prioridades está o combate ao crime organizado. “De 2019 a 2023, a União repassou R$ 4,4 bilhões, dos quais quase metade (R$ 2,8 bilhões) ainda está em saldo para executar”, relata o repórter.

São Paulo conseguiu executar 85% dos R$ 168,8 milhões transferidos de 2019 a 2022. Já Santa Catarina, onde o PCC comprou parte de sua flotilha para explorar o tráfico transatlântico de drogas para a Europa e a África, conseguiu gastar apenas 34,2% dos R$ 100,9 milhões recebidos nesse período.

Enquanto sobra burocracia estatal e falta de trabalho conjunto entre as polícias, o crime organizado no Brasil atinge um nível cada vez maior de captura de contratos com o Estado e de ostentação de riquezas. Só o Rio ainda conserva parte das lideranças do crime morando em comunidades. No restante do País, os maiores narcotraficantes moram em fazendas, condomínios fechados no interior, casas na praia ou apartamentos de alto padrão em cidades como São Paulo, Camboriú e Fortaleza.

Apartamento de um acusado de ligação com o PCC revistado pelos agentes durante a Operação Fim da Linha Foto: Receita Federal

O estelionato cresce enquanto o roubo cai no País. O avanço dos golpes digitais esconde um outro fenômeno: a ação da criminalidade organizada. É que os estelionatários do passado, aqueles de golpes como o cochilo bancário, agora operam verdadeiros bancos do crime e lesam investidores incautos bem como cuidam dos esquemas de lavagem de recursos para o PCC. Foi a necessidade de legalizar o dinheiro das drogas que levou os traficantes da facção a se unirem aos criminosos especialistas em papelada em busca de brechas para montar armadilhas, fraudes e esquemas.

É sobre esse estado de coisas que as autoridades estaduais e federais que produziram as cenas na posse do doutor Sanfurgo de Carvalho e na Operação Fim da Linha deviam refletir. Não é demonstrando desapreço por Moraes, por Lewandowski, por Derrite ou por qualquer outra autoridade que o País vai conseguir enfrentar sua maior ameaça: o crime organizado. Cenas como essas duas são uma derrota diante da criminalidade. E só podem ser comemoradas pelos narcotraficantes das facções criminosas.

Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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