As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

A volta de Bolsonaro e o 31 de março


A República precisa de uma data para opor aos herdeiros das ditaduras o valor da democracia

Por Marcelo Godoy

Fingindo-se de morto, Stalin olha fixo os soldados que retiram seu caixão do Kremlin. A cena abre o poema Os herdeiros de Stalin, de Ievguêni Ievtuchenko. O texto apareceu no Pravda, em 1962, e se tornou símbolo do Degelo, a política de desestalinização de Nikita Kruchev. No Brasil, Haroldo de Campos traduziu assim seus versos finais: “Enquanto neste mundo houver herdeiros de Stalin, para mim,/no mausoléu,/Stalin ainda resiste”.

O poeta tinha razão. Não basta retirar o caixão do mausoléu. Stalin tem herdeiros. A Rússia de Putin retomou o culto ao vozhd, ao líder, e levou seus sonhos imperiais à Ucrânia. Uma nação é também feita de símbolos e heranças. E memória.

Foi para apaziguar os ânimos e desarmar os espíritos que o almirante Mauro César Rodrigues, o brigadeiro Mauro Gandra e o general Zenildo Lucena decidiram, em 1995, acabar com a nota conjunta sobre o 31 de Março de 1964. Desfeita a URSS, o anticomunista como forma de coesão e identidade se enfraquecera. Além disso, a data dividia o Brasil. E as Forças Armadas devem ser fator de união e não de conflito. Não se comemora vitória sobre brasileiros. Caxias ensinara isso ao vencer os farrapos.

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Bolsonaro já afirmou que golpe militar de 1964 foi ‘grande dia da liberdade’ Foto: Fábio Motta/Estadão

Jair Bolsonaro escolheu a dedo a data de sua volta ao País. Ele e seus generais retiraram do caixão a comemoração oficial sobre o golpe porque a Nova República se esqueceu dos herdeiros do AI-5. Ela suprimiu a data, mas nada pôs no lugar; não procurou um feito das armas nacionais para opor ao 31 de Março como símbolo da Constituição.

Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, Émile Durkheim diz que “na base de todo sistema de crenças e de todos os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais e atitudes rituais”. Datas, símbolos e rituais não são frivolidades. A dimensão simbólica penetra a vida social. Jaques Le Goff mostra que se tornar senhor da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominam as sociedades históricas.

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Na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, além de seus patronos, só Mascarenhas de Morais, o comandante da Força Expedicionária Brasileira, tem ali o retrato sem ter chefiado a escola. Isso mostra um caminho à República: retirar o 21 de fevereiro do esquecimento que lhe dedica o mundo civil.

A data da vitória de Monte Castelo é um símbolo de união nacional e da luta contra o nazi-fascismo. Eis um feito das armas que se deve lembrar para afirmar a liberdade e a democracia como valores fundamentais. A República não deve esquecê-lo. E não é porque os herdeiros do AI-5 ou os de Stalin podem um dia voltar. É porque, na verdade, eles nunca foram embora.

Fingindo-se de morto, Stalin olha fixo os soldados que retiram seu caixão do Kremlin. A cena abre o poema Os herdeiros de Stalin, de Ievguêni Ievtuchenko. O texto apareceu no Pravda, em 1962, e se tornou símbolo do Degelo, a política de desestalinização de Nikita Kruchev. No Brasil, Haroldo de Campos traduziu assim seus versos finais: “Enquanto neste mundo houver herdeiros de Stalin, para mim,/no mausoléu,/Stalin ainda resiste”.

O poeta tinha razão. Não basta retirar o caixão do mausoléu. Stalin tem herdeiros. A Rússia de Putin retomou o culto ao vozhd, ao líder, e levou seus sonhos imperiais à Ucrânia. Uma nação é também feita de símbolos e heranças. E memória.

Foi para apaziguar os ânimos e desarmar os espíritos que o almirante Mauro César Rodrigues, o brigadeiro Mauro Gandra e o general Zenildo Lucena decidiram, em 1995, acabar com a nota conjunta sobre o 31 de Março de 1964. Desfeita a URSS, o anticomunista como forma de coesão e identidade se enfraquecera. Além disso, a data dividia o Brasil. E as Forças Armadas devem ser fator de união e não de conflito. Não se comemora vitória sobre brasileiros. Caxias ensinara isso ao vencer os farrapos.

Bolsonaro já afirmou que golpe militar de 1964 foi ‘grande dia da liberdade’ Foto: Fábio Motta/Estadão

Jair Bolsonaro escolheu a dedo a data de sua volta ao País. Ele e seus generais retiraram do caixão a comemoração oficial sobre o golpe porque a Nova República se esqueceu dos herdeiros do AI-5. Ela suprimiu a data, mas nada pôs no lugar; não procurou um feito das armas nacionais para opor ao 31 de Março como símbolo da Constituição.

Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, Émile Durkheim diz que “na base de todo sistema de crenças e de todos os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais e atitudes rituais”. Datas, símbolos e rituais não são frivolidades. A dimensão simbólica penetra a vida social. Jaques Le Goff mostra que se tornar senhor da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominam as sociedades históricas.

Na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, além de seus patronos, só Mascarenhas de Morais, o comandante da Força Expedicionária Brasileira, tem ali o retrato sem ter chefiado a escola. Isso mostra um caminho à República: retirar o 21 de fevereiro do esquecimento que lhe dedica o mundo civil.

A data da vitória de Monte Castelo é um símbolo de união nacional e da luta contra o nazi-fascismo. Eis um feito das armas que se deve lembrar para afirmar a liberdade e a democracia como valores fundamentais. A República não deve esquecê-lo. E não é porque os herdeiros do AI-5 ou os de Stalin podem um dia voltar. É porque, na verdade, eles nunca foram embora.

Fingindo-se de morto, Stalin olha fixo os soldados que retiram seu caixão do Kremlin. A cena abre o poema Os herdeiros de Stalin, de Ievguêni Ievtuchenko. O texto apareceu no Pravda, em 1962, e se tornou símbolo do Degelo, a política de desestalinização de Nikita Kruchev. No Brasil, Haroldo de Campos traduziu assim seus versos finais: “Enquanto neste mundo houver herdeiros de Stalin, para mim,/no mausoléu,/Stalin ainda resiste”.

O poeta tinha razão. Não basta retirar o caixão do mausoléu. Stalin tem herdeiros. A Rússia de Putin retomou o culto ao vozhd, ao líder, e levou seus sonhos imperiais à Ucrânia. Uma nação é também feita de símbolos e heranças. E memória.

Foi para apaziguar os ânimos e desarmar os espíritos que o almirante Mauro César Rodrigues, o brigadeiro Mauro Gandra e o general Zenildo Lucena decidiram, em 1995, acabar com a nota conjunta sobre o 31 de Março de 1964. Desfeita a URSS, o anticomunista como forma de coesão e identidade se enfraquecera. Além disso, a data dividia o Brasil. E as Forças Armadas devem ser fator de união e não de conflito. Não se comemora vitória sobre brasileiros. Caxias ensinara isso ao vencer os farrapos.

Bolsonaro já afirmou que golpe militar de 1964 foi ‘grande dia da liberdade’ Foto: Fábio Motta/Estadão

Jair Bolsonaro escolheu a dedo a data de sua volta ao País. Ele e seus generais retiraram do caixão a comemoração oficial sobre o golpe porque a Nova República se esqueceu dos herdeiros do AI-5. Ela suprimiu a data, mas nada pôs no lugar; não procurou um feito das armas nacionais para opor ao 31 de Março como símbolo da Constituição.

Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, Émile Durkheim diz que “na base de todo sistema de crenças e de todos os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais e atitudes rituais”. Datas, símbolos e rituais não são frivolidades. A dimensão simbólica penetra a vida social. Jaques Le Goff mostra que se tornar senhor da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominam as sociedades históricas.

Na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, além de seus patronos, só Mascarenhas de Morais, o comandante da Força Expedicionária Brasileira, tem ali o retrato sem ter chefiado a escola. Isso mostra um caminho à República: retirar o 21 de fevereiro do esquecimento que lhe dedica o mundo civil.

A data da vitória de Monte Castelo é um símbolo de união nacional e da luta contra o nazi-fascismo. Eis um feito das armas que se deve lembrar para afirmar a liberdade e a democracia como valores fundamentais. A República não deve esquecê-lo. E não é porque os herdeiros do AI-5 ou os de Stalin podem um dia voltar. É porque, na verdade, eles nunca foram embora.

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