Caro leitor,
Em 2018, quando o general Eduardo Villas Bôas fez seus famosos tuítes sobre o julgamento do habeas corpus de Luiz Inácio Lula da Silva, o Alto Comando do Exército tinha outros cinco generais com perfis na rede social. De imediato, logo após a manifestação de Villas Bôas, José Luiz Dias Freitas correu para apoiar o colega: “Mais uma vez o Comandante do Exército expressa as preocupações e anseios dos cidadãos brasileiros que vestem fardas. Estamos juntos, Comandante”.
Pouco depois, foi a vez de Antônio Miotto, comandante militar do Sul, responder a Freitas, a Villas Bôas e a um perfil no Twitter identificado como @BrasilReaça, que, apesar de não existir mais na rede, tem um nome que não permite nenhuma dúvida sobre seu conteúdo. “General Freitas!!! Estamos firmes e leais ao nosso Comandante!! Brasil acima de tudo!!! Aço!!” O entusiasmo de Miotto era proporcional à sua presença no Twitter. Tinha 177 mil seguidores e publicara 26 mil vezes desde que entrara na rede em 2009.
Miotto foi para a reserva em abril de 2020, no começo da pandemia de covid-19. Na cerimônia em que passou o comando ao general Valério Stumpf, Jair Bolsonaro teve o aperto de mão recusado pelo então comandante do Exército, Edson Pujol. O cuidado diante da doença despertou a raiva de Bolsonaro. Um ano depois daquela cena, Pujol seria demitido pelo presidente. Meses antes, Miotto havia se tornado mais uma vítima entre as 670 mil pessoas que a covid matou no Brasil.
Outros generais com Twitter deixaram o serviço ativo. Primeiro foi Luiz Eduardo Ramos, que virou ministro na Esplanada, a nova caserna dos tuiteiros. Sobraram dois: Freitas, que se despediu em 2021, e Paulo Sérgio de Oliveira. Este decidira congelar sua conta ao se tornar comandante do Exército, em março de 2021. Ao ser nomeado ministro da Defesa, ele foi sucedido por Marco Antônio Freire Gomes, o primeiro general a comandar a Força desde 2016 sem ter uma conta na rede social.
Hoje, nenhum integrante do Alto Comando do Exército (ACE) tem perfil pessoal no Twitter. Essa retração tem duas explicações. A primeira foi a portaria no comando de Edson Pujol, que enquadrou o uso das redes sociais pelos militares – houve até general que mudou de nome para permanecer tuitando anonimamente. Na época, os oficiais postavam abertamente manifestações ilegais de caráter político-partidário, quase sempre em apoio a Jair Bolsonaro. A contaminação dos quartéis era evidente.
Uma análise feita nas contas do Twitter de militares seguidas por Villas Bôas e nas destes oficiais encontrou 115 integrantes da ativa que fizeram 3.427 tuítes de caráter político-partidário entre abril de 2018 e abril de 2020. As publicações estavam nos perfis mantidos por 82 integrantes das Forças Armadas, entre os quais 23 oficiais-generais – 19 generais, dois almirantes e dois brigadeiros.
Havia o caso de um coronel do 6.º Batalhão de Infantaria de Selva que fez 603 publicações. Outro coronel, um adido militar na Europa, publicou 309 vezes em apoio ao presidente e a deputados identificados com o bolsonarismo. Até um comandante de CPOR (Centro de preparação de Oficiais da Reserva) se referia aos opositores como “petralhada” e “comunistas” e manifestava apoio a Bolsonaro em sua conta pessoal. Um general muito ativo na rede deixou o comando de uma divisão e foi trabalhar no GSI, com Augusto Heleno.
Foi preciso mais de um ano para todos se enquadrarem nas novas normas. O silenciar da conta do general Paulo Sérgio mostrou que a balbúrdia anterior seria coisa do passado. O Exército preparou ainda uma cartilha para ser distribuída aos conscritos a fim de evitar que seus soldados fossem flagrados usando redes sociais de forma incorreta. A manobra, cujo objetivo era desvincular a Força da imagem do governo, ganhou novo ímpeto com a guerra na Ucrânia, onde o uso de redes sociais demonstrou ser um perigo para militares, por denunciar sua posição, expondo-a aos mísseis inimigos.
Com esses argumentos, a maioria dos generais quer se manter longe da campanha – tanto de Bolsonaro quanto de Lula ou qualquer outro. Ainda mais agora que o maior temor de parte do ACE se dissipou: a volta de Walter Braga Netto à Defesa, caso não fosse ungido vice de Bolsonaro. Com o anúncio feito pelo presidente, o general Paulo Sérgio deve permanecer no cargo. Braga Netto, Eduardo Pazuello e outros são criticados por generais comprometidos com a ideia de um Exército profissional. Há ressentimento na caserna contra os que foram povoar gabinetes no governo, deixando claros nos quartéis.
Os críticos dos generais afirmaram que a Força Terrestre nunca deixou de fazer política e que, na atual fase, apenas volta ao antigo padrão de atuar nos bastidores. Mas em um ano eleitoral não é um dado sem importância o fato de Bolsonaro e os troupiers que o acompanham ficarem falando sozinhos nas redes sem encontrar ressonância pública na cúpula do Exército. É verdade que depois de quase quatro anos de governo, não há muito mais o que obter de Bolsonaro a não ser o desgaste de se associar à sua gestão. Mas também é verdade que a geração que hoje está no comando não é a mesma de Bolsonaro. O Exército não é um ser monolítico, assim como os militares não são uma entidade única.
Enquanto o Alto Comando silencia, o ministro da Defesa tem uma atuação cada vez mais política. As pressões contra a Justiça Eleitoral e a queixa-crime apresentada contra Ciro Gomes (PDT) renovam o ambiente criado em 2018. Aqui se foi além do que aconteceu na Colômbia. Antes do primeiro turno, o esquerdista Gustavo Petro, presidente eleito do país vizinho, lançara acusação semelhante à de Ciro aos chefes do Exército. Recebeu como resposta um tuíte do comandante colombiano, que lhe pediu que encaminhasse a denúncia à Procuradoria em vez de fazer demagogia. Como poderia o Exército querer processar o futuro presidente?
Diante da remota possibilidade de Ciro vencer a eleição, a queixa do ministro cairá no esquecimento. Mas não devia. Muitos dos que apoiam Bolsonaro viram na condenação do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) um exagero. Não se indignavam com as ofensas e ameaças aos ministros do Supremo. Agora querem se indignar quando a acusação irresponsável se volta contra os quartéis. A queixa contra Ciro é uma forma de tentar emparedar a Justiça e mobilizar a defesa da honra militar para colocá-la a serviço de Bolsonaro.
Como não ver na ação do ministro a reedição de uma velha magia? Os generais que assumiram a pasta da Defesa no governo Bolsonaro parecem acreditar que se tornam pessoas diferentes em razão do ritual de nomeação, como os antigos reis taumaturgos da França. Mas, em vez de curar escrofulosos, os que vestem o terno e a gravata ministeriais pensam adquirir poderes sobrenaturais para curar a Nação de suas chagas. Será preciso um Marc Bloch para compreender essa fé nos milagres proporcionados pela investidura no cargo.
A superstição tomou conta de Brasília. Bolsonaro não é o único ali a ter pressentimentos. Toda cidade já vislumbra a primeira derrota de um presidente em busca da reeleição. E o capitão e Braga Netto entreveem a decisão do Alto Comando de não mover um dedo para rasgar a lei e manter um governo acossado pela corrupção na Saúde e por milhares de mortes na pandemia – a ciência acaba de determinar, como mostrou Fernando Reinach, no Estadão, o quanto delas pode ser creditado a Bolsonaro. Não é só o café que esfria no gabinete presidencial; vista do Planalto, a luz das estrelas nos ombros dos generais fica cada vez mais azul.