Eram 17 horas de 21 de junho de 2023 quando os investigadores da Delegacia de Investigações de Entorpecentes (DISE), da Polícia Civil de São Paulo, cercaram um bar da Rua Guimarães Rosa, em Praia Grande. Ali em frente estavam estacionados uma picape S-10 e um Citroën Picasso. Os policiais queriam surpreender o encontro entre Leonardo Rodrigo de Sousa Isídio Oliveira, de 43 anos, e um homem que sabiam se tratar apenas do “Químico do PCC”, o Primeiro Comando da Capital. Logo que entraram no lugar, encontraram dois homens sentados ao redor de uma mesa. Em cima dela estava a chave do Citroën.
Um dos investigadores perguntou quem era o dono do bar. Os dois homens permaneceram em silêncio. Durante a revista do carro, os tiras encontraram um dispositivo secreto no painel que abria um compartimento onde estavam escondidos dez tijolos de maconha, cerca de 8,5 quilos da droga. No imóvel – uma casa –, acharam mais oito quilos de haxixe, além de liquidificador industrial, telas, peneiras, serras e outros equipamentos que mostravam que ali funcionava um laboratório, conforme as informações que a DISE havia recebido dias antes, quando preparava a operação.
Era ali que o PCC confeccionava uma variante de haxixe, o Dry Marroquino, droga popular na Turquia, cuja grama chega a custar R$ 60. Um dos policiais começou a conversar com o homem suspeito de ser o Químico do PCC. Garip Uç, de 38 anos, é um químico de nacionalidade turca que havia solicitado refúgio no Brasil em 2020. Os investigadores ainda não sabiam, mas diante deles estava um homem que interessava à Polícia Federal (PF) e à Interpol.
Quando souberam disso, tiveram de reforçar a segurança de sua custódia. O sobrenome Uç era conhecido não só da Drug Enforcement Administration, (DEA) a agência antidroga americana, mas também das principais agências de combate ao terrorismo no mundo. Tudo porque o irmão de Garip, Eray Uç, é acusado de participar de uma rede internacional de traficantes de drogas que entregava ao Hezbollah parte de seus lucros em troca de proteção para atuar no Oriente Médio.
Não só: durante as investigações surgiu a suspeita de que, na verdade, o preso em São Paulo seria o próprio Eray, que teria usado o documento do irmão para circular no Brasil. Eray fugiu da prisão no Paraguai em 2017, onde estava encarcerado sob a acusação de participar da rede que seria liderada por Ali Issa Chamas, também detido no Paraguai e extraditado para os Estados Unidos. Em audiência de 17 de abril de 2018, do Subcomitê de Contraterrorismo e Inteligência da Câmara dos Deputados dos EUA, Chamas e Eray foram citados em razão dos pagamentos ao Hezbollah, no Líbano, que usaria o dinheiro para comprar armas.
Para o promotor de Justiça responsável pela acusação, Hélio Junqueira de Carvalho Neto, porém, não existia nenhum elemento nos autos indicando que a identidade de Garip estivesse incorreta. “Ademais, o acusado foi pessoalmente citado, constituiu advogado e participou da audiência se identificando como Garip”, escreveu. O juiz Vinícius de Toledo Piza Peluso, da 1.ª Vara Criminal de São Vicente, condenou os dois réus no dia 31 de outubro pelo tráfico de drogas: o químico do PCC pegou sete anos de cadeia e Oliveira, 6 anos e 6 meses de reclusão – a defesa de ambos recorreu da sentença.
Três toneladas aprendidas no meio do Oceano Atlântico
Não parecia necessário à Justiça perder tempo com a polêmica sobre o nome do preso, se era Eray ou Garip. O que importava era saber como ele se identificava e que o homem – fosse qual fosse o seu nome – estava comprovadamente envolvido no tráfico de drogas. Sua presença na Praia Grande foi logo vista por investigadores como um possível indício de que a logística do crime organizado que opera entre o Brasil, a Europa, a África e a Ásia incorporou um novo negócio: a importação de haxixe do Marrocos.
Barcos usados pelo PCC e por seus parceiros da Máfia do Bálcãs e da ’Ndrangheta, a máfia da Calábria, começaram a trazer a droga para o País depois de deixar carregamento de cocaína na África ou na Europa. Trata-se de solução para diminuir os custos de operação e aumentar os lucros: o barco que vai com cocaína volta com haxixe em vez de retornar vazio para o Brasil.
Essa solução logística foi surpreendida no dia 10 de novembro pela Marinha brasileira e por agentes da Polícia Federal embarcados no navio-patrulha Guaratuba. Eles interceptaram o veleiro alemão Kiel/Thiassi, a 363 quilômetros da costa de Salvador, na Bahia. A embarcação trazia no porão cerca de 3 toneladas de haxixe do Marrocos para o Brasil.
Meses antes, os agentes federais envolvidos na Operação Dontraz, que causou um prejuízo bilionário a traficante ligados ao PCC e à Máfia dos Bálcãs, interceptaram conversas entre um dos detidos na ação – Lino Barbosa de Souza Junior, o Gordão, que atuaria na logística do tráfico, a partir da comunidade Pouca Farinha, no Guarujá, em São Paulo – com um bandido que se identificou como Aurélio Casillas, alusão ao personagem de uma série de TV baseada na vida do narcotraficante mexicano Amado Carrillo Fuentes, El Señor de los Cielos.
Nas mensagens da conversa, Gordão e seu interlocutor tratam do envio de haxixe do Marrocos para o Brasil. Ao ser preso, Garip teria confessado informalmente aos policiais seu papel como químico do PCC para produzir o Dry Marroquino – depois, na delegacia, manteve-se em silêncio, mesma decisão foi tomada pela maioria dos presos durante a Operação Dontraz, realizada pela FICCO, a Força Integrada de Combate ao Crime Organizada, recém-criada na Superintendência da PF de São Paulo.
Já Oliveira, contou ao ser interrogado, que estava no bar apenas para carregar seu celular, mas confirmou ter ouvido quando “o gringo assumiu que era o dono da droga”. Negou, no entanto, conhecer Garip. O caso – como não podia deixar de ser – também acendeu um novo alerta nas agências de inteligência de diversos países, ainda mais depois da Operação Trapiche prender três acusados de terem sido recrutados pelo Hezbollah para efetuar ataques contra alvos judaicos no Brasil. Um mês antes, a general Laura Richardson, do Comando Sul das Forças Armadas dos EUA, havia alertado para as “intenções malignas” do grupo libanês na América do Sul, principalmente na região da tríplice fronteira.
“Agências de Inteligência do mundo estão de olhos atentos no nexo crime e terror da tríplice fronteira, protagonizado por Hezbollah, PCC e outros atores”, afirmou o major Frederico Salóes, instrutor de guerra irregular da Escola de Comando e Estado do Exército (Eceme), durante evento do Observatório Militar da Praia Vermelha. Salóes destacou ainda o papel da inteligência junto com as forças de operações especiais nas ações proativas. “Comando de Operações Especiais do Exército e a Polícia Federal e as polícias militares têm observado esse fenômeno com maior clareza, levando em consideração a convergência e hibridização criminal.”
Documentos italianos e a ligação do Hezbollah com o PCC
Exemplo dessa atenção das agências descrita por Salóes são documentos recentes consultados pela coluna. Eles tratam de grupos terroristas e organizações criminosas na fronteira do Brasil com o Paraguai e com a Argentina. Em maio, a Diretoria Distrital Antimáfia de Reggio Calábria, na Itália, divulgou o primeiro. Ele trata da Operação Eureka, que atingiu a ‘Ndrangheta, a mais potente máfia italiana da atualidade, levando à decretação da prisão de 108 acusados de compor diversas ndrinas – como são chamadas as famílias dessa organização calabresa –, como a Nirta, de San Luca. A ação foi feita em parceria com autoridades da Bélgica, da Alemanha, de Portugal e do Brasil e mirou crimes de tráfico de drogas e de lavagem de dinheiro, que movimentou mais de € 2 bilhões.
Foi no contexto dessa operação que os procuradores conseguiram interceptar comunicações do mafioso Rocco Morabito, o U’ Tamunga, apelido que recebeu quando era dono de um carro DKW Munga. Líder da ndrina Morabito e conhecido como il re calabrese della coca, ele foi capturado no Brasil pela PF em companhia de Vicenzo Pasquino, em 2021. Estavam hospedados no flat Ecco Summer, na praia de Tambaú, em João Pessoa (PB), onde Morabito, de 56 anos, costumava dar gorjetas de R$ 100 para as arrumadeiras.
Condenado a 103 de prisão na Itália, o mafioso estava foragido desde 1995. Traficava armas e drogas e trouxe do Paquistão um contêiner com fuzis e outras armas para o PCC em troca de um carregamento de cocaína enviado pelos brasileiros ao porto de Gioia Tauro, na Calábria. Os procuradores revelaram que as investigações de então foram feitas em coordenação com Direção Nacional Antimáfia e Antiterrorismo. O Gaeco, do Ministério Público de São Paulo, requisitou cópia dessa apuração à Itália.
Meses depois, a Diretoria de Investigação Antimáfia (DIA), do Ministério do Interior da Itália, divulgou relatório no qual afirma que as investigações da Operação Eureka relacionaram o PCC entre as principais organizações criminosas presentes na região da tríplice fronteira e no Uruguai. Diz o relatório: “O PCC é a maior organização criminosa da área de São Paulo e da tríplice fronteira e é um importante ator de referência no âmbito do florescente mercado de estupefacientes, também graças às suas relações com o Hezbollah e a ‘Ndrangheta.”
O relatório prossegue tratando do “clã Barakat”, cuja rede é composta de empresários que se vangloriam de suas atividades comerciais em Ciudad del Este, no Paraguai, é “suspeita de conduzir numerosas atividades criminosas, entre as quais a lavagem de dinheiro, extorsões e o narcotráfico”. Acusado de liderar o grupo, Assad Ahmad Barakat, foi preso pela PF em 2018, em Foz do Iguaçu, após ter cumprido pena no Paraguai de 2002 a 2008 por crimes financeiros, e foi extraditado para o país vizinho. Ficou detido ali até 2021, quando foi posto em liberdade e expulso para o Brasil, onde vive sua família.
Desde 2004, os Departamentos de Justiça e do Tesouro dos EUA o acusam de manter laços estreitos com a liderança do Hezbollah e trabalhar de forma próxima com outros grupos islâmicos. Barakat e sua família sempre negaram as acusações. Mas também para os italianos, entre as atividades ilícitas do “clã Barakat estaria o financiamento do Hezbollah”. As autoridades do país europeu acreditam que a aliança entre essas diversas organizações na região constituiria uma “ameaça global que precisa ser combatida adequadamente, com cooperação policial e judiciária global”.
Eis o cenário traçado pelas forças de segurança. Há quem veja nele exageros ou apenas cinismo na ação dos EUA, de usar a luta contra o terrorismo e as drogas para reforçar os desígnios de sua diplomacia na região e no Oriente Médio. Há ainda quem lembre das operações para o financiamento da guerrilha dos Contras, na Nicarágua, reveladas no escândalo Irã-Contras. Realistas como o cientista político Hans Morgenthau sempre reconheceram que as políticas doméstica e internacional nada mais são do que duas manifestações diferentes do mesmo fenômeno: a luta pelo poder.
Diziam que as influências da moral e da ética eram inadequadas para julgar o comportamento de um Estado, ainda que pudessem servir de instrumento para justificar e legitimar as suas ações. Retomar essa discussão não se trata de confundir cinismo – ou realismo – com sabedoria, conforme a crítica feita por Ben Rhodes a Henry Kissinger. Mas de explicar – e lembrar – que, independentemente dos movimentos americanos, é preciso admitir que entre os interesses do Brasil em suas relações internacionais não está o de ser conhecido como santuário de mafiosos e de terroristas.