As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Candidatos evitam debater Defesa e o papel dos militares no País em caso de derrota de Bolsonaro


Entendimento das relações institucionais e separação delas dos interesses e comportamentos pessoais é o caminho para reconstruir as relações entre civis e militares em um futuro governo

Por Marcelo Godoy

Caro leitor,

em 9 de agosto de 2018, um artigo escrito pelo general Alberto Cardoso foi publicado no blog oficial do Exército brasileiro, o eblog. Seu título era Ensinamentos da liderança militar. Ali, o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tratava das diferenças entre a “chefia com liderança nas Forças Armadas (FA) e a liderança na política”.

O general Alberto Mendes Cardoso em palestra na FAAP, em São Paulo Foto: AGLIBERTO LIMA
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“O exercício da liderança política é totalmente diverso do exercício da chefia militar com liderança. Nesta, o líder influencia as vontades dos chefiados para, levando-se em conta o comportamento individual e coletivo deles, obter do grupo a execução que leve aos resultados desejados, ao passo que, na política, o líder influencia as vontades dos eleitores para que o escolham seu delegado, a fim de que ele execute o que lhes prometeu.”

O general afirmava que “o espírito de sobrevivência induz os políticos a atitudes e comportamentos pragmáticos – nem sempre éticos – para garantir os votos em áreas geográficas muito amplas”. Para ele, esse pragmatismo levava à “acumulação de recursos financeiros para a próxima campanha e contamina o exercício dos encargos com a predominância dos interesses eleitorais pessoais”.

Cardoso dizia que “as circunstâncias negativas pioram quando, além das motivações individuais, também existe um projeto partidário de manutenção do poder a qualquer custo, “fazendo o diabo”, inclusive em detrimento da ética e das práticas moralmente boas”. “E, com esse quadro, lá vêm os vergonhosos mensalões e petrolões.” Naquele momento, a campanha eleitoral começava a delinear um enfrentamento no segundo turno entre Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro, então no PSL.

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O artigo concluía que cabe “ao político honesto e genuinamente democrata sobrepairar aos costumes aéticos e às práticas amorais, impondo-se um perfil de líder e de caráter, que o imunize contra os desvios”. Quase um mês depois, Cardoso publicaria outro texto no mesmo blog, no qual estabelecia 18 características desejáveis em um líder político. Entre elas estavam:

“Compromisso com a democracia representativa e a Constituição Federal; a compreensão da natureza permanente do Estado e temporária dos governos; a compreensão da imperiosidade da segregação de interesses, partidários ou pessoais, dos assuntos de Estado e a moral ilibada, probidade, inteireza de caráter, competência e perseverança para aplicação dos princípios da administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”

O então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, quando anunciou que a campanha de vacinação contra a covid-19 devia começar "em meados de fevereiro". Foto: Gabriela Biló/ Estadão
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Esse era o retrato do que os militares esperavam de um futuro presidente. Entre os generais do Alto Comando do Exército, essa expectativa permanece a mesma. A diferença é que as Forças Armadas chegam ao fim do mandato de Jair Bolsonaro com sua imagem institucional associada ao governo em razão não só das afinidades ideológicas da maioria de seus integrantes com o atual mandatário, mas também pela ocupação de cargos de natureza civil por oficiais nas mais distintas áreas do governo, com resultados como os da gestão de Eduardo Pazuello, na Saúde, ou do general Braga Netto, na Defesa.

Pazuello e Braga representaram a politização das Forças Armadas. Ambos foram para o governo quando eram generais da ativa. E a passagem deles para a reserva só se deu após a imagem da Força Terrestre já estar comprometida com a do governo. Enfraqueceu-se a institucionalidade que erguia um muro entre a caserna e o palácio em nome da profissionalização, do apartidarismo e da isenção. E se estabeleceu a República dos Dois Pesos e Duas Medidas, afetando os atores de todos os Poderes da República.

Na Marinha, essa prática não vê mal algum em fazer desfilar por Brasília tanques dos fuzileiros navais no dia da votação da PEC do Voto Impresso pelo Congresso mas enxerga infração disciplinar na entrevista do contra-almirante Antonio Alberto Marinho Nigro à Globonews, impondo-lhe processo administrativo em razão de críticas à partidarização das Forças Armadas. Fazem com Nigro o que não foi feito com oficiais bolsonaristas que atuam politicamente em redes sociais. Pior. Mas, como integrante da reserva, o contra-almirante nem mesmo está submetido às mesmas regras que vetam à ativa as manifestações críticas ao governo.

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A uma semana do voto, essa situação lança um desafio, evitado por todos os candidatos à Presidência na campanha eleitoral: como lidar com as Forças Armadas em caso de derrota de Jair Bolsonaro? A leitura dos artigos do general Cardoso mostra que tipo de liderança os militares esperam dos civis. Mas que tipo de liderança militar os civis esperam dos generais? O ex-presidente da Colômbia Juan Manuel Santos, que foi ministro da Defesa em seu país, deu ao jornal O Globo, uma pista ante o silêncio dos candidatos ao Executivo:

“Fui ministro da Defesa e tive boas relações com as Forças Armadas brasileiras, são muito profissionais. Mas não estou nem um pouco de acordo com a politização das Forças Armadas ou a utilização dos militares ativos na política. Isso causa danos à democracia e às próprias Forças Armadas. Espero que, no novo governo, as Forças Armadas cumpram sua missão. Elas não são treinadas para ocupar cargos políticos.”

Setores de partidos de centro e da esquerda brasileira defendem que o futuro presidente enfrente questões como a imposição de quarentena para militares, magistrados e procuradores e policiais que queiram entrar para a política. Também querem um civil no Ministério da Defesa, como forma de recuperar o princípio do controle civil objetivo, defendido por Samuel Huntington, nas relações entre civis e militares. Mas como fazer isso se poucos são os políticos que conseguem diferenciar o Ministério da Defesa das Forças Armadas?

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Candidato do PSDB à presidência em 2018, Geraldo Alckmin defendeu a criação de uma Guarda Nacional permanente Foto: Dida Sampaio/Estadão

Há muita desconfiança entre formuladores de política de Defesa ligados aos partidos políticos e os militares. Para um general, o “problema não é de leitura; é de entendimento mínimo das relações institucionais e de separá-las de interesses e ou comportamentos pessoais”. É bem verdade que esse diagnóstico se aplica também ao governo Bolsonaro. O problema é que, quanto mais leem uns sobre os outros, maior parece ser o fosso que separa os civis e os generais. A solução está na recuperação da institucionalidade.

É preciso saber quais os planos dos candidatos para a Defesa diante de ameaças extrarregionais e qual o papel constitucional que enxergam para as Forças Armadas – Geraldo Alckmin, então candidato do PSDB, em 2018, defendia, por exemplo, a criação de uma Guarda Nacional, para retirar do Exército o papel de bombeiro da Segurança Pública. Enfim, para saber que tipo de liderança militar os civis devem procurar, é preciso saber que modelo de Forças Armadas se deseja, diante da necessidade de combinar modernização e limitação orçamentária. Só a clareza de objetivos pode levar à produção de consensos para evitar as tentações da força e da corrupção.

Caro leitor,

em 9 de agosto de 2018, um artigo escrito pelo general Alberto Cardoso foi publicado no blog oficial do Exército brasileiro, o eblog. Seu título era Ensinamentos da liderança militar. Ali, o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tratava das diferenças entre a “chefia com liderança nas Forças Armadas (FA) e a liderança na política”.

O general Alberto Mendes Cardoso em palestra na FAAP, em São Paulo Foto: AGLIBERTO LIMA

“O exercício da liderança política é totalmente diverso do exercício da chefia militar com liderança. Nesta, o líder influencia as vontades dos chefiados para, levando-se em conta o comportamento individual e coletivo deles, obter do grupo a execução que leve aos resultados desejados, ao passo que, na política, o líder influencia as vontades dos eleitores para que o escolham seu delegado, a fim de que ele execute o que lhes prometeu.”

O general afirmava que “o espírito de sobrevivência induz os políticos a atitudes e comportamentos pragmáticos – nem sempre éticos – para garantir os votos em áreas geográficas muito amplas”. Para ele, esse pragmatismo levava à “acumulação de recursos financeiros para a próxima campanha e contamina o exercício dos encargos com a predominância dos interesses eleitorais pessoais”.

Cardoso dizia que “as circunstâncias negativas pioram quando, além das motivações individuais, também existe um projeto partidário de manutenção do poder a qualquer custo, “fazendo o diabo”, inclusive em detrimento da ética e das práticas moralmente boas”. “E, com esse quadro, lá vêm os vergonhosos mensalões e petrolões.” Naquele momento, a campanha eleitoral começava a delinear um enfrentamento no segundo turno entre Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro, então no PSL.

O artigo concluía que cabe “ao político honesto e genuinamente democrata sobrepairar aos costumes aéticos e às práticas amorais, impondo-se um perfil de líder e de caráter, que o imunize contra os desvios”. Quase um mês depois, Cardoso publicaria outro texto no mesmo blog, no qual estabelecia 18 características desejáveis em um líder político. Entre elas estavam:

“Compromisso com a democracia representativa e a Constituição Federal; a compreensão da natureza permanente do Estado e temporária dos governos; a compreensão da imperiosidade da segregação de interesses, partidários ou pessoais, dos assuntos de Estado e a moral ilibada, probidade, inteireza de caráter, competência e perseverança para aplicação dos princípios da administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”

O então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, quando anunciou que a campanha de vacinação contra a covid-19 devia começar "em meados de fevereiro". Foto: Gabriela Biló/ Estadão

Esse era o retrato do que os militares esperavam de um futuro presidente. Entre os generais do Alto Comando do Exército, essa expectativa permanece a mesma. A diferença é que as Forças Armadas chegam ao fim do mandato de Jair Bolsonaro com sua imagem institucional associada ao governo em razão não só das afinidades ideológicas da maioria de seus integrantes com o atual mandatário, mas também pela ocupação de cargos de natureza civil por oficiais nas mais distintas áreas do governo, com resultados como os da gestão de Eduardo Pazuello, na Saúde, ou do general Braga Netto, na Defesa.

Pazuello e Braga representaram a politização das Forças Armadas. Ambos foram para o governo quando eram generais da ativa. E a passagem deles para a reserva só se deu após a imagem da Força Terrestre já estar comprometida com a do governo. Enfraqueceu-se a institucionalidade que erguia um muro entre a caserna e o palácio em nome da profissionalização, do apartidarismo e da isenção. E se estabeleceu a República dos Dois Pesos e Duas Medidas, afetando os atores de todos os Poderes da República.

Na Marinha, essa prática não vê mal algum em fazer desfilar por Brasília tanques dos fuzileiros navais no dia da votação da PEC do Voto Impresso pelo Congresso mas enxerga infração disciplinar na entrevista do contra-almirante Antonio Alberto Marinho Nigro à Globonews, impondo-lhe processo administrativo em razão de críticas à partidarização das Forças Armadas. Fazem com Nigro o que não foi feito com oficiais bolsonaristas que atuam politicamente em redes sociais. Pior. Mas, como integrante da reserva, o contra-almirante nem mesmo está submetido às mesmas regras que vetam à ativa as manifestações críticas ao governo.

A uma semana do voto, essa situação lança um desafio, evitado por todos os candidatos à Presidência na campanha eleitoral: como lidar com as Forças Armadas em caso de derrota de Jair Bolsonaro? A leitura dos artigos do general Cardoso mostra que tipo de liderança os militares esperam dos civis. Mas que tipo de liderança militar os civis esperam dos generais? O ex-presidente da Colômbia Juan Manuel Santos, que foi ministro da Defesa em seu país, deu ao jornal O Globo, uma pista ante o silêncio dos candidatos ao Executivo:

“Fui ministro da Defesa e tive boas relações com as Forças Armadas brasileiras, são muito profissionais. Mas não estou nem um pouco de acordo com a politização das Forças Armadas ou a utilização dos militares ativos na política. Isso causa danos à democracia e às próprias Forças Armadas. Espero que, no novo governo, as Forças Armadas cumpram sua missão. Elas não são treinadas para ocupar cargos políticos.”

Setores de partidos de centro e da esquerda brasileira defendem que o futuro presidente enfrente questões como a imposição de quarentena para militares, magistrados e procuradores e policiais que queiram entrar para a política. Também querem um civil no Ministério da Defesa, como forma de recuperar o princípio do controle civil objetivo, defendido por Samuel Huntington, nas relações entre civis e militares. Mas como fazer isso se poucos são os políticos que conseguem diferenciar o Ministério da Defesa das Forças Armadas?

Candidato do PSDB à presidência em 2018, Geraldo Alckmin defendeu a criação de uma Guarda Nacional permanente Foto: Dida Sampaio/Estadão

Há muita desconfiança entre formuladores de política de Defesa ligados aos partidos políticos e os militares. Para um general, o “problema não é de leitura; é de entendimento mínimo das relações institucionais e de separá-las de interesses e ou comportamentos pessoais”. É bem verdade que esse diagnóstico se aplica também ao governo Bolsonaro. O problema é que, quanto mais leem uns sobre os outros, maior parece ser o fosso que separa os civis e os generais. A solução está na recuperação da institucionalidade.

É preciso saber quais os planos dos candidatos para a Defesa diante de ameaças extrarregionais e qual o papel constitucional que enxergam para as Forças Armadas – Geraldo Alckmin, então candidato do PSDB, em 2018, defendia, por exemplo, a criação de uma Guarda Nacional, para retirar do Exército o papel de bombeiro da Segurança Pública. Enfim, para saber que tipo de liderança militar os civis devem procurar, é preciso saber que modelo de Forças Armadas se deseja, diante da necessidade de combinar modernização e limitação orçamentária. Só a clareza de objetivos pode levar à produção de consensos para evitar as tentações da força e da corrupção.

Caro leitor,

em 9 de agosto de 2018, um artigo escrito pelo general Alberto Cardoso foi publicado no blog oficial do Exército brasileiro, o eblog. Seu título era Ensinamentos da liderança militar. Ali, o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tratava das diferenças entre a “chefia com liderança nas Forças Armadas (FA) e a liderança na política”.

O general Alberto Mendes Cardoso em palestra na FAAP, em São Paulo Foto: AGLIBERTO LIMA

“O exercício da liderança política é totalmente diverso do exercício da chefia militar com liderança. Nesta, o líder influencia as vontades dos chefiados para, levando-se em conta o comportamento individual e coletivo deles, obter do grupo a execução que leve aos resultados desejados, ao passo que, na política, o líder influencia as vontades dos eleitores para que o escolham seu delegado, a fim de que ele execute o que lhes prometeu.”

O general afirmava que “o espírito de sobrevivência induz os políticos a atitudes e comportamentos pragmáticos – nem sempre éticos – para garantir os votos em áreas geográficas muito amplas”. Para ele, esse pragmatismo levava à “acumulação de recursos financeiros para a próxima campanha e contamina o exercício dos encargos com a predominância dos interesses eleitorais pessoais”.

Cardoso dizia que “as circunstâncias negativas pioram quando, além das motivações individuais, também existe um projeto partidário de manutenção do poder a qualquer custo, “fazendo o diabo”, inclusive em detrimento da ética e das práticas moralmente boas”. “E, com esse quadro, lá vêm os vergonhosos mensalões e petrolões.” Naquele momento, a campanha eleitoral começava a delinear um enfrentamento no segundo turno entre Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro, então no PSL.

O artigo concluía que cabe “ao político honesto e genuinamente democrata sobrepairar aos costumes aéticos e às práticas amorais, impondo-se um perfil de líder e de caráter, que o imunize contra os desvios”. Quase um mês depois, Cardoso publicaria outro texto no mesmo blog, no qual estabelecia 18 características desejáveis em um líder político. Entre elas estavam:

“Compromisso com a democracia representativa e a Constituição Federal; a compreensão da natureza permanente do Estado e temporária dos governos; a compreensão da imperiosidade da segregação de interesses, partidários ou pessoais, dos assuntos de Estado e a moral ilibada, probidade, inteireza de caráter, competência e perseverança para aplicação dos princípios da administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”

O então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, quando anunciou que a campanha de vacinação contra a covid-19 devia começar "em meados de fevereiro". Foto: Gabriela Biló/ Estadão

Esse era o retrato do que os militares esperavam de um futuro presidente. Entre os generais do Alto Comando do Exército, essa expectativa permanece a mesma. A diferença é que as Forças Armadas chegam ao fim do mandato de Jair Bolsonaro com sua imagem institucional associada ao governo em razão não só das afinidades ideológicas da maioria de seus integrantes com o atual mandatário, mas também pela ocupação de cargos de natureza civil por oficiais nas mais distintas áreas do governo, com resultados como os da gestão de Eduardo Pazuello, na Saúde, ou do general Braga Netto, na Defesa.

Pazuello e Braga representaram a politização das Forças Armadas. Ambos foram para o governo quando eram generais da ativa. E a passagem deles para a reserva só se deu após a imagem da Força Terrestre já estar comprometida com a do governo. Enfraqueceu-se a institucionalidade que erguia um muro entre a caserna e o palácio em nome da profissionalização, do apartidarismo e da isenção. E se estabeleceu a República dos Dois Pesos e Duas Medidas, afetando os atores de todos os Poderes da República.

Na Marinha, essa prática não vê mal algum em fazer desfilar por Brasília tanques dos fuzileiros navais no dia da votação da PEC do Voto Impresso pelo Congresso mas enxerga infração disciplinar na entrevista do contra-almirante Antonio Alberto Marinho Nigro à Globonews, impondo-lhe processo administrativo em razão de críticas à partidarização das Forças Armadas. Fazem com Nigro o que não foi feito com oficiais bolsonaristas que atuam politicamente em redes sociais. Pior. Mas, como integrante da reserva, o contra-almirante nem mesmo está submetido às mesmas regras que vetam à ativa as manifestações críticas ao governo.

A uma semana do voto, essa situação lança um desafio, evitado por todos os candidatos à Presidência na campanha eleitoral: como lidar com as Forças Armadas em caso de derrota de Jair Bolsonaro? A leitura dos artigos do general Cardoso mostra que tipo de liderança os militares esperam dos civis. Mas que tipo de liderança militar os civis esperam dos generais? O ex-presidente da Colômbia Juan Manuel Santos, que foi ministro da Defesa em seu país, deu ao jornal O Globo, uma pista ante o silêncio dos candidatos ao Executivo:

“Fui ministro da Defesa e tive boas relações com as Forças Armadas brasileiras, são muito profissionais. Mas não estou nem um pouco de acordo com a politização das Forças Armadas ou a utilização dos militares ativos na política. Isso causa danos à democracia e às próprias Forças Armadas. Espero que, no novo governo, as Forças Armadas cumpram sua missão. Elas não são treinadas para ocupar cargos políticos.”

Setores de partidos de centro e da esquerda brasileira defendem que o futuro presidente enfrente questões como a imposição de quarentena para militares, magistrados e procuradores e policiais que queiram entrar para a política. Também querem um civil no Ministério da Defesa, como forma de recuperar o princípio do controle civil objetivo, defendido por Samuel Huntington, nas relações entre civis e militares. Mas como fazer isso se poucos são os políticos que conseguem diferenciar o Ministério da Defesa das Forças Armadas?

Candidato do PSDB à presidência em 2018, Geraldo Alckmin defendeu a criação de uma Guarda Nacional permanente Foto: Dida Sampaio/Estadão

Há muita desconfiança entre formuladores de política de Defesa ligados aos partidos políticos e os militares. Para um general, o “problema não é de leitura; é de entendimento mínimo das relações institucionais e de separá-las de interesses e ou comportamentos pessoais”. É bem verdade que esse diagnóstico se aplica também ao governo Bolsonaro. O problema é que, quanto mais leem uns sobre os outros, maior parece ser o fosso que separa os civis e os generais. A solução está na recuperação da institucionalidade.

É preciso saber quais os planos dos candidatos para a Defesa diante de ameaças extrarregionais e qual o papel constitucional que enxergam para as Forças Armadas – Geraldo Alckmin, então candidato do PSDB, em 2018, defendia, por exemplo, a criação de uma Guarda Nacional, para retirar do Exército o papel de bombeiro da Segurança Pública. Enfim, para saber que tipo de liderança militar os civis devem procurar, é preciso saber que modelo de Forças Armadas se deseja, diante da necessidade de combinar modernização e limitação orçamentária. Só a clareza de objetivos pode levar à produção de consensos para evitar as tentações da força e da corrupção.

Caro leitor,

em 9 de agosto de 2018, um artigo escrito pelo general Alberto Cardoso foi publicado no blog oficial do Exército brasileiro, o eblog. Seu título era Ensinamentos da liderança militar. Ali, o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tratava das diferenças entre a “chefia com liderança nas Forças Armadas (FA) e a liderança na política”.

O general Alberto Mendes Cardoso em palestra na FAAP, em São Paulo Foto: AGLIBERTO LIMA

“O exercício da liderança política é totalmente diverso do exercício da chefia militar com liderança. Nesta, o líder influencia as vontades dos chefiados para, levando-se em conta o comportamento individual e coletivo deles, obter do grupo a execução que leve aos resultados desejados, ao passo que, na política, o líder influencia as vontades dos eleitores para que o escolham seu delegado, a fim de que ele execute o que lhes prometeu.”

O general afirmava que “o espírito de sobrevivência induz os políticos a atitudes e comportamentos pragmáticos – nem sempre éticos – para garantir os votos em áreas geográficas muito amplas”. Para ele, esse pragmatismo levava à “acumulação de recursos financeiros para a próxima campanha e contamina o exercício dos encargos com a predominância dos interesses eleitorais pessoais”.

Cardoso dizia que “as circunstâncias negativas pioram quando, além das motivações individuais, também existe um projeto partidário de manutenção do poder a qualquer custo, “fazendo o diabo”, inclusive em detrimento da ética e das práticas moralmente boas”. “E, com esse quadro, lá vêm os vergonhosos mensalões e petrolões.” Naquele momento, a campanha eleitoral começava a delinear um enfrentamento no segundo turno entre Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro, então no PSL.

O artigo concluía que cabe “ao político honesto e genuinamente democrata sobrepairar aos costumes aéticos e às práticas amorais, impondo-se um perfil de líder e de caráter, que o imunize contra os desvios”. Quase um mês depois, Cardoso publicaria outro texto no mesmo blog, no qual estabelecia 18 características desejáveis em um líder político. Entre elas estavam:

“Compromisso com a democracia representativa e a Constituição Federal; a compreensão da natureza permanente do Estado e temporária dos governos; a compreensão da imperiosidade da segregação de interesses, partidários ou pessoais, dos assuntos de Estado e a moral ilibada, probidade, inteireza de caráter, competência e perseverança para aplicação dos princípios da administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”

O então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, quando anunciou que a campanha de vacinação contra a covid-19 devia começar "em meados de fevereiro". Foto: Gabriela Biló/ Estadão

Esse era o retrato do que os militares esperavam de um futuro presidente. Entre os generais do Alto Comando do Exército, essa expectativa permanece a mesma. A diferença é que as Forças Armadas chegam ao fim do mandato de Jair Bolsonaro com sua imagem institucional associada ao governo em razão não só das afinidades ideológicas da maioria de seus integrantes com o atual mandatário, mas também pela ocupação de cargos de natureza civil por oficiais nas mais distintas áreas do governo, com resultados como os da gestão de Eduardo Pazuello, na Saúde, ou do general Braga Netto, na Defesa.

Pazuello e Braga representaram a politização das Forças Armadas. Ambos foram para o governo quando eram generais da ativa. E a passagem deles para a reserva só se deu após a imagem da Força Terrestre já estar comprometida com a do governo. Enfraqueceu-se a institucionalidade que erguia um muro entre a caserna e o palácio em nome da profissionalização, do apartidarismo e da isenção. E se estabeleceu a República dos Dois Pesos e Duas Medidas, afetando os atores de todos os Poderes da República.

Na Marinha, essa prática não vê mal algum em fazer desfilar por Brasília tanques dos fuzileiros navais no dia da votação da PEC do Voto Impresso pelo Congresso mas enxerga infração disciplinar na entrevista do contra-almirante Antonio Alberto Marinho Nigro à Globonews, impondo-lhe processo administrativo em razão de críticas à partidarização das Forças Armadas. Fazem com Nigro o que não foi feito com oficiais bolsonaristas que atuam politicamente em redes sociais. Pior. Mas, como integrante da reserva, o contra-almirante nem mesmo está submetido às mesmas regras que vetam à ativa as manifestações críticas ao governo.

A uma semana do voto, essa situação lança um desafio, evitado por todos os candidatos à Presidência na campanha eleitoral: como lidar com as Forças Armadas em caso de derrota de Jair Bolsonaro? A leitura dos artigos do general Cardoso mostra que tipo de liderança os militares esperam dos civis. Mas que tipo de liderança militar os civis esperam dos generais? O ex-presidente da Colômbia Juan Manuel Santos, que foi ministro da Defesa em seu país, deu ao jornal O Globo, uma pista ante o silêncio dos candidatos ao Executivo:

“Fui ministro da Defesa e tive boas relações com as Forças Armadas brasileiras, são muito profissionais. Mas não estou nem um pouco de acordo com a politização das Forças Armadas ou a utilização dos militares ativos na política. Isso causa danos à democracia e às próprias Forças Armadas. Espero que, no novo governo, as Forças Armadas cumpram sua missão. Elas não são treinadas para ocupar cargos políticos.”

Setores de partidos de centro e da esquerda brasileira defendem que o futuro presidente enfrente questões como a imposição de quarentena para militares, magistrados e procuradores e policiais que queiram entrar para a política. Também querem um civil no Ministério da Defesa, como forma de recuperar o princípio do controle civil objetivo, defendido por Samuel Huntington, nas relações entre civis e militares. Mas como fazer isso se poucos são os políticos que conseguem diferenciar o Ministério da Defesa das Forças Armadas?

Candidato do PSDB à presidência em 2018, Geraldo Alckmin defendeu a criação de uma Guarda Nacional permanente Foto: Dida Sampaio/Estadão

Há muita desconfiança entre formuladores de política de Defesa ligados aos partidos políticos e os militares. Para um general, o “problema não é de leitura; é de entendimento mínimo das relações institucionais e de separá-las de interesses e ou comportamentos pessoais”. É bem verdade que esse diagnóstico se aplica também ao governo Bolsonaro. O problema é que, quanto mais leem uns sobre os outros, maior parece ser o fosso que separa os civis e os generais. A solução está na recuperação da institucionalidade.

É preciso saber quais os planos dos candidatos para a Defesa diante de ameaças extrarregionais e qual o papel constitucional que enxergam para as Forças Armadas – Geraldo Alckmin, então candidato do PSDB, em 2018, defendia, por exemplo, a criação de uma Guarda Nacional, para retirar do Exército o papel de bombeiro da Segurança Pública. Enfim, para saber que tipo de liderança militar os civis devem procurar, é preciso saber que modelo de Forças Armadas se deseja, diante da necessidade de combinar modernização e limitação orçamentária. Só a clareza de objetivos pode levar à produção de consensos para evitar as tentações da força e da corrupção.

Caro leitor,

em 9 de agosto de 2018, um artigo escrito pelo general Alberto Cardoso foi publicado no blog oficial do Exército brasileiro, o eblog. Seu título era Ensinamentos da liderança militar. Ali, o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tratava das diferenças entre a “chefia com liderança nas Forças Armadas (FA) e a liderança na política”.

O general Alberto Mendes Cardoso em palestra na FAAP, em São Paulo Foto: AGLIBERTO LIMA

“O exercício da liderança política é totalmente diverso do exercício da chefia militar com liderança. Nesta, o líder influencia as vontades dos chefiados para, levando-se em conta o comportamento individual e coletivo deles, obter do grupo a execução que leve aos resultados desejados, ao passo que, na política, o líder influencia as vontades dos eleitores para que o escolham seu delegado, a fim de que ele execute o que lhes prometeu.”

O general afirmava que “o espírito de sobrevivência induz os políticos a atitudes e comportamentos pragmáticos – nem sempre éticos – para garantir os votos em áreas geográficas muito amplas”. Para ele, esse pragmatismo levava à “acumulação de recursos financeiros para a próxima campanha e contamina o exercício dos encargos com a predominância dos interesses eleitorais pessoais”.

Cardoso dizia que “as circunstâncias negativas pioram quando, além das motivações individuais, também existe um projeto partidário de manutenção do poder a qualquer custo, “fazendo o diabo”, inclusive em detrimento da ética e das práticas moralmente boas”. “E, com esse quadro, lá vêm os vergonhosos mensalões e petrolões.” Naquele momento, a campanha eleitoral começava a delinear um enfrentamento no segundo turno entre Fernando Haddad (PT) e Jair Bolsonaro, então no PSL.

O artigo concluía que cabe “ao político honesto e genuinamente democrata sobrepairar aos costumes aéticos e às práticas amorais, impondo-se um perfil de líder e de caráter, que o imunize contra os desvios”. Quase um mês depois, Cardoso publicaria outro texto no mesmo blog, no qual estabelecia 18 características desejáveis em um líder político. Entre elas estavam:

“Compromisso com a democracia representativa e a Constituição Federal; a compreensão da natureza permanente do Estado e temporária dos governos; a compreensão da imperiosidade da segregação de interesses, partidários ou pessoais, dos assuntos de Estado e a moral ilibada, probidade, inteireza de caráter, competência e perseverança para aplicação dos princípios da administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”

O então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, quando anunciou que a campanha de vacinação contra a covid-19 devia começar "em meados de fevereiro". Foto: Gabriela Biló/ Estadão

Esse era o retrato do que os militares esperavam de um futuro presidente. Entre os generais do Alto Comando do Exército, essa expectativa permanece a mesma. A diferença é que as Forças Armadas chegam ao fim do mandato de Jair Bolsonaro com sua imagem institucional associada ao governo em razão não só das afinidades ideológicas da maioria de seus integrantes com o atual mandatário, mas também pela ocupação de cargos de natureza civil por oficiais nas mais distintas áreas do governo, com resultados como os da gestão de Eduardo Pazuello, na Saúde, ou do general Braga Netto, na Defesa.

Pazuello e Braga representaram a politização das Forças Armadas. Ambos foram para o governo quando eram generais da ativa. E a passagem deles para a reserva só se deu após a imagem da Força Terrestre já estar comprometida com a do governo. Enfraqueceu-se a institucionalidade que erguia um muro entre a caserna e o palácio em nome da profissionalização, do apartidarismo e da isenção. E se estabeleceu a República dos Dois Pesos e Duas Medidas, afetando os atores de todos os Poderes da República.

Na Marinha, essa prática não vê mal algum em fazer desfilar por Brasília tanques dos fuzileiros navais no dia da votação da PEC do Voto Impresso pelo Congresso mas enxerga infração disciplinar na entrevista do contra-almirante Antonio Alberto Marinho Nigro à Globonews, impondo-lhe processo administrativo em razão de críticas à partidarização das Forças Armadas. Fazem com Nigro o que não foi feito com oficiais bolsonaristas que atuam politicamente em redes sociais. Pior. Mas, como integrante da reserva, o contra-almirante nem mesmo está submetido às mesmas regras que vetam à ativa as manifestações críticas ao governo.

A uma semana do voto, essa situação lança um desafio, evitado por todos os candidatos à Presidência na campanha eleitoral: como lidar com as Forças Armadas em caso de derrota de Jair Bolsonaro? A leitura dos artigos do general Cardoso mostra que tipo de liderança os militares esperam dos civis. Mas que tipo de liderança militar os civis esperam dos generais? O ex-presidente da Colômbia Juan Manuel Santos, que foi ministro da Defesa em seu país, deu ao jornal O Globo, uma pista ante o silêncio dos candidatos ao Executivo:

“Fui ministro da Defesa e tive boas relações com as Forças Armadas brasileiras, são muito profissionais. Mas não estou nem um pouco de acordo com a politização das Forças Armadas ou a utilização dos militares ativos na política. Isso causa danos à democracia e às próprias Forças Armadas. Espero que, no novo governo, as Forças Armadas cumpram sua missão. Elas não são treinadas para ocupar cargos políticos.”

Setores de partidos de centro e da esquerda brasileira defendem que o futuro presidente enfrente questões como a imposição de quarentena para militares, magistrados e procuradores e policiais que queiram entrar para a política. Também querem um civil no Ministério da Defesa, como forma de recuperar o princípio do controle civil objetivo, defendido por Samuel Huntington, nas relações entre civis e militares. Mas como fazer isso se poucos são os políticos que conseguem diferenciar o Ministério da Defesa das Forças Armadas?

Candidato do PSDB à presidência em 2018, Geraldo Alckmin defendeu a criação de uma Guarda Nacional permanente Foto: Dida Sampaio/Estadão

Há muita desconfiança entre formuladores de política de Defesa ligados aos partidos políticos e os militares. Para um general, o “problema não é de leitura; é de entendimento mínimo das relações institucionais e de separá-las de interesses e ou comportamentos pessoais”. É bem verdade que esse diagnóstico se aplica também ao governo Bolsonaro. O problema é que, quanto mais leem uns sobre os outros, maior parece ser o fosso que separa os civis e os generais. A solução está na recuperação da institucionalidade.

É preciso saber quais os planos dos candidatos para a Defesa diante de ameaças extrarregionais e qual o papel constitucional que enxergam para as Forças Armadas – Geraldo Alckmin, então candidato do PSDB, em 2018, defendia, por exemplo, a criação de uma Guarda Nacional, para retirar do Exército o papel de bombeiro da Segurança Pública. Enfim, para saber que tipo de liderança militar os civis devem procurar, é preciso saber que modelo de Forças Armadas se deseja, diante da necessidade de combinar modernização e limitação orçamentária. Só a clareza de objetivos pode levar à produção de consensos para evitar as tentações da força e da corrupção.

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