Quando a Polícia Federal (PF) bateu em 5 de outubro de 2023 na porta do comerciante de peixes Vanderlei da Silva Faria, de 39 anos, e de sua mulher Ana Júlia Mendes, em São Francisco do Sul, em Santa Catarina, encontraram tanto a casa quanto o antigo comércio do casal, a Peixaria Faria, fechados. Os agentes haviam obtido o endereço dos dois e a ordem de busca judicial durante as investigações da Operação Dontraz, sobre o bilionário do tráfico de drogas comandado pela Máfia dos Bálcãs entre a América do Sul e a Europa.
Os agentes começaram a indagar os vizinhos e descobriram que os suspeitos estavam morando em outro endereço, no bairro Morro Grande, ali mesmo em São Francisco do Sul. Era a última fase da Operação Dontraz, a primeira ação da recém-criada Força Integrada de Combate ao Crime Organizada (FICCO), que reúne membros das polícias federais e estaduais e agentes penais. Os policiais rumaram para o novo endereço de Faria, contra quem a Justiça Federal expedira um mandado de prisão preventiva.
Até então, os policiais sabiam que integrantes da Máfia dos Balcãs, coordenados no Brasil pelo sérvio Aleksandar Nesic, o Buda ou Cara de Sapato, estavam por trás do envio de 10,2 toneladas de cocaína apreendidas em dois barcos – o Alcatraz 1 e o Dom Isaac XII – pelos federais com a ajuda das Marinhas do Brasil e dos Estados Unidos, depois que partiram de Fortaleza para a Europa com 6,6 toneladas de cocaína. Também sabiam que traficantes ligados ao PCC teriam se unido aos sérvios para fornecer a tripulação de barcos e providenciar a compra de uma flotilha para o tráfico.
Mas faltava aos federais provas materiais da ligação dos brasileiros com a facção, pois, apesar dos indícios, todos os acusados negavam o vínculo à organização criminosa, ainda que alguns fossem da comunidade da Pouca Farinha, perto do Porto de Santos, área com forte presença do PCC. Faria era um dos alvos da última fase da Operação Dontraz, justamente, pela suspeita de estar ligado à logística do segundo carregamento, o do pesqueiro Dom Isaac XII, que deixara Santa Catarina e rumara ao Ceará, onde fora carregado com a droga.
Homem supersticioso, Faria estava tranquilo em casa. Após a queda do Dom Isaac XII, em 16 de agosto de 2022, e da prisão da tripulação com quem o comerciante mantinha contato, ele temeu que pudesse ser alcançado pela PF. Mas o tempo passou e nada indicava que a sua participação no esquema tivesse sido descoberta. Um ano depois, em 19 de setembro de 2023, o destino lhe deu um segundo aviso. Na manhã daquele dia, outra embarcação da flotilha do tráfico, a Palmares 1, foi abordada pela Marinha e pela PF ao largo da costa pernambucana com 3,6 toneladas de cocaína.
O barco também saíra de Santa Catarina, como o Dom Isaac XII. O raio caía pela terceira vez em cima do esquema da Máfia dos Bálcãs. Em um dos celulares apreendidos com a tripulação do Dom Isaac XII, os federais encontraram diálogos que abriram o caminho até Faria. Por volta das 17h40 de 1.º de agosto de 2022, o comerciante mandou uma mensagem a um dos tripulantes daquela embarcação. Identificou-se com o nome de Anúbis, o deus dos mortos e moribundos do antigo Egito. E fez um pedido:
“Seu Moura, deixa eu explicar pra você seu Moura. O negócio que tá aí dentro é ruim, não é espírito de luz, é ruim! Então meu amigo, por favor, não deixa (sic) ninguém rezar nesse barco, pelo amor de Deus. Exu é bom! Isso que tá aí é ruim, isso aí é pra proteger meu amigo. Então se eles ficar (sic) fazendo, oração, ficar fazendo essas coisas de loucos de crente...não deixa ninguém rezar nesse barco por favor...”
Faria reforçou o pedido em outras mensagens. Disse ao interlocutor que reunisse a tripulação, pois ia mandar um áudio pelo aplicativo que todos deviam ouvir. “Seu Amauri, o que tá aí, não pode ser mexido. Ok, Amauri? O que foi colocado aí é de Vodu. Isso aí não é espírito de luz. Não pode fazer oração evangélica aí dentro. Ok? Nada contra a religião de ninguém, mas o que tá aí é sério. Ele tá aí com vocês, ele vai acompanhar vocês, vai proteger vocês. Agora vocês não fazem uma loucura dessas daí, porque se ele se revoltar, ninguém sai daí. Por favor. Eu não estou brincando com essas coisas. Não brinquem com isso.”
A casa de Faria ‘caiu’ dentro de seu celular
De nada adiantou o conselho. Dezesseis dias depois, o barco e a droga foram apreendidos e a tripulação, presa. A federal não bateu naqueles dias na porta de Faria, mas a Polícia Militar de São Paulo sim. E não foi por causa do barco ou da cocaína perdida no mar. É aqui que começa a história de como, mais de um ano depois, os federais conseguiram a prova que faltava na Operação Dontraz para ligar o PCC à flotilha do tráfico bilionário da Máfia dos Bálcãs.
Faria e sua mulher, Ana Júlia Mendes, estavam morando em Guararema, na Grande São Paulo, em outubro de 2022, quando a babá dos filhos do casal começou a desconfiar de que o patrão estivesse envolvido em alguma coisa errada. A moça contou ao namorado, e ele aguçou a curiosidade da jovem, que decidiu descobrir tudo. E assim foi. Mas quando ela estava ao telefone contando ao rapaz que os patrões mexiam com tráfico de drogas, acabou surpreendida por Ana Júlia.
A patroa não teve dúvida: arrastou a babá pela escada abaixo da casa e chamou o marido, que chegou com uma faca. “O Comando vai te matar”, teria dito Ana Júlia à funcionária. “Dona Júlia disse que, no mínimo, iam quebrar minhas duas pernas.”, afirmou a babá. Foi quando a PM chegou, chamada pelo namorado da moça. O casal foi preso em flagrante sob a acusação de torturar a funcionária, mas acabou solto pela Justiça e voltou para Santa Catarina.
Enquanto estavam presos, uma outra funcionária do casal, ficou com o cartão de banco do comerciante e, de posse da senha, teria se apropriado de R$ 60 mil do patrão. Faria ficou furioso. Logo depois de ser libertado em março de 2023 e descobrir que fora vítima do desfalque, ele entrou em contato com um criminoso identificado como Pazini. E foi logo dizendo que a “mulher” que dera o golpe poderia ser encontrada por meio do “irmão” conhecido como Nenê Paraíba, um integrante da “Final de São José” dos Campos.
Era uma referência à Sintonia Final da facção na região do Vale do Paraíba, a chefia da facção na região. Faria gravou um áudio e pensou que ele estava protegido pelas senhas de seu celular. Disse que era necessário levar os “ratos” responsáveis pelo furto “pro Resumo”, o tribunal do crime, o chamado “Resumo Disciplinar”. A pena para “mão na cumbuca”, segundo o código penal do PCC, é “exclusão com cobrança disciplinar”. Ou seja, dependendo do caso, o acusado deve apanhar de pé, sem gritar. Se cair, a pancadaria para, mas o réu não pode “meter o louco” e fingir que caiu, que aí o espancamento não vai terminar. A cartilha da facção diz que nesses casos o preso deve apanhar do “pescoço para baixo”.
Pazini mandou uma resposta a Faria, dizendo que ia levar o pedido de Faria para a cúpula da facção. E afirmou que Faria devia estar presente no julgamento. Na semana seguinte, Faria estaria no tribunal do crime. A facção deu “um prazo” para que a autora da “mão na cumbuca” devolvesse o dinheiro, caso não quisesse sofrer as consequências. O dinheiro teria sido devolvido, mas as mensagens permaneceram armazenadas no celular de Faria.
No dia em que os federais bateram em sua porta, lá estavam elas no aparelho apreendido. Mais uma vez, o comerciante supersticioso pensou que estava protegido. E, de fato, a sorte parecia sorrir para o acusado. É que na primeira tentativa feita pela PF para extrair os dados de seu telefone celular, os peritos de Santa Catarina consignaram no laudo: “o equipamento Cellebrite UFED (usado pela perícia) não foi capaz de efetivar uma extração completa do sistema de arquivos – Full File System – do aparelho questionado, tendo sido realizada apenas uma extração parcial dos dados armazenados”. É o que consta do Relatório de Análise de Polícia Judiciária- RAPJ nº 87/2023-FICCO/DRPJ/SR/PF/SP.
Faria parecia salvo da acusação de pertencer à organização criminosa. Seu companheiro Carlos Marratman Silveira não teve a mesma sorte. Em um celular apreendido em seu apartamento no Canto do Forte, em Praia Grande, no litoral de São Paulo, a polícia encontrou imagens e mensagens que o associavam ao PCC. Era o segundo acusado do grupo nessa situação: o primeiro havia sido Lino Barbosa de Souza Junior, o Gordão – os dois e Faria estão entre os 15 indiciados que permanecem presos na operação. Um quarto acusado de pertencer à facção – Jairo de Souza – está foragido.
A FICCO pediu então uma nova análise no celular de Faria para o Serviço Técnico Científico da Polícia Federal de São Paulo/SP3 , que possui recursos tecnológicos mais avançados do que os dos peritos catarinenses. E assim foi feito um novo exame para extrair os dados do celular, conforme o Relatório de Análise de Polícia Judiciária- RAPJ nº 104/2023-FICCO/DRPJ/SR/PF/SP. No segundo exame, como dizem os federais, “a casa de Faria caiu”. Todas as mensagens que ele enviava e recebia com o perfil “gladiador” foram descobertas. Elas permitiram ao delegado Alexandre Custódio Neto, diretor da FICCO, escrever no relatório final complementar da Operação Dontraz, de 15 de dezembro de 2023:
“Oportuno registrar o vínculo de alguns investigados, que inclusive desempenharam o papel de coordenadores logísticos nos eventos de tráfico transnacional de drogas ora investigados, com a facção criminosa Primeiro Comando da Capital, a exemplo de Vanderlei da Silva Faria, Jairo de Souza, Lino Barbosa de Sousa Júnior e Carlos Marratman Silveira, pois resta comprovada a hipótese criminal, levantada desde o início das investigações, de que se associaram nessas empreitadas ilícitas de narcotráfico internacional, membros da Máfia dos Bálcãs e do PCC”. O furto de um cartão e seu uso entregou à PF a prova que faltava.