Comandante Militar do Planalto durante os eventos de 8 de janeiro, o general Gustavo Henrique Dutra de Menezes se tornou alvo de desconfiança de petistas após o ataque às sedes dos Três Poderes e por ter convencido o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a não permitir a desocupação do acampamento golpista montado em frente ao quartel-general do Exército na noite do dia 8 em razão dos riscos de a operação terminar em mortes. Ao mesmo tempo, o militar se tornou alvo dos radicais bolsonaristas em razão de sua política de asfixia do acampamento, que chegou a reunir milhares de pessoas antes de contar com pouco mais de 200 radicais no dia 6 de janeiro.
Dutra permaneceu em silêncio durante três meses. Foi bombardeado pelo governador Ibaneis Rocha, que acusou o Exército de impedir o desmonte do acampamento no dia 29 de dezembro. E também pelo coronel Fábio Augusto Vieira, ex-comandante-geral da Polícia Militar do Distrito Federal. Em depoimento à PF, o coronel disse que havia pedido a dissolução do acampamento. Afirmou ter mobilizado seus homens três vezes para retirar os manifestantes da frente ao QG, mas em todas as oportunidades o Exército teria impedido a ação. Outro coronel da PM do DF, Jorge Eduardo Naime, fez acusações a Dutra ao depor na CPI da Câmara Distrital sobre os fatos, tornando o general alvo do deputado Chico Vigilante (PT).
Quando compareceu para depor à PF, portanto, o general sabia em parte o que o aguardava. Foram sete horas de depoimento. O primeiro documento que ele apresentou foi um ofício que lhe foi encaminhado pela Segurança Pública do DF. Trata-se do ofício n.º 6082/2022 - SSP/GAB, com data de 28 de dezembro. O documento tratava de um protocolo de ações integradas - PAI.º 215, no qual a secretaria do DF afirma que a ação do dia 29 serviria para o “enfrentamento ao comércio irregular na Avenida do Exército e adjacências da Praça dos Cristais, previstas para o dia 29/12/2022″.
A operação devia começar às 6h30. A PM devia manter a tropa de choque de prontidão para o caso de distúrbios em razão da resistência à ação dos policiais e dos militares do Exército. O documento mostra ainda que cabia ao Comando Militar do Planalto “exercer a coordenação operacional da operação integrada” e disponibilizar recursos humanos para a ação, além de transporte para a retirada do material apreendido com camelôs.
Em depoimento à PF, Ibaneis disse que isso deveria acontecer no dia 29 de dezembro, mas que o comando do Exército se opôs à ação. O documento entregue pelo general Dutra em nenhum momento cita como objetivo da operação o desmonte ou a desocupação do acampamento. Ele afirmou ainda aos federais que em nenhum momento recebeu ordem para retirar os manifestantes da frente do QG, além de recomendações. Nem antes de 31 de dezembro, quando o presidente era Jair Bolsonaro, nem depois, quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República.
O general entregou ainda outro documento enviado pela Segurança do DF no dia 6 de janeiro. Nele, a secretaria, já chefiada pelo ex-ministro da Justiça Anderson Torres – preso por ordem do ministro Alexandre de Moraes, que conduz as investigações sobre a intentona do dia 8 de janeiro – determina que os ônibus dos radicais que se dirigiam à Brasília se dirigissem ao Setor Militar Urbano (SMU), para que ficassem concentrados na frente do QG do Exército. Naquele dia, a inteligência do Comando Militar do Planalto (CMP) calculava em pouco mais de 200 os manifestantes que continuavam acampados perto da praça dos Cristais.
Dutra havia ordenado que o SMU fosse fechado aos manifestantes e determinou que ônibus da Polícia do Exército bloqueassem a Avenida do Exército para impedir a chegada dos ônibus. Teria sido a segurança do DF que propôs aos manifestantes que os ônibus ficassem estacionados na região da Granja do Torto, onde boa parte foi apreendida no dia 8. Para contornar o bloqueio feito pelo Exército, os manifestantes autointitulados “patriotas” criaram o que foi apelidado pelos militares do CMP de “trilha Ho Chi Minh” uma alusão ao caminho usado pelo Vietnã do Norte no Laos e no Camboja para abastecer as tropas do Vietcong que lutavam contra o Exército do Vietnã do Sul e os norte-americanos nos anos 1960 e 1970.
De acordo com os militares do CMP, o acampamento ficou lotado de manifestantes de fora de Brasília e assim estava quando o lugar foi cercado pelo Exército na noite do dia 8 até a prisão de todos no dia 9, às 6h30. Ali foram presos 1.261 manifestantes. A negociação com os manifestantes foi feita pelos homens do general Dutra. Eles afirmaram que todos os detidos que entraram nos ônibus fornecidos pelo governo do Distrito Federal sabiam que seriam levados para a Polícia Federal.
Ou seja, pelo depoimento do general, em vez de agir para manter o cerco ao acampamento golpista e impedir a retomada das ações dos radicais em Brasília, a Segurança do DF teria facilitado a organização do encontro que tinha como palavra de ordem “tomada do poder”. Na noite do dia 8, a intentona estava derrotada. Quase 2 mil radicais estavam presos. Moraes afastara Ibaneis do cargo, determinara a prisão do coronel Fábio e, dias depois, do ex-ministro Torres.
Os inquéritos da Operação Lesa Pátria já provocaram a denúncia de 1.390 acusados de participar dos atos antidemocráticos. Se a situação de Torres já era complicada em razão da minuta do golpe encontrada pela PF em sua casa, os documentos do general Dutra, ouvido pela PF na condição de testemunha, podem tornar agora ainda mais difícil para o antigo ministro da Justiça de Bolsonaro justificar sua conduta nos eventos que terminaram com o assalto às sedes dos Três Poderes, em Brasília.