Caro leitor,
O general David H. Berger é o comandante do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Quando a Guerra das Malvinas completou 40 anos, ele escreveu uma mensagem à tropa. Dizia o americano que a força-tarefa expedicionária naval britânica “executou a entrada à força na região das ilhas tomadas pelos argentinos“ em face de uma defesa A2AD moderna, mas modesta. O conceito A2/AD, de defesa antiacesso e negação de área, é hoje amplamente adotado pelas Forças Armadas mais modernas do mundo.
Mas o general é um homem do terreno, da tropa que desembarca e conquista território. Para ele, as forças britânicas e argentinas se engajaram em combate intenso sob condições extremas – frio, úmido e ventoso. As temperaturas médias giravam próximas do congelamento. Chuva, granizo e neve eram comuns. Após o desembarque nas Malvinas, os fuzileiros navais e paraquedistas reais caminharam mais de 80 km até a área do objetivo, no que, segundo Berger, “deveria ser considerado uma das mais impressionantes demonstrações de profissionalismo militar e resistência humana na guerra moderna”. “De fato, as operações terrestres durante a Guerra das Malvinas ilustraram o papel atemporal e decisivo da infantaria altamente treinada no campo de batalha moderno.”
A conclusão do general é conhecida de todo militar. Ocupar posições é algo decisivo em uma guerra. Os generais do Planalto sabem disso. No dia 2 de agosto, o general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, comemorou ter atingido a marca de 300 mil seguidores em sua conta pessoal no Twitter. Os comunistas chineses tiveram em Mao Tsé-Tung, o Grande Timoneiro; Bolsonaro tem em Ramos, o Grande Tuiteiro.
Ramos é hoje o general do Palácio dono da conta ativa com o maior número de publicações. São 1.125 ante 438 de seu concorrente mais próximo, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno – o ministro da Defesa, Paulo Sérgio de Oliveira, com 1.969 tuítes, está com a conta congelada desde março de 2021. E o que Ramos publica? O general se ocupa quase sempre do que considera ser realizações do governo de seu amigo, o presidente Jair Bolsonaro.
As últimas dez publicações de sua conta procuraram traçar um cenário de melhoria da economia, do emprego, da inflação e da redução de impostos. O cenário é sempre positivo. Ramos trata do novo Auxílio Brasil de R$ 600 e da nova carteira nacional de identificação. Aborda a redução do preço dos combustíveis e, depois, faz um resumo das “notícias boas” da semana, todas consideradas essenciais para os planos de reeleição de Bolsonaro.
Por fim, trata do ato de campanha de Bolsonaro no Recife. Diz o general: “Final de Copa do Mundo? Não. Voltamos a ter orgulho de vestir o verde e o amarelo. Uma homenagem a quem acredita em DEUS, defende a FAMÍLIA e a LIBERDADE de todos os brasileiros. Veja a reação do povo em Recife como acontece em todos os cantos do Brasil”. O general segue a cartilha da extrema-direita de identificar valores que são compartilhados por quase todos brasileiros como algo pertencente a uma determinada corrente política: justamente aquela à qual ele pertence.
O que Ramos faz é ocupar espaço; como bom infante, o general se comporta nas redes sociais como os fuzileiros citados pelo general Berger. Diante da união do arbítrio e da corrupção – 680 mil mortos pela pandemia, orçamento secreto, ouro dos pastores na Educação, o incentivo à violência e à desconfiança em relação às urnas eletrônicas e à Justiça – o general vai à guerra nas redes sociais para tentar garantir o sucesso eleitoral do amigo e chefe. Ramos procura ganhar tempo para que a candidatura tenha a oportunidade de recuperar o consenso que lhe deu a vitória em 2018.
Sua postura no Twitter não é diferente daquela do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio. Ele também ocupa o espaço no debate sobre as urnas eletrônicas ao pedir acesso urgente a dados – os códigos-fonte das urnas eletrônicas – que estavam disponíveis havia dez meses e já foram examinados pela PF, pelo TCU e outros agentes convidados a fazer parte da comissão de transparência das eleições criada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Agora já começam a pensar em uma apuração paralela com base nos boletins de urnas e dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), como mostra hoje no Estadão o repórter Felipe Frazão. Trata-se de uma ideia mais velha do que a patente de marechal. Partidos políticos e tribunais já têm acesso a esses dados há duas décadas.
Mas o objetivo aqui é evitar que as explicações técnicas do TSE consigam exaurir as dúvidas levantadas pelos militares antes de a eleição ocorrer. O bolsonarismo precisa manter a dúvida – sem provas – sobre a lisura das urnas até o dia do voto. E as Forças Armadas tem um papel central nessa estratégia. Caso Bolsonaro seja derrotado – e hoje as pesquisas apontam para isso, como mostra o agregador de pesquisas do Estadão –, o discurso da fraude será o primeiro ato para o grupo manter sua influência e negar ao vencedor a tranquilidade que a legitimidade do voto garante ao eleito para governar.
Não se procura negar apenas a legitimidade do voto e da vitória do opositor. O governo Bolsonaro se comporta como se negasse mesmo ao Judiciário e aos órgãos de controle da República – não há freio e contrapeso constitucional que lhe seja aceito como parte do estado de direito. A intolerância sempre clama pela exceção. É o tema da reportagem de Weslley Galzo, ao mostrar que Bolsonaro ignorou todos os prazos de pedidos de explicações dados a ele pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Em todos os 13 em que os ministros deram entre cinco e 15 dias para manifestação de sua defesa, o presidente desrespeitou o limite de tempo em 11 ações e não se manifestou em duas delas.
Bolsonaro age como conquistador e não como inquilino do Planalto. Seus generais podem querer ganhar tempo e território com suas manobras. Mas antes deveriam se lembrar de Clausewitz. Não só pelo prussiano enxergar a guerra, com seu tripé povo, exército e Estado, como um jogo em que o resultado se dá pela interação dos antagonistas diante da intervenção do acaso. Eleições têm as suas incertezas como a guerra. É por isso que o Palácio do Planalto tem sua rampa. Pode-se subi-la, mas também descê-la. O que seus ocupantes não podem é esquecer a lição de Ulysses Guimarães sobre a Justiça: “Do outro lado da Praça dos Três Poderes não existe rampa”.