As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Fracasso bolsonarista na tomada dos palácios em Brasília beneficia Lula e Alexandre Moraes


Petista receberá apoio dos presidentes dos outros Poderes contra a tentativa de tomada do poder ensaiada por extremistas; Moraes deve ganhar fôlego para conduzir os polêmicos inquéritos no STF

Atualização:

O bolsonarismo deu um tiro no pé ao promover a chamada “tomada do poder” em Brasília, com a invasão e depredação dos prédios dos três Poderes da República. A ação dos extremistas que levaram o caos ao coração do Estado terá como consequência o fortalecimento, ainda que passageiro, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além de emprestar novo apoio aos atos do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em seu polêmico inquérito sobre os atos antidemocráticos.

Lula visita Palácio do Planalto após atos terroristas. Foto: Wilton Junior/Estadão Foto: Wilton Junior/Estadão

Essa é a análise feita ontem por oficiais generais e coronéis consultados pelo Estadão. A repulsa deles ao que aconteceu em Brasília foi unânime. “O que aconteceu hoje é muito sério! Para mim, não é surpresa. Extremismo e fanatismo político sempre acabam em violência. Agora é aplicação da lei, com o devido processo legal, com muita presteza.”, afirmou à coluna o general Carlos Alberto dos Santos Cruz. “Isso é o resultado de longo tempo de tolerância, com irresponsabilidade, desrespeito, fanfarronice, indústria de fake news criminosas e impunidade”, disse. Apesar disso, muitos em Brasília acreditam que o Exército precisa deixar claro de que lado está. Não haveria mais espaço para tergiversações.

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Lula nesta segunda-feira, 9, se reunirá com os chefes dos outros dois Poderes – Legislativo e Judiciário – , que vão lhe dar apoio para medidas, como a intervenção na Segurança Pública do Distrito Federal (DF). Se antes o mundo político já desenhava um apaziguamento em torno do novo presidente que não se via na sociedade, esse fosso entre os dois tende a ficar maior ainda. A preservação da democracia no País será a força que deve selar essa união, da qual devem ficar de fora apenas os parlamentares que representam o bolsonarismo radical, como Carlos Jordy (RJ), que insiste na mentira de que a destruição em Brasília foi obra de infiltrados.

Trata-se de argumento não só escandalosamente mentiroso como, se levado a sério, poderia levar seu autor a ser alvo de investigação por obstrução de Justiça. É que no mundo das investigações criminais os testemunhos têm efeito – ninguém tem liberdade para mentir sobre autoria de crimes, ainda mais quem, potencialmente, pode conhecer fatos relacionados à investigação, sob a pena de ser acusado de falso testemunho ou de obstrução da Justiça.

Como o deputado tem a coragem de defender ladrões e vândalos do patrimônio público? Bandidos que roubaram armas, destruíram prédios. Quo usque tandem, Catilina abutere patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? Quem ad finem sese effrenata iactabit audacia? Até quando abusarás de nossa paciência?, perguntava Cícero na primeira oração contra Catilina. Por quanto tempo ainda esse teu comportamento faccioso nos enganará? Até que ponto você levará a tua desenfreada audácia? Cicero pensava em proteger a República contra os que pretendiam matá-la.

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Os tempos são outros. É da fase de seus linossignos que Cassiano Ricardo escreveu a Pequena Saudação ao Ano 2000, série de cinco poemas dedicada ao diplomata e amigo José Guilherme Merquior. Ricardo abre o segundo poema da série com os versos: “Ícaro morreu,/ não por voar/ junto ao sol/ mas de obsoleto”. Os mitos de então conversavam com o poeta na rua e o convidavam a assistir a Antonioni no cinema. Ele conclui com outros três versos geniais, uma antevisão de nossos tempos: “Tudo o que foi/ ontem é/ outra era”. A ação dos bolsonaristas teve esse condão. E é Moraes quem parece anunciar uma outra era no despacho em que decretou o afastamento do governador distrital Ibaneis Rocha.

“A Democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler. Os agentes públicos (atuais e anteriores) que continuarem a ser portar dolosamente dessa maneira, pactuando covardemente com a quebra da democracia e a instalação de um estado de exceção, serão responsabilizados, pois como ensinava Winston Churchill, ‘um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado’”, escreveu Moraes.

O ministro Alexandre de Moraes deu seu mais duro despacho no inquérito dos atos antidemocráticos 
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Moraes aproveitou o momento. Não apenas afastou Ibaneis. Também determinou o desmonte de todos os acampamentos na frente de quartéis, coisa que o Exército relutou fazer até domingo, bem como a prisão em flagrante de todos os acampados com base na lei antiterror, por tentativa de golpe de estado e de abolição do estado democrático de direito, além dos delitos de formação de quadrilha, ameaça e incitação ao crime. Se for levada ao pé da letra, a ordem poderá pôr na cadeia milhares de pessoas.

Também pôs a corda no pescoço das autoridades responsáveis para que sua ordem não se torne letra morta. Mandou intimar a todos os governadores, prefeitos e comandantes militares, que devem se envolver nessa operação. Os governadores devem cuidar para que suas polícias cumpram a ordem, os prefeitos devem auxiliar as polícias e os militares não devem se opor. Quem não obedecer ao ministro será responsabilizado. Também mandou apreender todos os ônibus usados nas caravanas dos extremistas, proibiu novos protestos até o dia 31 em Brasília e mandou retirar do ar 17 contas, páginas e perfis de bolsonaristas das redes sociais.

É o mais duro despacho do ministro até hoje no inquérito dos chamados atos antidemocráticos. “Com as imagens das câmeras de segurança, esse pessoal vai ser identificado e vai responder processo.... e os incitadores covardes estão longe. Tenho certeza que nenhum que estimulou a violência estava lá”, afirmou Santos Cruz. “Agora é inquérito, identificação de autoria de quem fez incitação à violência, financiamento, planejamento, execução e omissões. Isso é crime. Isso não é oposição política”, disse o general.

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A reação de Moraes demorou poucas horas para se fazer sentir. Hoje, ela deve ser referendada pelos demais ministros do Supremo, todos horrorizados com o atentado contra o prédio da Corte, o vilipêndio de seus armários e cadeiras, onde um manifestante chegou a defecar. O ultraje à Justiça nunca chegou a esse ponto, nem quando o regime militar aposentou compulsoriamente ministros da Corte.

Integrantes do Movimento Integralista Brasileiro se reunem no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo em 2019.  Foto: FOTO: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

O mesmo pode se dizer sobre o Palácio do Planalto. A última vez que um Palácio presidencial fora atacado por golpistas ligados a um movimento político foi em 1938, quando a Ação Integralista do Brasil (AIB) atacou o Palácio da Guanabara, no Rio, com seu lema Deus, Pátria e Família, ressuscitado 80 anos depois pelo bolsonarismo. O putsch comandado pelo tenente Severo Fournier estourou no dia 11 de maio. Naquela madrugada, o então ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, recebeu um telefonema do chefe de polícia, Filinto Muller. Estavam assaltando o palácio, residência do presidente da República, Getulio Vargas.

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Ao lado de Muller estava o então coronel Oswaldo Cordeiro de Farias, então interventor no Rio Grande do Sul. Foi Cordeiro de Farias quem socorreu o ditador Vargas com cinco policiais armados – mais tarde receberia outros 40 soldados. Às cinco horas da manhã, conseguiu entrar pelos fundos do palácio e encontrou o presidente. “Vá descansar. Deixe o resto por minha conta.” Cordeiro tinha homens suficientes para resistir. No fim, os atacantes foram rendidos – acabaram fuzilados nos fundos do palácio. Seu líder, o tenente Furnier, fugiu. E se asilou na embaixada da Itália. O integralismo foi esmagado.

Após os atos de domingo, o general Santos Cruz afirmou que “a responsabilização rigorosa também tem que ser acompanhada de uma política de resolução de conflito. O Brasil não pode continuar em conflito, com baixíssimo nível de responsabilização (impunidade) e desunido”. De fato, o que não se sabe ainda é quais serão todas as medidas e passos do presidente Lula após a derrota da insurreição bolsonarista. Ele pode usar o episódio para tentar pacificar o País e obter consenso em torno da defesa da democracia, das instituições e de seu governo. O povo quer paz, não quer viver sob contínuos atropelos e sobressaltos.

Em seu despacho do domingo à noite, Moraes citou Churchill uma segunda vez. “A defesa da Democracia e das Instituições é inegociável, pois como ainda lembrado pelo grande primeiro-ministro inglês, ‘construir pode ser a tarefa lenta e difícil de anos. Destruir pode ser o ato impulsivo de um único dia’.” Tem razão o ministro. Mas essa é uma lição que deve ser dada não só aos que se deixaram iludir pelos extremismos, mas também a todas as autoridades, inclusive às que se dizem comprometidas com a democracia.

O bolsonarismo deu um tiro no pé ao promover a chamada “tomada do poder” em Brasília, com a invasão e depredação dos prédios dos três Poderes da República. A ação dos extremistas que levaram o caos ao coração do Estado terá como consequência o fortalecimento, ainda que passageiro, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além de emprestar novo apoio aos atos do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em seu polêmico inquérito sobre os atos antidemocráticos.

Lula visita Palácio do Planalto após atos terroristas. Foto: Wilton Junior/Estadão Foto: Wilton Junior/Estadão

Essa é a análise feita ontem por oficiais generais e coronéis consultados pelo Estadão. A repulsa deles ao que aconteceu em Brasília foi unânime. “O que aconteceu hoje é muito sério! Para mim, não é surpresa. Extremismo e fanatismo político sempre acabam em violência. Agora é aplicação da lei, com o devido processo legal, com muita presteza.”, afirmou à coluna o general Carlos Alberto dos Santos Cruz. “Isso é o resultado de longo tempo de tolerância, com irresponsabilidade, desrespeito, fanfarronice, indústria de fake news criminosas e impunidade”, disse. Apesar disso, muitos em Brasília acreditam que o Exército precisa deixar claro de que lado está. Não haveria mais espaço para tergiversações.

Lula nesta segunda-feira, 9, se reunirá com os chefes dos outros dois Poderes – Legislativo e Judiciário – , que vão lhe dar apoio para medidas, como a intervenção na Segurança Pública do Distrito Federal (DF). Se antes o mundo político já desenhava um apaziguamento em torno do novo presidente que não se via na sociedade, esse fosso entre os dois tende a ficar maior ainda. A preservação da democracia no País será a força que deve selar essa união, da qual devem ficar de fora apenas os parlamentares que representam o bolsonarismo radical, como Carlos Jordy (RJ), que insiste na mentira de que a destruição em Brasília foi obra de infiltrados.

Trata-se de argumento não só escandalosamente mentiroso como, se levado a sério, poderia levar seu autor a ser alvo de investigação por obstrução de Justiça. É que no mundo das investigações criminais os testemunhos têm efeito – ninguém tem liberdade para mentir sobre autoria de crimes, ainda mais quem, potencialmente, pode conhecer fatos relacionados à investigação, sob a pena de ser acusado de falso testemunho ou de obstrução da Justiça.

Como o deputado tem a coragem de defender ladrões e vândalos do patrimônio público? Bandidos que roubaram armas, destruíram prédios. Quo usque tandem, Catilina abutere patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? Quem ad finem sese effrenata iactabit audacia? Até quando abusarás de nossa paciência?, perguntava Cícero na primeira oração contra Catilina. Por quanto tempo ainda esse teu comportamento faccioso nos enganará? Até que ponto você levará a tua desenfreada audácia? Cicero pensava em proteger a República contra os que pretendiam matá-la.

Os tempos são outros. É da fase de seus linossignos que Cassiano Ricardo escreveu a Pequena Saudação ao Ano 2000, série de cinco poemas dedicada ao diplomata e amigo José Guilherme Merquior. Ricardo abre o segundo poema da série com os versos: “Ícaro morreu,/ não por voar/ junto ao sol/ mas de obsoleto”. Os mitos de então conversavam com o poeta na rua e o convidavam a assistir a Antonioni no cinema. Ele conclui com outros três versos geniais, uma antevisão de nossos tempos: “Tudo o que foi/ ontem é/ outra era”. A ação dos bolsonaristas teve esse condão. E é Moraes quem parece anunciar uma outra era no despacho em que decretou o afastamento do governador distrital Ibaneis Rocha.

“A Democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler. Os agentes públicos (atuais e anteriores) que continuarem a ser portar dolosamente dessa maneira, pactuando covardemente com a quebra da democracia e a instalação de um estado de exceção, serão responsabilizados, pois como ensinava Winston Churchill, ‘um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado’”, escreveu Moraes.

O ministro Alexandre de Moraes deu seu mais duro despacho no inquérito dos atos antidemocráticos 

Moraes aproveitou o momento. Não apenas afastou Ibaneis. Também determinou o desmonte de todos os acampamentos na frente de quartéis, coisa que o Exército relutou fazer até domingo, bem como a prisão em flagrante de todos os acampados com base na lei antiterror, por tentativa de golpe de estado e de abolição do estado democrático de direito, além dos delitos de formação de quadrilha, ameaça e incitação ao crime. Se for levada ao pé da letra, a ordem poderá pôr na cadeia milhares de pessoas.

Também pôs a corda no pescoço das autoridades responsáveis para que sua ordem não se torne letra morta. Mandou intimar a todos os governadores, prefeitos e comandantes militares, que devem se envolver nessa operação. Os governadores devem cuidar para que suas polícias cumpram a ordem, os prefeitos devem auxiliar as polícias e os militares não devem se opor. Quem não obedecer ao ministro será responsabilizado. Também mandou apreender todos os ônibus usados nas caravanas dos extremistas, proibiu novos protestos até o dia 31 em Brasília e mandou retirar do ar 17 contas, páginas e perfis de bolsonaristas das redes sociais.

É o mais duro despacho do ministro até hoje no inquérito dos chamados atos antidemocráticos. “Com as imagens das câmeras de segurança, esse pessoal vai ser identificado e vai responder processo.... e os incitadores covardes estão longe. Tenho certeza que nenhum que estimulou a violência estava lá”, afirmou Santos Cruz. “Agora é inquérito, identificação de autoria de quem fez incitação à violência, financiamento, planejamento, execução e omissões. Isso é crime. Isso não é oposição política”, disse o general.

A reação de Moraes demorou poucas horas para se fazer sentir. Hoje, ela deve ser referendada pelos demais ministros do Supremo, todos horrorizados com o atentado contra o prédio da Corte, o vilipêndio de seus armários e cadeiras, onde um manifestante chegou a defecar. O ultraje à Justiça nunca chegou a esse ponto, nem quando o regime militar aposentou compulsoriamente ministros da Corte.

Integrantes do Movimento Integralista Brasileiro se reunem no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo em 2019.  Foto: FOTO: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

O mesmo pode se dizer sobre o Palácio do Planalto. A última vez que um Palácio presidencial fora atacado por golpistas ligados a um movimento político foi em 1938, quando a Ação Integralista do Brasil (AIB) atacou o Palácio da Guanabara, no Rio, com seu lema Deus, Pátria e Família, ressuscitado 80 anos depois pelo bolsonarismo. O putsch comandado pelo tenente Severo Fournier estourou no dia 11 de maio. Naquela madrugada, o então ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, recebeu um telefonema do chefe de polícia, Filinto Muller. Estavam assaltando o palácio, residência do presidente da República, Getulio Vargas.

Ao lado de Muller estava o então coronel Oswaldo Cordeiro de Farias, então interventor no Rio Grande do Sul. Foi Cordeiro de Farias quem socorreu o ditador Vargas com cinco policiais armados – mais tarde receberia outros 40 soldados. Às cinco horas da manhã, conseguiu entrar pelos fundos do palácio e encontrou o presidente. “Vá descansar. Deixe o resto por minha conta.” Cordeiro tinha homens suficientes para resistir. No fim, os atacantes foram rendidos – acabaram fuzilados nos fundos do palácio. Seu líder, o tenente Furnier, fugiu. E se asilou na embaixada da Itália. O integralismo foi esmagado.

Após os atos de domingo, o general Santos Cruz afirmou que “a responsabilização rigorosa também tem que ser acompanhada de uma política de resolução de conflito. O Brasil não pode continuar em conflito, com baixíssimo nível de responsabilização (impunidade) e desunido”. De fato, o que não se sabe ainda é quais serão todas as medidas e passos do presidente Lula após a derrota da insurreição bolsonarista. Ele pode usar o episódio para tentar pacificar o País e obter consenso em torno da defesa da democracia, das instituições e de seu governo. O povo quer paz, não quer viver sob contínuos atropelos e sobressaltos.

Em seu despacho do domingo à noite, Moraes citou Churchill uma segunda vez. “A defesa da Democracia e das Instituições é inegociável, pois como ainda lembrado pelo grande primeiro-ministro inglês, ‘construir pode ser a tarefa lenta e difícil de anos. Destruir pode ser o ato impulsivo de um único dia’.” Tem razão o ministro. Mas essa é uma lição que deve ser dada não só aos que se deixaram iludir pelos extremismos, mas também a todas as autoridades, inclusive às que se dizem comprometidas com a democracia.

O bolsonarismo deu um tiro no pé ao promover a chamada “tomada do poder” em Brasília, com a invasão e depredação dos prédios dos três Poderes da República. A ação dos extremistas que levaram o caos ao coração do Estado terá como consequência o fortalecimento, ainda que passageiro, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além de emprestar novo apoio aos atos do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em seu polêmico inquérito sobre os atos antidemocráticos.

Lula visita Palácio do Planalto após atos terroristas. Foto: Wilton Junior/Estadão Foto: Wilton Junior/Estadão

Essa é a análise feita ontem por oficiais generais e coronéis consultados pelo Estadão. A repulsa deles ao que aconteceu em Brasília foi unânime. “O que aconteceu hoje é muito sério! Para mim, não é surpresa. Extremismo e fanatismo político sempre acabam em violência. Agora é aplicação da lei, com o devido processo legal, com muita presteza.”, afirmou à coluna o general Carlos Alberto dos Santos Cruz. “Isso é o resultado de longo tempo de tolerância, com irresponsabilidade, desrespeito, fanfarronice, indústria de fake news criminosas e impunidade”, disse. Apesar disso, muitos em Brasília acreditam que o Exército precisa deixar claro de que lado está. Não haveria mais espaço para tergiversações.

Lula nesta segunda-feira, 9, se reunirá com os chefes dos outros dois Poderes – Legislativo e Judiciário – , que vão lhe dar apoio para medidas, como a intervenção na Segurança Pública do Distrito Federal (DF). Se antes o mundo político já desenhava um apaziguamento em torno do novo presidente que não se via na sociedade, esse fosso entre os dois tende a ficar maior ainda. A preservação da democracia no País será a força que deve selar essa união, da qual devem ficar de fora apenas os parlamentares que representam o bolsonarismo radical, como Carlos Jordy (RJ), que insiste na mentira de que a destruição em Brasília foi obra de infiltrados.

Trata-se de argumento não só escandalosamente mentiroso como, se levado a sério, poderia levar seu autor a ser alvo de investigação por obstrução de Justiça. É que no mundo das investigações criminais os testemunhos têm efeito – ninguém tem liberdade para mentir sobre autoria de crimes, ainda mais quem, potencialmente, pode conhecer fatos relacionados à investigação, sob a pena de ser acusado de falso testemunho ou de obstrução da Justiça.

Como o deputado tem a coragem de defender ladrões e vândalos do patrimônio público? Bandidos que roubaram armas, destruíram prédios. Quo usque tandem, Catilina abutere patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet? Quem ad finem sese effrenata iactabit audacia? Até quando abusarás de nossa paciência?, perguntava Cícero na primeira oração contra Catilina. Por quanto tempo ainda esse teu comportamento faccioso nos enganará? Até que ponto você levará a tua desenfreada audácia? Cicero pensava em proteger a República contra os que pretendiam matá-la.

Os tempos são outros. É da fase de seus linossignos que Cassiano Ricardo escreveu a Pequena Saudação ao Ano 2000, série de cinco poemas dedicada ao diplomata e amigo José Guilherme Merquior. Ricardo abre o segundo poema da série com os versos: “Ícaro morreu,/ não por voar/ junto ao sol/ mas de obsoleto”. Os mitos de então conversavam com o poeta na rua e o convidavam a assistir a Antonioni no cinema. Ele conclui com outros três versos geniais, uma antevisão de nossos tempos: “Tudo o que foi/ ontem é/ outra era”. A ação dos bolsonaristas teve esse condão. E é Moraes quem parece anunciar uma outra era no despacho em que decretou o afastamento do governador distrital Ibaneis Rocha.

“A Democracia brasileira não irá mais suportar a ignóbil política de apaziguamento, cujo fracasso foi amplamente demonstrado na tentativa de acordo do então primeiro-ministro inglês Neville Chamberlain com Adolf Hitler. Os agentes públicos (atuais e anteriores) que continuarem a ser portar dolosamente dessa maneira, pactuando covardemente com a quebra da democracia e a instalação de um estado de exceção, serão responsabilizados, pois como ensinava Winston Churchill, ‘um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado’”, escreveu Moraes.

O ministro Alexandre de Moraes deu seu mais duro despacho no inquérito dos atos antidemocráticos 

Moraes aproveitou o momento. Não apenas afastou Ibaneis. Também determinou o desmonte de todos os acampamentos na frente de quartéis, coisa que o Exército relutou fazer até domingo, bem como a prisão em flagrante de todos os acampados com base na lei antiterror, por tentativa de golpe de estado e de abolição do estado democrático de direito, além dos delitos de formação de quadrilha, ameaça e incitação ao crime. Se for levada ao pé da letra, a ordem poderá pôr na cadeia milhares de pessoas.

Também pôs a corda no pescoço das autoridades responsáveis para que sua ordem não se torne letra morta. Mandou intimar a todos os governadores, prefeitos e comandantes militares, que devem se envolver nessa operação. Os governadores devem cuidar para que suas polícias cumpram a ordem, os prefeitos devem auxiliar as polícias e os militares não devem se opor. Quem não obedecer ao ministro será responsabilizado. Também mandou apreender todos os ônibus usados nas caravanas dos extremistas, proibiu novos protestos até o dia 31 em Brasília e mandou retirar do ar 17 contas, páginas e perfis de bolsonaristas das redes sociais.

É o mais duro despacho do ministro até hoje no inquérito dos chamados atos antidemocráticos. “Com as imagens das câmeras de segurança, esse pessoal vai ser identificado e vai responder processo.... e os incitadores covardes estão longe. Tenho certeza que nenhum que estimulou a violência estava lá”, afirmou Santos Cruz. “Agora é inquérito, identificação de autoria de quem fez incitação à violência, financiamento, planejamento, execução e omissões. Isso é crime. Isso não é oposição política”, disse o general.

A reação de Moraes demorou poucas horas para se fazer sentir. Hoje, ela deve ser referendada pelos demais ministros do Supremo, todos horrorizados com o atentado contra o prédio da Corte, o vilipêndio de seus armários e cadeiras, onde um manifestante chegou a defecar. O ultraje à Justiça nunca chegou a esse ponto, nem quando o regime militar aposentou compulsoriamente ministros da Corte.

Integrantes do Movimento Integralista Brasileiro se reunem no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo em 2019.  Foto: FOTO: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

O mesmo pode se dizer sobre o Palácio do Planalto. A última vez que um Palácio presidencial fora atacado por golpistas ligados a um movimento político foi em 1938, quando a Ação Integralista do Brasil (AIB) atacou o Palácio da Guanabara, no Rio, com seu lema Deus, Pátria e Família, ressuscitado 80 anos depois pelo bolsonarismo. O putsch comandado pelo tenente Severo Fournier estourou no dia 11 de maio. Naquela madrugada, o então ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra, recebeu um telefonema do chefe de polícia, Filinto Muller. Estavam assaltando o palácio, residência do presidente da República, Getulio Vargas.

Ao lado de Muller estava o então coronel Oswaldo Cordeiro de Farias, então interventor no Rio Grande do Sul. Foi Cordeiro de Farias quem socorreu o ditador Vargas com cinco policiais armados – mais tarde receberia outros 40 soldados. Às cinco horas da manhã, conseguiu entrar pelos fundos do palácio e encontrou o presidente. “Vá descansar. Deixe o resto por minha conta.” Cordeiro tinha homens suficientes para resistir. No fim, os atacantes foram rendidos – acabaram fuzilados nos fundos do palácio. Seu líder, o tenente Furnier, fugiu. E se asilou na embaixada da Itália. O integralismo foi esmagado.

Após os atos de domingo, o general Santos Cruz afirmou que “a responsabilização rigorosa também tem que ser acompanhada de uma política de resolução de conflito. O Brasil não pode continuar em conflito, com baixíssimo nível de responsabilização (impunidade) e desunido”. De fato, o que não se sabe ainda é quais serão todas as medidas e passos do presidente Lula após a derrota da insurreição bolsonarista. Ele pode usar o episódio para tentar pacificar o País e obter consenso em torno da defesa da democracia, das instituições e de seu governo. O povo quer paz, não quer viver sob contínuos atropelos e sobressaltos.

Em seu despacho do domingo à noite, Moraes citou Churchill uma segunda vez. “A defesa da Democracia e das Instituições é inegociável, pois como ainda lembrado pelo grande primeiro-ministro inglês, ‘construir pode ser a tarefa lenta e difícil de anos. Destruir pode ser o ato impulsivo de um único dia’.” Tem razão o ministro. Mas essa é uma lição que deve ser dada não só aos que se deixaram iludir pelos extremismos, mas também a todas as autoridades, inclusive às que se dizem comprometidas com a democracia.

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