As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Investigações mostram como política de Bolsonaro arma o PCC


‘Cesta básica’ do crime formada por fuzis, carabinas e pistolas ficou até 65% mais barata com liberação de armas; ladrões de banco e traficantes estão pagando menos pelas ‘mercadorias’ porque agora podem comprá-las legalmente, por meio dos CACs

Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor,

Vitor Furtado, o Bala 40, foi surpreendido pela polícia e pelo Ministério Público do Rio vendendo armas para bandidos. Em São Paulo, no bairro do Lageado, na zona leste, os policiais do Departamento de Narcóticos (Denarc) encontraram um arsenal com fuzil, carabina, duas pistolas e dois revólveres com Diego Izidoro, de 35 anos, acusado de participar de um esquema de lavagem de dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC). Em Uberlândia, em Minas, a Polícia Federal apreendeu na casa de um outro integrante do PCC duas carabinas, um fuzil T4, duas pistolas, uma espingarda e um revólver. Ocorridos em três Estados diferentes, esses não são casos isolados. Indicam antes uma nova forma de agir do crime organizado.

Polícia apreendeu um arsenal na casa de um parente de um integrante do PCC que adquiriu as armas se tornando CAC. Foto: Polícia Civil/Divulgação
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Mas o que todos esses fatos têm a ver? Todas as armas foram compradas legalmente por laranjas ou por criminosos com extensa ficha criminal que se registraram como colecionadores, atiradores ou caçadores, os chamados CACs. A porteira que Jair Bolsonaro abriu para a turma do lobby da bala em 2019 e em 2020 com decretos que alteraram trechos do Estatuto do Desarmamento, ampliando o acesso a armas de fogo potentes, a munições e ao porte, facilitou a vida das facções criminosas. O Senado chegou a aprovar um decreto para derrubar as medidas, mas Bolsonaro decidiu revogá-las para evitar uma derrota no Legislativo.

Em seguida, o presidente reeditou normas com efeitos semelhantes. Em 2020, alterou regras ligadas a Produtos Controlados pelo Exército Brasileiro (PCE) e à aquisição, ao registro, ao cadastro e à posse de armas. O Comando do Exército participou do movimento, revogando em abril de 2020 três portarias do Comando Logístico (Colog), órgão que administra armas e munições. Elas tratavam do transporte, do rastreamento, da identificação e da marcação de armas, munições e produtos bélicos.

Sem isso, não seria mais possível saber onde um lote de balas usadas em um crime foi comprado e por quem. Também não seria mais possível saber se o CAC estava levando a arma ao clube de tiro ou se estava apenas circulando armado, o que é proibido. Era mais uma boiada para o crime organizado, cujos membros passaram a circular armados com a desculpa de serem CACs. Ao todo, Bolsonaro alterou, incluiu ou revogou mais de 300 dispositivos relacionados ao tema no Brasil.

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O pior é que a bandidagem tem agora a opção de comprar armas a um preço muito menor do que as facções eram obrigadas a pagar quando tudo vinha pelo contrabando da Bolívia ou do Paraguai. O novo esquema se vale do uso da concessão pelo Exército de licenças de caçadores, colecionadores e atiradores. Ele aproveita a fragilidade da fiscalização da Força na verificação de antecedentes criminais e na ausência de investigação social sobre os pretendentes a manter um arsenal em casa. Não se verifica se o endereço do futuro CAC é frio, se o documento é quente ou se ele têm ligação com criminosos.

Bolsonaro pratica tiro antes de compromissos oficiais, em Brasília. Foto: Reprodução/Facebook de Jair Bolsonaro

O homem preso pela PF em Minas com fuzis já tinha sido processado 16 vezes por tráfico de drogas e homicídio. Já o acusado detido em São Paulo tinha arsenal avaliado em R$ 50 mil, mas renda declarada de R$ 2 mil. Ele era ligado a Anísio Amaral da Silva, o “Biu”, uma liderança do PCC suspeita de participar do grupo do traficante de drogas Anselmo Santa Fausta. Importante fornecedor de cocaína para o Narcosul, o cartel da droga da facção, Santa Fausta comprou uma empresa de ônibus em São Paulo, a UPBus, que mantinha contrato de R$ 600 milhões com a Prefeitura, para lavar dinheiro do tráfico. Acabou assassinado por pistoleiros em dezembro de 2021, no Tatuapé, na zona leste.

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Um dos maiores especialistas em combate ao crime organizado do País, o promotor de Justiça Lincoln Gakiya contou à coluna que é muito fácil “pegar um laranja e tirar o certificado de CAC”. O documento é concedido pelo Exército. Se for para ser atirador, o integrante do crime organizado poderá comprar 30 armas com esse registro, sendo 15 fuzis de uso restrito e 6 mil munições por ano. Já se o bandido conseguir o registro de colecionador, ele não terá limite de compra de armas – apenas o “incômodo” de poder adquirir apenas cinco de cada modelo, como o fuzil AR-15, o Rugger (R$ 8 mil) ou uma carabina calibre 40 (R$ 7 mil).

“Eles (integrantes do PCC) pagavam de R$ 35 mil até R$ 59 mil num fuzil no mercado paralelo e agora pagam de R$ 12 mil a R$ 15 mil um (fuzil calibre) 556 com nota fiscal”, afirma o promotor. De acordo com ele, foram detectadas em várias investigações feitas em São Paulo pelo Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) determinações de integrantes da facção para proceder dessa maneira, ou seja, ordens para que bandidos obtivessem o registro de CAC e comprassem arsenais para o grupo. Gakiya não é contrário aos CACs. Ele mesmo é CAC há 30 anos, desde que ingressou no Ministério Público de São Paulo.

Jurado de morte pela facção em razão de seu trabalho, o promotor continua. “Em termos de negócio, comprar 10 fuzis no CAC gera uma economia significativa para eles (os bandidos).” Responsável pela transferência de toda a cúpula da facção, incluindo Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, de São Paulo para presídios federais e por investigações como a Operação Sharks, que localizou bilhões lavados pelo PCC com o tráfico, Gakiya contou ainda outra economia obtida pela facção com as regras atuais. A logística ficou facilitada. ”Imagine o custo, o peso e o trabalho para trazer de helicóptero do Paraguai ou da Bolívia 6 mil munições de calibre 556 (usadas em fuzis) se com apenas um CAC você pode fazer isso no Brasil. Compensa e bastante.”

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O Promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo Lincoln Gakiya, integrante do Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (GAECO). Foto: Marcio Oliveira/Estadão

A discussão sobre as armas nas mãos do crime sempre foi marcada pelo argumento de que a proibição de venda de fuzis aos particulares no País nunca impediu que os traficantes se armassem por meio do contrabando. Forças de segurança estaduais responsabilizavam a fiscalização nas fronteiras pela entrada do armamento proibido no Brasil. E, de fato, tudo isso acontecia. Mas a questão agora é outra. As facilidades plantadas pelo governo foram colhidas como um presente pelo crime organizado diante da incapacidade do Exército de controlar a multiplicação de CACs e as quantidades de armas que eles podem ter.

Para se ter uma ideia do tamanho do problema, basta ver os números do Exército. Segundo dados do Instituto Sou da Paz obtidos com a Força Terrestre, o número de pessoas com licença de CAC aumentou 262% entre julho de 2019 e março de 2022. Eles passaram de 167.390 para 605.313 pessoas. Ao todo, aumentaram 437.923 registros no período, uma média de 449 novos CACs por dia. Ao passar essa boiada para sua base armamentista, o presidente não favoreceu o “cidadão de bem”, mas os bandidos e seus laranjas com munições e armas baratas e em maior quantidade. E legalizadas. É com elas que o PCC pode invadir cidades e espalhar o terror pelo interior do País e impor o virtual monopólio do tráfico de drogas em São Paulo.

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Foi a falta de fiscalização – quase toda baseada em autodeclaração do interessado em ser CAC – que permitiu ao bandido mineiro do PCC enganar o Exército e comprar por R$ 17 mil um fuzil Taurus T4. Quem pensou que só pessoas endinheiradas teriam acesso a fuzis e munições esqueceu que a facção movimenta quase R$ 2 bilhões por ano só com o tráfico de drogas para a Europa. No País da inflação que bate na casa dos dois dígitos, só o crime organizado teve seu custo para comprar um fuzil reduzido em 65%, uma diminuição muito maior do que os motoristas que abastecem seus carros com gasolina nos postos do País tiveram com as manobras de Bolsonaro.

No mundo dos radicais as coisas são sempre assim. Abilolados, idealistas e extremistas sempre enxergam a realidade por meio de ideologias. Tudo ali é perfeito. Assim, para eles, se só o cidadão de bem vai comprar arma legalizada e barata, por que importuná-lo com uma fiscalização rigorosa e com controles rígidos? Por que criar uma estrutura que seja eficaz para a ordem pública do País? Desde setembro de 2021, o ministro Nunes Marques, do STF, mantém paralisado o julgamento sobre a legalidade dos decretos da boiada da bala por meio de um pedido de vistas na Corte. Ao falar sobre sua ideia de liberar as armas para defender a “liberdade”, Bolsonaro disse: “O povo está vibrando”. O PCC também, senhor presidente.

Caro leitor,

Vitor Furtado, o Bala 40, foi surpreendido pela polícia e pelo Ministério Público do Rio vendendo armas para bandidos. Em São Paulo, no bairro do Lageado, na zona leste, os policiais do Departamento de Narcóticos (Denarc) encontraram um arsenal com fuzil, carabina, duas pistolas e dois revólveres com Diego Izidoro, de 35 anos, acusado de participar de um esquema de lavagem de dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC). Em Uberlândia, em Minas, a Polícia Federal apreendeu na casa de um outro integrante do PCC duas carabinas, um fuzil T4, duas pistolas, uma espingarda e um revólver. Ocorridos em três Estados diferentes, esses não são casos isolados. Indicam antes uma nova forma de agir do crime organizado.

Polícia apreendeu um arsenal na casa de um parente de um integrante do PCC que adquiriu as armas se tornando CAC. Foto: Polícia Civil/Divulgação

Mas o que todos esses fatos têm a ver? Todas as armas foram compradas legalmente por laranjas ou por criminosos com extensa ficha criminal que se registraram como colecionadores, atiradores ou caçadores, os chamados CACs. A porteira que Jair Bolsonaro abriu para a turma do lobby da bala em 2019 e em 2020 com decretos que alteraram trechos do Estatuto do Desarmamento, ampliando o acesso a armas de fogo potentes, a munições e ao porte, facilitou a vida das facções criminosas. O Senado chegou a aprovar um decreto para derrubar as medidas, mas Bolsonaro decidiu revogá-las para evitar uma derrota no Legislativo.

Em seguida, o presidente reeditou normas com efeitos semelhantes. Em 2020, alterou regras ligadas a Produtos Controlados pelo Exército Brasileiro (PCE) e à aquisição, ao registro, ao cadastro e à posse de armas. O Comando do Exército participou do movimento, revogando em abril de 2020 três portarias do Comando Logístico (Colog), órgão que administra armas e munições. Elas tratavam do transporte, do rastreamento, da identificação e da marcação de armas, munições e produtos bélicos.

Sem isso, não seria mais possível saber onde um lote de balas usadas em um crime foi comprado e por quem. Também não seria mais possível saber se o CAC estava levando a arma ao clube de tiro ou se estava apenas circulando armado, o que é proibido. Era mais uma boiada para o crime organizado, cujos membros passaram a circular armados com a desculpa de serem CACs. Ao todo, Bolsonaro alterou, incluiu ou revogou mais de 300 dispositivos relacionados ao tema no Brasil.

O pior é que a bandidagem tem agora a opção de comprar armas a um preço muito menor do que as facções eram obrigadas a pagar quando tudo vinha pelo contrabando da Bolívia ou do Paraguai. O novo esquema se vale do uso da concessão pelo Exército de licenças de caçadores, colecionadores e atiradores. Ele aproveita a fragilidade da fiscalização da Força na verificação de antecedentes criminais e na ausência de investigação social sobre os pretendentes a manter um arsenal em casa. Não se verifica se o endereço do futuro CAC é frio, se o documento é quente ou se ele têm ligação com criminosos.

Bolsonaro pratica tiro antes de compromissos oficiais, em Brasília. Foto: Reprodução/Facebook de Jair Bolsonaro

O homem preso pela PF em Minas com fuzis já tinha sido processado 16 vezes por tráfico de drogas e homicídio. Já o acusado detido em São Paulo tinha arsenal avaliado em R$ 50 mil, mas renda declarada de R$ 2 mil. Ele era ligado a Anísio Amaral da Silva, o “Biu”, uma liderança do PCC suspeita de participar do grupo do traficante de drogas Anselmo Santa Fausta. Importante fornecedor de cocaína para o Narcosul, o cartel da droga da facção, Santa Fausta comprou uma empresa de ônibus em São Paulo, a UPBus, que mantinha contrato de R$ 600 milhões com a Prefeitura, para lavar dinheiro do tráfico. Acabou assassinado por pistoleiros em dezembro de 2021, no Tatuapé, na zona leste.

Um dos maiores especialistas em combate ao crime organizado do País, o promotor de Justiça Lincoln Gakiya contou à coluna que é muito fácil “pegar um laranja e tirar o certificado de CAC”. O documento é concedido pelo Exército. Se for para ser atirador, o integrante do crime organizado poderá comprar 30 armas com esse registro, sendo 15 fuzis de uso restrito e 6 mil munições por ano. Já se o bandido conseguir o registro de colecionador, ele não terá limite de compra de armas – apenas o “incômodo” de poder adquirir apenas cinco de cada modelo, como o fuzil AR-15, o Rugger (R$ 8 mil) ou uma carabina calibre 40 (R$ 7 mil).

“Eles (integrantes do PCC) pagavam de R$ 35 mil até R$ 59 mil num fuzil no mercado paralelo e agora pagam de R$ 12 mil a R$ 15 mil um (fuzil calibre) 556 com nota fiscal”, afirma o promotor. De acordo com ele, foram detectadas em várias investigações feitas em São Paulo pelo Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) determinações de integrantes da facção para proceder dessa maneira, ou seja, ordens para que bandidos obtivessem o registro de CAC e comprassem arsenais para o grupo. Gakiya não é contrário aos CACs. Ele mesmo é CAC há 30 anos, desde que ingressou no Ministério Público de São Paulo.

Jurado de morte pela facção em razão de seu trabalho, o promotor continua. “Em termos de negócio, comprar 10 fuzis no CAC gera uma economia significativa para eles (os bandidos).” Responsável pela transferência de toda a cúpula da facção, incluindo Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, de São Paulo para presídios federais e por investigações como a Operação Sharks, que localizou bilhões lavados pelo PCC com o tráfico, Gakiya contou ainda outra economia obtida pela facção com as regras atuais. A logística ficou facilitada. ”Imagine o custo, o peso e o trabalho para trazer de helicóptero do Paraguai ou da Bolívia 6 mil munições de calibre 556 (usadas em fuzis) se com apenas um CAC você pode fazer isso no Brasil. Compensa e bastante.”

O Promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo Lincoln Gakiya, integrante do Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (GAECO). Foto: Marcio Oliveira/Estadão

A discussão sobre as armas nas mãos do crime sempre foi marcada pelo argumento de que a proibição de venda de fuzis aos particulares no País nunca impediu que os traficantes se armassem por meio do contrabando. Forças de segurança estaduais responsabilizavam a fiscalização nas fronteiras pela entrada do armamento proibido no Brasil. E, de fato, tudo isso acontecia. Mas a questão agora é outra. As facilidades plantadas pelo governo foram colhidas como um presente pelo crime organizado diante da incapacidade do Exército de controlar a multiplicação de CACs e as quantidades de armas que eles podem ter.

Para se ter uma ideia do tamanho do problema, basta ver os números do Exército. Segundo dados do Instituto Sou da Paz obtidos com a Força Terrestre, o número de pessoas com licença de CAC aumentou 262% entre julho de 2019 e março de 2022. Eles passaram de 167.390 para 605.313 pessoas. Ao todo, aumentaram 437.923 registros no período, uma média de 449 novos CACs por dia. Ao passar essa boiada para sua base armamentista, o presidente não favoreceu o “cidadão de bem”, mas os bandidos e seus laranjas com munições e armas baratas e em maior quantidade. E legalizadas. É com elas que o PCC pode invadir cidades e espalhar o terror pelo interior do País e impor o virtual monopólio do tráfico de drogas em São Paulo.

Foi a falta de fiscalização – quase toda baseada em autodeclaração do interessado em ser CAC – que permitiu ao bandido mineiro do PCC enganar o Exército e comprar por R$ 17 mil um fuzil Taurus T4. Quem pensou que só pessoas endinheiradas teriam acesso a fuzis e munições esqueceu que a facção movimenta quase R$ 2 bilhões por ano só com o tráfico de drogas para a Europa. No País da inflação que bate na casa dos dois dígitos, só o crime organizado teve seu custo para comprar um fuzil reduzido em 65%, uma diminuição muito maior do que os motoristas que abastecem seus carros com gasolina nos postos do País tiveram com as manobras de Bolsonaro.

No mundo dos radicais as coisas são sempre assim. Abilolados, idealistas e extremistas sempre enxergam a realidade por meio de ideologias. Tudo ali é perfeito. Assim, para eles, se só o cidadão de bem vai comprar arma legalizada e barata, por que importuná-lo com uma fiscalização rigorosa e com controles rígidos? Por que criar uma estrutura que seja eficaz para a ordem pública do País? Desde setembro de 2021, o ministro Nunes Marques, do STF, mantém paralisado o julgamento sobre a legalidade dos decretos da boiada da bala por meio de um pedido de vistas na Corte. Ao falar sobre sua ideia de liberar as armas para defender a “liberdade”, Bolsonaro disse: “O povo está vibrando”. O PCC também, senhor presidente.

Caro leitor,

Vitor Furtado, o Bala 40, foi surpreendido pela polícia e pelo Ministério Público do Rio vendendo armas para bandidos. Em São Paulo, no bairro do Lageado, na zona leste, os policiais do Departamento de Narcóticos (Denarc) encontraram um arsenal com fuzil, carabina, duas pistolas e dois revólveres com Diego Izidoro, de 35 anos, acusado de participar de um esquema de lavagem de dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC). Em Uberlândia, em Minas, a Polícia Federal apreendeu na casa de um outro integrante do PCC duas carabinas, um fuzil T4, duas pistolas, uma espingarda e um revólver. Ocorridos em três Estados diferentes, esses não são casos isolados. Indicam antes uma nova forma de agir do crime organizado.

Polícia apreendeu um arsenal na casa de um parente de um integrante do PCC que adquiriu as armas se tornando CAC. Foto: Polícia Civil/Divulgação

Mas o que todos esses fatos têm a ver? Todas as armas foram compradas legalmente por laranjas ou por criminosos com extensa ficha criminal que se registraram como colecionadores, atiradores ou caçadores, os chamados CACs. A porteira que Jair Bolsonaro abriu para a turma do lobby da bala em 2019 e em 2020 com decretos que alteraram trechos do Estatuto do Desarmamento, ampliando o acesso a armas de fogo potentes, a munições e ao porte, facilitou a vida das facções criminosas. O Senado chegou a aprovar um decreto para derrubar as medidas, mas Bolsonaro decidiu revogá-las para evitar uma derrota no Legislativo.

Em seguida, o presidente reeditou normas com efeitos semelhantes. Em 2020, alterou regras ligadas a Produtos Controlados pelo Exército Brasileiro (PCE) e à aquisição, ao registro, ao cadastro e à posse de armas. O Comando do Exército participou do movimento, revogando em abril de 2020 três portarias do Comando Logístico (Colog), órgão que administra armas e munições. Elas tratavam do transporte, do rastreamento, da identificação e da marcação de armas, munições e produtos bélicos.

Sem isso, não seria mais possível saber onde um lote de balas usadas em um crime foi comprado e por quem. Também não seria mais possível saber se o CAC estava levando a arma ao clube de tiro ou se estava apenas circulando armado, o que é proibido. Era mais uma boiada para o crime organizado, cujos membros passaram a circular armados com a desculpa de serem CACs. Ao todo, Bolsonaro alterou, incluiu ou revogou mais de 300 dispositivos relacionados ao tema no Brasil.

O pior é que a bandidagem tem agora a opção de comprar armas a um preço muito menor do que as facções eram obrigadas a pagar quando tudo vinha pelo contrabando da Bolívia ou do Paraguai. O novo esquema se vale do uso da concessão pelo Exército de licenças de caçadores, colecionadores e atiradores. Ele aproveita a fragilidade da fiscalização da Força na verificação de antecedentes criminais e na ausência de investigação social sobre os pretendentes a manter um arsenal em casa. Não se verifica se o endereço do futuro CAC é frio, se o documento é quente ou se ele têm ligação com criminosos.

Bolsonaro pratica tiro antes de compromissos oficiais, em Brasília. Foto: Reprodução/Facebook de Jair Bolsonaro

O homem preso pela PF em Minas com fuzis já tinha sido processado 16 vezes por tráfico de drogas e homicídio. Já o acusado detido em São Paulo tinha arsenal avaliado em R$ 50 mil, mas renda declarada de R$ 2 mil. Ele era ligado a Anísio Amaral da Silva, o “Biu”, uma liderança do PCC suspeita de participar do grupo do traficante de drogas Anselmo Santa Fausta. Importante fornecedor de cocaína para o Narcosul, o cartel da droga da facção, Santa Fausta comprou uma empresa de ônibus em São Paulo, a UPBus, que mantinha contrato de R$ 600 milhões com a Prefeitura, para lavar dinheiro do tráfico. Acabou assassinado por pistoleiros em dezembro de 2021, no Tatuapé, na zona leste.

Um dos maiores especialistas em combate ao crime organizado do País, o promotor de Justiça Lincoln Gakiya contou à coluna que é muito fácil “pegar um laranja e tirar o certificado de CAC”. O documento é concedido pelo Exército. Se for para ser atirador, o integrante do crime organizado poderá comprar 30 armas com esse registro, sendo 15 fuzis de uso restrito e 6 mil munições por ano. Já se o bandido conseguir o registro de colecionador, ele não terá limite de compra de armas – apenas o “incômodo” de poder adquirir apenas cinco de cada modelo, como o fuzil AR-15, o Rugger (R$ 8 mil) ou uma carabina calibre 40 (R$ 7 mil).

“Eles (integrantes do PCC) pagavam de R$ 35 mil até R$ 59 mil num fuzil no mercado paralelo e agora pagam de R$ 12 mil a R$ 15 mil um (fuzil calibre) 556 com nota fiscal”, afirma o promotor. De acordo com ele, foram detectadas em várias investigações feitas em São Paulo pelo Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) determinações de integrantes da facção para proceder dessa maneira, ou seja, ordens para que bandidos obtivessem o registro de CAC e comprassem arsenais para o grupo. Gakiya não é contrário aos CACs. Ele mesmo é CAC há 30 anos, desde que ingressou no Ministério Público de São Paulo.

Jurado de morte pela facção em razão de seu trabalho, o promotor continua. “Em termos de negócio, comprar 10 fuzis no CAC gera uma economia significativa para eles (os bandidos).” Responsável pela transferência de toda a cúpula da facção, incluindo Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, de São Paulo para presídios federais e por investigações como a Operação Sharks, que localizou bilhões lavados pelo PCC com o tráfico, Gakiya contou ainda outra economia obtida pela facção com as regras atuais. A logística ficou facilitada. ”Imagine o custo, o peso e o trabalho para trazer de helicóptero do Paraguai ou da Bolívia 6 mil munições de calibre 556 (usadas em fuzis) se com apenas um CAC você pode fazer isso no Brasil. Compensa e bastante.”

O Promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo Lincoln Gakiya, integrante do Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (GAECO). Foto: Marcio Oliveira/Estadão

A discussão sobre as armas nas mãos do crime sempre foi marcada pelo argumento de que a proibição de venda de fuzis aos particulares no País nunca impediu que os traficantes se armassem por meio do contrabando. Forças de segurança estaduais responsabilizavam a fiscalização nas fronteiras pela entrada do armamento proibido no Brasil. E, de fato, tudo isso acontecia. Mas a questão agora é outra. As facilidades plantadas pelo governo foram colhidas como um presente pelo crime organizado diante da incapacidade do Exército de controlar a multiplicação de CACs e as quantidades de armas que eles podem ter.

Para se ter uma ideia do tamanho do problema, basta ver os números do Exército. Segundo dados do Instituto Sou da Paz obtidos com a Força Terrestre, o número de pessoas com licença de CAC aumentou 262% entre julho de 2019 e março de 2022. Eles passaram de 167.390 para 605.313 pessoas. Ao todo, aumentaram 437.923 registros no período, uma média de 449 novos CACs por dia. Ao passar essa boiada para sua base armamentista, o presidente não favoreceu o “cidadão de bem”, mas os bandidos e seus laranjas com munições e armas baratas e em maior quantidade. E legalizadas. É com elas que o PCC pode invadir cidades e espalhar o terror pelo interior do País e impor o virtual monopólio do tráfico de drogas em São Paulo.

Foi a falta de fiscalização – quase toda baseada em autodeclaração do interessado em ser CAC – que permitiu ao bandido mineiro do PCC enganar o Exército e comprar por R$ 17 mil um fuzil Taurus T4. Quem pensou que só pessoas endinheiradas teriam acesso a fuzis e munições esqueceu que a facção movimenta quase R$ 2 bilhões por ano só com o tráfico de drogas para a Europa. No País da inflação que bate na casa dos dois dígitos, só o crime organizado teve seu custo para comprar um fuzil reduzido em 65%, uma diminuição muito maior do que os motoristas que abastecem seus carros com gasolina nos postos do País tiveram com as manobras de Bolsonaro.

No mundo dos radicais as coisas são sempre assim. Abilolados, idealistas e extremistas sempre enxergam a realidade por meio de ideologias. Tudo ali é perfeito. Assim, para eles, se só o cidadão de bem vai comprar arma legalizada e barata, por que importuná-lo com uma fiscalização rigorosa e com controles rígidos? Por que criar uma estrutura que seja eficaz para a ordem pública do País? Desde setembro de 2021, o ministro Nunes Marques, do STF, mantém paralisado o julgamento sobre a legalidade dos decretos da boiada da bala por meio de um pedido de vistas na Corte. Ao falar sobre sua ideia de liberar as armas para defender a “liberdade”, Bolsonaro disse: “O povo está vibrando”. O PCC também, senhor presidente.

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