As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Análise|Mapa revela unidades com mais punição disciplinar no Exército nos governos Lula, Bolsonaro e Temer


Batalhão Santa Catarina, do Rio, de logística e da Guarda Presidencial lideram o ranking; primeiro ano de Lula registra queda de 48% dos casos ante mesmo período de Bolsonaro

Por Marcelo Godoy
Atualização:

O Exército brasileiro aplicou 7.218 punições disciplinares entre 2016 e 2023 à sua tropa. As três sanções mais comuns foram a advertência, com 2.483 casos, a repreensão, com 2.315 ocorrências, e a prisão disciplinar, imposta em 1.177 oportunidades. A evolução dos eventos da Base de Dados Corporativa do Pessoal (BDCP) do Exército mostra que os anos com maior número de punições disciplinares do período foram 2017 e 2019, durante as presidências de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), ultrapassando a casa do milhar.

Militares desfilam durante cerimônia em comemoração ao Dia do Exército realizada em abril no Quartel General do Exército em Brasília, FOTO: WILTON JUNIOR/ ESTADÃO Foto: WILTON JUNIOR/Estadão
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Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo Fiquem Sabendo, uma organização sem fins lucrativos especializada no acesso a informações públicas. Eles mostram que o primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva registrou uma queda de 48% no número de casos de punições disciplinares em relação a 2019, o primeiro ano de Bolsonaro – 670 eventos ante 1.018 eventos.

Quando se analisa unidade por unidade é possível traçar um mapa das punições disciplinares. Nele, o 5.º Batalhão de Engenharia de Combate Blindado, com sede em Porto União (SC), é a unidade do Exército brasileiro que mais puniu disciplinarmente seus integrantes entre 2016 e 2023. Ao todo, foram 142 sanções aplicadas aos seus integrantes. Foram 61 advertências, 31 repreensões, 25 detenções disciplinares, 14 impedimentos, dez prisões disciplinares e uma expulsão. Foram 72 casos no governo Temer, 59 na gestão Bolsonaro e 11 no primeiro ano de Lula.

Mas o Estado que concentra o maior número de eventos entre as 20 unidades mais bem colocadas nesse ranking é o Rio de Janeiro. Ao todo, cinco de unidades – o 1.º Batalhão de Infantaria Mecanizado (2.º lugar), o 1.º Batalhão de Engenharia de Combate (7.º lugar), o 1.º Batalhão de Guardas (8.º lugar), o 15.º Regimento de Cavalaria Mecanizado (10.º lugar) e o 57.º Batalhão de Infantaria Motorizado (13.º lugar) – figuram nessa lista.

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Em 6.º lugar entre as unidades que mais puniram está o Batalhão da Guarda Presidencial, que esteve no centro dos eventos de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas invadiram as sedes dos Três Poderes. Ao todo, o batalhão registrou 55 punições no período estudado. Foram 15 em 2016, 2 em 2017, e 5 em 2018 durante o governo de Temer. Na administração Bolsonaro, a unidade teve 13 casos em 2019, 12 em 2020, nenhum em 2021 e apenas 2 em 2022. No ano do 8 de janeiro, 2023, o número voltou a crescer e chegou a 6 transgressões: duas advertências, três repreensões e uma detenção disciplinar.

Há ainda 3 unidades gaúchas, três paranaenses, duas do Amazonas, duas sul-mato-grossenses, uma paulista, uma brasiliense e uma rondoniense na lista. A divisão por Armas do Exército mostra que oito das 20 unidades são de Infantaria, seguidas por 4 de Engenharia, 4 de Cavalaria, duas de Artilharia e duas Logísticas, incluindo aqui a única do Comando Militar do Sudeste (CMSE), o 22.º Batalhão de Logística, de Barueri, na Grande São Paulo.

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Já o Arsenal de Guerra de São Paulo registrava apenas 4 casos no período, pois não haviam sido registradas no BDCP as consequências do furto de 21 metralhadoras, que levou à denúncia criminal contra 4 militares e quatro civis, além de punições disciplinares a 38 militares, o que levaria a unidade a ficar em 21.º lugar entre as organizações com maior número de eventos registrados. Ao todo, 587 unidades registraram punições disciplinares no período estudado.

As punições às transgressões disciplinares tem uma hierarquia. A advertência é a mais leve e não é anotada na ficha do militar. A repreensão se diferencia dela justamente porque ela passa a constar na histórico de quem é punido. Acima dela estão as detenção disciplinar, o impedimento disciplinar e prisão disciplinar, todas elas usadas para casos relacionados às transgressões do Regulamento Disciplinar do Exército. Há ainda punições que podem ser motivadas por crimes dolosos, por crime culposos ou contravenções. Nesses casos, além do apuração disciplinar, o militar é submetido a um Inquérito Policial-Militar (IPM).

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Hipóteses para as variações estatísticas

Como os dados reunidos envolvem todas as 652 organizações militares da Força Terrestre, variáveis como mudanças pontuais de comandantes e localização das unidades tendem a ser menos importantes no universo total do que quando se analisa o histórico de cada organização. Ou seja, em tese, seria necessário estudar hipóteses que afetassem o Exército como um todo para entender a variação estatística ano a ano, se ela é acidental ou se há causas que indiquem a razão desse movimento, que podem ter correlação com os dados. Este é o desafio dos cientistas políticos, jornalistas e pesquisadores militares e civis do tema.

Uma das hipóteses que pode ser estudada é se há correlação entre a contaminação política dos quartéis com os casos de indisciplina. É conhecida a tese de que quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina se ausenta da unidade pela outra. Levando-se em consideração que o comando do Exército era o mesmo para os anos 2016 a 2018 e 2019 e 2020, não seria a troca de comando que explicaria os picos observados em 2017 e 2019, únicos anos em que o total de casos ultrapassou a barreira dos mil.

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De fato, em 2017, foram registradas 1.050 punições e em 2019, 1.018. Nos demais anos, até 2022, o total de casos, em média, esteve próximo dos 900. A única exceção foi 2023, quando se registrou o mais baixo número do período. “A hipótese da correlação com a contaminação política é lícita e deve ser estudada”, afirmou o professor João Roberto Martins Filho. Esse foi o caso em 2022 do major major João Paulo da Costa Araújo, do 2.º Batalhão de Engenharia de Construção (2.º BEC), em Teresina. Militar da ativa, ele se dizia pré-candidato a deputado federal e desafiava seus comandantes nas redes sociais. Acabou preso.

No mesmo sentido, acredita a professora Adriana Marques, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Esse é o período (2016 a 2023) da volta do protagonismo dos militares na política, da volta da política nos quartéis. É preciso saber se há oficial punido, qual o tipo de punição dos praças e dos oficiais.”

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Ela vai além. Seria preciso aprofundar os dados. “Essas punições se referem ao comportamento do militar em relação aos superiores. São casos em que o militar chegou atrasado ou estava com farda em desacordo com as normas. Casos, portanto, ligados ao comportamento militar. Antes de olhar região, Arma e unidades é preciso saber quem está sendo punido e por quê. É importante ter acesso aos dados para saber”, afirmou

A coluna consultou militares sobre esses dados. Dois generais analisaram as informações obtidas por meio da LAI e enfatizaram os fatores endógenos para explicar o mapa das punições pelo País. Em relação às unidades, seria necessário levar em consideração a localização de cada quartel, pois o soldado dos grandes centros tem comportamento diferente daqueles de centros menores, bem como existem diferenças entre conscritos e voluntários, assim como entre as realidades culturais das várias regiões do País.

O professor do CECH, Centro de Estudos de Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos, Professor João Roberto Martins Filho: "Hipótese sobre a contaminação política deve ser verificada" Foto: Celio Messias/AE

Os militares também apontam como causa a cultura de cada organização militar e as especificidades de cada Arma e também o comportamento dos comandantes. Um oficial mais duro pode gerar mais punições do que outro acostumado a resolver conflitos “na base da conversa”. Além disso, seria necessário levar em consideração a mudança anual dos conscritos, bem como a de comando da unidade a cada dois anos. Por tudo isso, os militares acreditam ser difícil isolar variáveis, tornando as análises sobre causas um exercício especulativo, mesmo sabendo que o Exército é um recorte da sociedade do País.

Para que os dados sobre as infrações disciplinares se tornassem públicos, foi preciso que o caso chegasse até a Controladoria Geral da União (CGU). No começo, o Exército alegou que se tratava de trabalho excessivo e, com base na lei, recusou a recolher as informações. Mas a CGU entendeu que o argumento da Força só em parte procedia, determinando, assim, que os dados quantitativos sobre os casos de punições fossem fornecidos. Como mostram as opiniões de militares e de pesquisadores, para se avançar na análise sobre a realidade disciplinar na Força, seria necessário aprofundar a apuração dos dados.

Seria necessário verificar se as punições acontecem mais no começo do ano, quando o recruta ainda não se ambientou no quartel, por exemplo. Ou ainda como é a dinâmica das punições de graduados e oficiais. O trabalho de verificar que tipo de situação causou a punição seria fundamental. Isso poderia isolar causas como o atraso contumaz, a farda em desalinho, o corte de cabelo fora do padrão de situações mais graves, que implicariam não só no processo disciplinar, bem como na abertura de inquérito policial militar.

Mais ainda. Seria possível saber a quantidade exata de punições dadas em razão do desenvolvimento de atividade político-partidária proibida, manifestações políticas não autorizadas ou críticas indevidas aos superiores, bem como pelo uso indevido das redes sociais. Assim seria possível verificar hipóteses como a de contaminação política dos quartéis e como ela foi tratada na área responsável pela Justiça e Disciplina das organizações militares.

Transparência e processos disciplinares

Os resultados sobre apurações disciplinares devem obedecer, conforme o enunciado nº 3/2023 da CGU, as mesmas regras referentes aos servidores civis, ou seja, são reservados somente até o julgamento. A decisão, foi motivada pelo caso do ex-ministro da Saúde e hoje deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), que era ainda general da ativa quando subiu no palanque de Jair Bolsonaro. O Exército queria manter em sigilo por cem anos a apuração disciplinar do caso, mas a CGU determinou que ela devia ser pública.

General Eduardo Pazuello (à esq.) com o presidente Jair Bolsonaro em ato pró-governo no Rio: processo disciplinar foi mantido em sigilo pelo Exército Foto: Wilton Junior / Estadão

As Forças Armadas reagiram à decisão e, por meio do Ministério da Defesa, buscam a volta do status anterior, alegando que a publicidade das punições pode atrapalhar a manutenção da disciplina nos quartéis. Um capitão que tivesse sido punido como tenente por chegar atrasado a um unidade não teria mais autoridade para punir um sargento se a sua antiga punição fosse de conhecimento de todos.

A proposta das Forças, porém, não exclui os casos de procedimentos disciplinares abertos em razão de crimes que tornam o militar indignos do oficialato ou de violações dos direitos humanos, nem dos casos de transgressões cometidas por aqueles que estão ocupando funções civis, como era o caso de Pazuello. O retorno ao status anterior, também para esses casos, trata-se de algo contrário ao princípio exposto por Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte dos EUA, de que “a luz do sol é o melhor desinfetante”.

Por enquanto, parecer da Advocacia Geral da União (AGU) acolheu o sigilo apenas dos casos em que a segurança do País ou de instalações militares estão em risco e os em que as punições foram canceladas para que a CGU modifique o Enunciado 03/2023. Seria preciso achar uma solução que evite o prejuízo à pesquisa acadêmica sobre o tema e ao mesmo tempo não afete a disciplina, sem o retorno do status quo anterior, que protegia com o sigilo, em tese, até casos de crimes hediondos e de transgressões feitas no exercício de atividades civis ou político-partidárias, como Pazuello.

O mapa da punição da indisciplina mostra que a transparência, a integridade e idoneidade de gestores públicos, pesquisadores e dos dados disponíveis a eles podem ajudar a sociedade e os comandantes a conhecer a realidade e a tomar decisões, derrubando muros seculares de incompreensão, suspeitas e preconceitos. Eis um ponto em que todos os ouvidos pela coluna sobre o tema concordam.

O Exército brasileiro aplicou 7.218 punições disciplinares entre 2016 e 2023 à sua tropa. As três sanções mais comuns foram a advertência, com 2.483 casos, a repreensão, com 2.315 ocorrências, e a prisão disciplinar, imposta em 1.177 oportunidades. A evolução dos eventos da Base de Dados Corporativa do Pessoal (BDCP) do Exército mostra que os anos com maior número de punições disciplinares do período foram 2017 e 2019, durante as presidências de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), ultrapassando a casa do milhar.

Militares desfilam durante cerimônia em comemoração ao Dia do Exército realizada em abril no Quartel General do Exército em Brasília, FOTO: WILTON JUNIOR/ ESTADÃO Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo Fiquem Sabendo, uma organização sem fins lucrativos especializada no acesso a informações públicas. Eles mostram que o primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva registrou uma queda de 48% no número de casos de punições disciplinares em relação a 2019, o primeiro ano de Bolsonaro – 670 eventos ante 1.018 eventos.

Quando se analisa unidade por unidade é possível traçar um mapa das punições disciplinares. Nele, o 5.º Batalhão de Engenharia de Combate Blindado, com sede em Porto União (SC), é a unidade do Exército brasileiro que mais puniu disciplinarmente seus integrantes entre 2016 e 2023. Ao todo, foram 142 sanções aplicadas aos seus integrantes. Foram 61 advertências, 31 repreensões, 25 detenções disciplinares, 14 impedimentos, dez prisões disciplinares e uma expulsão. Foram 72 casos no governo Temer, 59 na gestão Bolsonaro e 11 no primeiro ano de Lula.

Mas o Estado que concentra o maior número de eventos entre as 20 unidades mais bem colocadas nesse ranking é o Rio de Janeiro. Ao todo, cinco de unidades – o 1.º Batalhão de Infantaria Mecanizado (2.º lugar), o 1.º Batalhão de Engenharia de Combate (7.º lugar), o 1.º Batalhão de Guardas (8.º lugar), o 15.º Regimento de Cavalaria Mecanizado (10.º lugar) e o 57.º Batalhão de Infantaria Motorizado (13.º lugar) – figuram nessa lista.

Em 6.º lugar entre as unidades que mais puniram está o Batalhão da Guarda Presidencial, que esteve no centro dos eventos de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas invadiram as sedes dos Três Poderes. Ao todo, o batalhão registrou 55 punições no período estudado. Foram 15 em 2016, 2 em 2017, e 5 em 2018 durante o governo de Temer. Na administração Bolsonaro, a unidade teve 13 casos em 2019, 12 em 2020, nenhum em 2021 e apenas 2 em 2022. No ano do 8 de janeiro, 2023, o número voltou a crescer e chegou a 6 transgressões: duas advertências, três repreensões e uma detenção disciplinar.

Há ainda 3 unidades gaúchas, três paranaenses, duas do Amazonas, duas sul-mato-grossenses, uma paulista, uma brasiliense e uma rondoniense na lista. A divisão por Armas do Exército mostra que oito das 20 unidades são de Infantaria, seguidas por 4 de Engenharia, 4 de Cavalaria, duas de Artilharia e duas Logísticas, incluindo aqui a única do Comando Militar do Sudeste (CMSE), o 22.º Batalhão de Logística, de Barueri, na Grande São Paulo.

Já o Arsenal de Guerra de São Paulo registrava apenas 4 casos no período, pois não haviam sido registradas no BDCP as consequências do furto de 21 metralhadoras, que levou à denúncia criminal contra 4 militares e quatro civis, além de punições disciplinares a 38 militares, o que levaria a unidade a ficar em 21.º lugar entre as organizações com maior número de eventos registrados. Ao todo, 587 unidades registraram punições disciplinares no período estudado.

As punições às transgressões disciplinares tem uma hierarquia. A advertência é a mais leve e não é anotada na ficha do militar. A repreensão se diferencia dela justamente porque ela passa a constar na histórico de quem é punido. Acima dela estão as detenção disciplinar, o impedimento disciplinar e prisão disciplinar, todas elas usadas para casos relacionados às transgressões do Regulamento Disciplinar do Exército. Há ainda punições que podem ser motivadas por crimes dolosos, por crime culposos ou contravenções. Nesses casos, além do apuração disciplinar, o militar é submetido a um Inquérito Policial-Militar (IPM).

Hipóteses para as variações estatísticas

Como os dados reunidos envolvem todas as 652 organizações militares da Força Terrestre, variáveis como mudanças pontuais de comandantes e localização das unidades tendem a ser menos importantes no universo total do que quando se analisa o histórico de cada organização. Ou seja, em tese, seria necessário estudar hipóteses que afetassem o Exército como um todo para entender a variação estatística ano a ano, se ela é acidental ou se há causas que indiquem a razão desse movimento, que podem ter correlação com os dados. Este é o desafio dos cientistas políticos, jornalistas e pesquisadores militares e civis do tema.

Uma das hipóteses que pode ser estudada é se há correlação entre a contaminação política dos quartéis com os casos de indisciplina. É conhecida a tese de que quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina se ausenta da unidade pela outra. Levando-se em consideração que o comando do Exército era o mesmo para os anos 2016 a 2018 e 2019 e 2020, não seria a troca de comando que explicaria os picos observados em 2017 e 2019, únicos anos em que o total de casos ultrapassou a barreira dos mil.

De fato, em 2017, foram registradas 1.050 punições e em 2019, 1.018. Nos demais anos, até 2022, o total de casos, em média, esteve próximo dos 900. A única exceção foi 2023, quando se registrou o mais baixo número do período. “A hipótese da correlação com a contaminação política é lícita e deve ser estudada”, afirmou o professor João Roberto Martins Filho. Esse foi o caso em 2022 do major major João Paulo da Costa Araújo, do 2.º Batalhão de Engenharia de Construção (2.º BEC), em Teresina. Militar da ativa, ele se dizia pré-candidato a deputado federal e desafiava seus comandantes nas redes sociais. Acabou preso.

No mesmo sentido, acredita a professora Adriana Marques, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Esse é o período (2016 a 2023) da volta do protagonismo dos militares na política, da volta da política nos quartéis. É preciso saber se há oficial punido, qual o tipo de punição dos praças e dos oficiais.”

Ela vai além. Seria preciso aprofundar os dados. “Essas punições se referem ao comportamento do militar em relação aos superiores. São casos em que o militar chegou atrasado ou estava com farda em desacordo com as normas. Casos, portanto, ligados ao comportamento militar. Antes de olhar região, Arma e unidades é preciso saber quem está sendo punido e por quê. É importante ter acesso aos dados para saber”, afirmou

A coluna consultou militares sobre esses dados. Dois generais analisaram as informações obtidas por meio da LAI e enfatizaram os fatores endógenos para explicar o mapa das punições pelo País. Em relação às unidades, seria necessário levar em consideração a localização de cada quartel, pois o soldado dos grandes centros tem comportamento diferente daqueles de centros menores, bem como existem diferenças entre conscritos e voluntários, assim como entre as realidades culturais das várias regiões do País.

O professor do CECH, Centro de Estudos de Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos, Professor João Roberto Martins Filho: "Hipótese sobre a contaminação política deve ser verificada" Foto: Celio Messias/AE

Os militares também apontam como causa a cultura de cada organização militar e as especificidades de cada Arma e também o comportamento dos comandantes. Um oficial mais duro pode gerar mais punições do que outro acostumado a resolver conflitos “na base da conversa”. Além disso, seria necessário levar em consideração a mudança anual dos conscritos, bem como a de comando da unidade a cada dois anos. Por tudo isso, os militares acreditam ser difícil isolar variáveis, tornando as análises sobre causas um exercício especulativo, mesmo sabendo que o Exército é um recorte da sociedade do País.

Para que os dados sobre as infrações disciplinares se tornassem públicos, foi preciso que o caso chegasse até a Controladoria Geral da União (CGU). No começo, o Exército alegou que se tratava de trabalho excessivo e, com base na lei, recusou a recolher as informações. Mas a CGU entendeu que o argumento da Força só em parte procedia, determinando, assim, que os dados quantitativos sobre os casos de punições fossem fornecidos. Como mostram as opiniões de militares e de pesquisadores, para se avançar na análise sobre a realidade disciplinar na Força, seria necessário aprofundar a apuração dos dados.

Seria necessário verificar se as punições acontecem mais no começo do ano, quando o recruta ainda não se ambientou no quartel, por exemplo. Ou ainda como é a dinâmica das punições de graduados e oficiais. O trabalho de verificar que tipo de situação causou a punição seria fundamental. Isso poderia isolar causas como o atraso contumaz, a farda em desalinho, o corte de cabelo fora do padrão de situações mais graves, que implicariam não só no processo disciplinar, bem como na abertura de inquérito policial militar.

Mais ainda. Seria possível saber a quantidade exata de punições dadas em razão do desenvolvimento de atividade político-partidária proibida, manifestações políticas não autorizadas ou críticas indevidas aos superiores, bem como pelo uso indevido das redes sociais. Assim seria possível verificar hipóteses como a de contaminação política dos quartéis e como ela foi tratada na área responsável pela Justiça e Disciplina das organizações militares.

Transparência e processos disciplinares

Os resultados sobre apurações disciplinares devem obedecer, conforme o enunciado nº 3/2023 da CGU, as mesmas regras referentes aos servidores civis, ou seja, são reservados somente até o julgamento. A decisão, foi motivada pelo caso do ex-ministro da Saúde e hoje deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), que era ainda general da ativa quando subiu no palanque de Jair Bolsonaro. O Exército queria manter em sigilo por cem anos a apuração disciplinar do caso, mas a CGU determinou que ela devia ser pública.

General Eduardo Pazuello (à esq.) com o presidente Jair Bolsonaro em ato pró-governo no Rio: processo disciplinar foi mantido em sigilo pelo Exército Foto: Wilton Junior / Estadão

As Forças Armadas reagiram à decisão e, por meio do Ministério da Defesa, buscam a volta do status anterior, alegando que a publicidade das punições pode atrapalhar a manutenção da disciplina nos quartéis. Um capitão que tivesse sido punido como tenente por chegar atrasado a um unidade não teria mais autoridade para punir um sargento se a sua antiga punição fosse de conhecimento de todos.

A proposta das Forças, porém, não exclui os casos de procedimentos disciplinares abertos em razão de crimes que tornam o militar indignos do oficialato ou de violações dos direitos humanos, nem dos casos de transgressões cometidas por aqueles que estão ocupando funções civis, como era o caso de Pazuello. O retorno ao status anterior, também para esses casos, trata-se de algo contrário ao princípio exposto por Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte dos EUA, de que “a luz do sol é o melhor desinfetante”.

Por enquanto, parecer da Advocacia Geral da União (AGU) acolheu o sigilo apenas dos casos em que a segurança do País ou de instalações militares estão em risco e os em que as punições foram canceladas para que a CGU modifique o Enunciado 03/2023. Seria preciso achar uma solução que evite o prejuízo à pesquisa acadêmica sobre o tema e ao mesmo tempo não afete a disciplina, sem o retorno do status quo anterior, que protegia com o sigilo, em tese, até casos de crimes hediondos e de transgressões feitas no exercício de atividades civis ou político-partidárias, como Pazuello.

O mapa da punição da indisciplina mostra que a transparência, a integridade e idoneidade de gestores públicos, pesquisadores e dos dados disponíveis a eles podem ajudar a sociedade e os comandantes a conhecer a realidade e a tomar decisões, derrubando muros seculares de incompreensão, suspeitas e preconceitos. Eis um ponto em que todos os ouvidos pela coluna sobre o tema concordam.

O Exército brasileiro aplicou 7.218 punições disciplinares entre 2016 e 2023 à sua tropa. As três sanções mais comuns foram a advertência, com 2.483 casos, a repreensão, com 2.315 ocorrências, e a prisão disciplinar, imposta em 1.177 oportunidades. A evolução dos eventos da Base de Dados Corporativa do Pessoal (BDCP) do Exército mostra que os anos com maior número de punições disciplinares do período foram 2017 e 2019, durante as presidências de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), ultrapassando a casa do milhar.

Militares desfilam durante cerimônia em comemoração ao Dia do Exército realizada em abril no Quartel General do Exército em Brasília, FOTO: WILTON JUNIOR/ ESTADÃO Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo Fiquem Sabendo, uma organização sem fins lucrativos especializada no acesso a informações públicas. Eles mostram que o primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva registrou uma queda de 48% no número de casos de punições disciplinares em relação a 2019, o primeiro ano de Bolsonaro – 670 eventos ante 1.018 eventos.

Quando se analisa unidade por unidade é possível traçar um mapa das punições disciplinares. Nele, o 5.º Batalhão de Engenharia de Combate Blindado, com sede em Porto União (SC), é a unidade do Exército brasileiro que mais puniu disciplinarmente seus integrantes entre 2016 e 2023. Ao todo, foram 142 sanções aplicadas aos seus integrantes. Foram 61 advertências, 31 repreensões, 25 detenções disciplinares, 14 impedimentos, dez prisões disciplinares e uma expulsão. Foram 72 casos no governo Temer, 59 na gestão Bolsonaro e 11 no primeiro ano de Lula.

Mas o Estado que concentra o maior número de eventos entre as 20 unidades mais bem colocadas nesse ranking é o Rio de Janeiro. Ao todo, cinco de unidades – o 1.º Batalhão de Infantaria Mecanizado (2.º lugar), o 1.º Batalhão de Engenharia de Combate (7.º lugar), o 1.º Batalhão de Guardas (8.º lugar), o 15.º Regimento de Cavalaria Mecanizado (10.º lugar) e o 57.º Batalhão de Infantaria Motorizado (13.º lugar) – figuram nessa lista.

Em 6.º lugar entre as unidades que mais puniram está o Batalhão da Guarda Presidencial, que esteve no centro dos eventos de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas invadiram as sedes dos Três Poderes. Ao todo, o batalhão registrou 55 punições no período estudado. Foram 15 em 2016, 2 em 2017, e 5 em 2018 durante o governo de Temer. Na administração Bolsonaro, a unidade teve 13 casos em 2019, 12 em 2020, nenhum em 2021 e apenas 2 em 2022. No ano do 8 de janeiro, 2023, o número voltou a crescer e chegou a 6 transgressões: duas advertências, três repreensões e uma detenção disciplinar.

Há ainda 3 unidades gaúchas, três paranaenses, duas do Amazonas, duas sul-mato-grossenses, uma paulista, uma brasiliense e uma rondoniense na lista. A divisão por Armas do Exército mostra que oito das 20 unidades são de Infantaria, seguidas por 4 de Engenharia, 4 de Cavalaria, duas de Artilharia e duas Logísticas, incluindo aqui a única do Comando Militar do Sudeste (CMSE), o 22.º Batalhão de Logística, de Barueri, na Grande São Paulo.

Já o Arsenal de Guerra de São Paulo registrava apenas 4 casos no período, pois não haviam sido registradas no BDCP as consequências do furto de 21 metralhadoras, que levou à denúncia criminal contra 4 militares e quatro civis, além de punições disciplinares a 38 militares, o que levaria a unidade a ficar em 21.º lugar entre as organizações com maior número de eventos registrados. Ao todo, 587 unidades registraram punições disciplinares no período estudado.

As punições às transgressões disciplinares tem uma hierarquia. A advertência é a mais leve e não é anotada na ficha do militar. A repreensão se diferencia dela justamente porque ela passa a constar na histórico de quem é punido. Acima dela estão as detenção disciplinar, o impedimento disciplinar e prisão disciplinar, todas elas usadas para casos relacionados às transgressões do Regulamento Disciplinar do Exército. Há ainda punições que podem ser motivadas por crimes dolosos, por crime culposos ou contravenções. Nesses casos, além do apuração disciplinar, o militar é submetido a um Inquérito Policial-Militar (IPM).

Hipóteses para as variações estatísticas

Como os dados reunidos envolvem todas as 652 organizações militares da Força Terrestre, variáveis como mudanças pontuais de comandantes e localização das unidades tendem a ser menos importantes no universo total do que quando se analisa o histórico de cada organização. Ou seja, em tese, seria necessário estudar hipóteses que afetassem o Exército como um todo para entender a variação estatística ano a ano, se ela é acidental ou se há causas que indiquem a razão desse movimento, que podem ter correlação com os dados. Este é o desafio dos cientistas políticos, jornalistas e pesquisadores militares e civis do tema.

Uma das hipóteses que pode ser estudada é se há correlação entre a contaminação política dos quartéis com os casos de indisciplina. É conhecida a tese de que quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina se ausenta da unidade pela outra. Levando-se em consideração que o comando do Exército era o mesmo para os anos 2016 a 2018 e 2019 e 2020, não seria a troca de comando que explicaria os picos observados em 2017 e 2019, únicos anos em que o total de casos ultrapassou a barreira dos mil.

De fato, em 2017, foram registradas 1.050 punições e em 2019, 1.018. Nos demais anos, até 2022, o total de casos, em média, esteve próximo dos 900. A única exceção foi 2023, quando se registrou o mais baixo número do período. “A hipótese da correlação com a contaminação política é lícita e deve ser estudada”, afirmou o professor João Roberto Martins Filho. Esse foi o caso em 2022 do major major João Paulo da Costa Araújo, do 2.º Batalhão de Engenharia de Construção (2.º BEC), em Teresina. Militar da ativa, ele se dizia pré-candidato a deputado federal e desafiava seus comandantes nas redes sociais. Acabou preso.

No mesmo sentido, acredita a professora Adriana Marques, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Esse é o período (2016 a 2023) da volta do protagonismo dos militares na política, da volta da política nos quartéis. É preciso saber se há oficial punido, qual o tipo de punição dos praças e dos oficiais.”

Ela vai além. Seria preciso aprofundar os dados. “Essas punições se referem ao comportamento do militar em relação aos superiores. São casos em que o militar chegou atrasado ou estava com farda em desacordo com as normas. Casos, portanto, ligados ao comportamento militar. Antes de olhar região, Arma e unidades é preciso saber quem está sendo punido e por quê. É importante ter acesso aos dados para saber”, afirmou

A coluna consultou militares sobre esses dados. Dois generais analisaram as informações obtidas por meio da LAI e enfatizaram os fatores endógenos para explicar o mapa das punições pelo País. Em relação às unidades, seria necessário levar em consideração a localização de cada quartel, pois o soldado dos grandes centros tem comportamento diferente daqueles de centros menores, bem como existem diferenças entre conscritos e voluntários, assim como entre as realidades culturais das várias regiões do País.

O professor do CECH, Centro de Estudos de Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos, Professor João Roberto Martins Filho: "Hipótese sobre a contaminação política deve ser verificada" Foto: Celio Messias/AE

Os militares também apontam como causa a cultura de cada organização militar e as especificidades de cada Arma e também o comportamento dos comandantes. Um oficial mais duro pode gerar mais punições do que outro acostumado a resolver conflitos “na base da conversa”. Além disso, seria necessário levar em consideração a mudança anual dos conscritos, bem como a de comando da unidade a cada dois anos. Por tudo isso, os militares acreditam ser difícil isolar variáveis, tornando as análises sobre causas um exercício especulativo, mesmo sabendo que o Exército é um recorte da sociedade do País.

Para que os dados sobre as infrações disciplinares se tornassem públicos, foi preciso que o caso chegasse até a Controladoria Geral da União (CGU). No começo, o Exército alegou que se tratava de trabalho excessivo e, com base na lei, recusou a recolher as informações. Mas a CGU entendeu que o argumento da Força só em parte procedia, determinando, assim, que os dados quantitativos sobre os casos de punições fossem fornecidos. Como mostram as opiniões de militares e de pesquisadores, para se avançar na análise sobre a realidade disciplinar na Força, seria necessário aprofundar a apuração dos dados.

Seria necessário verificar se as punições acontecem mais no começo do ano, quando o recruta ainda não se ambientou no quartel, por exemplo. Ou ainda como é a dinâmica das punições de graduados e oficiais. O trabalho de verificar que tipo de situação causou a punição seria fundamental. Isso poderia isolar causas como o atraso contumaz, a farda em desalinho, o corte de cabelo fora do padrão de situações mais graves, que implicariam não só no processo disciplinar, bem como na abertura de inquérito policial militar.

Mais ainda. Seria possível saber a quantidade exata de punições dadas em razão do desenvolvimento de atividade político-partidária proibida, manifestações políticas não autorizadas ou críticas indevidas aos superiores, bem como pelo uso indevido das redes sociais. Assim seria possível verificar hipóteses como a de contaminação política dos quartéis e como ela foi tratada na área responsável pela Justiça e Disciplina das organizações militares.

Transparência e processos disciplinares

Os resultados sobre apurações disciplinares devem obedecer, conforme o enunciado nº 3/2023 da CGU, as mesmas regras referentes aos servidores civis, ou seja, são reservados somente até o julgamento. A decisão, foi motivada pelo caso do ex-ministro da Saúde e hoje deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), que era ainda general da ativa quando subiu no palanque de Jair Bolsonaro. O Exército queria manter em sigilo por cem anos a apuração disciplinar do caso, mas a CGU determinou que ela devia ser pública.

General Eduardo Pazuello (à esq.) com o presidente Jair Bolsonaro em ato pró-governo no Rio: processo disciplinar foi mantido em sigilo pelo Exército Foto: Wilton Junior / Estadão

As Forças Armadas reagiram à decisão e, por meio do Ministério da Defesa, buscam a volta do status anterior, alegando que a publicidade das punições pode atrapalhar a manutenção da disciplina nos quartéis. Um capitão que tivesse sido punido como tenente por chegar atrasado a um unidade não teria mais autoridade para punir um sargento se a sua antiga punição fosse de conhecimento de todos.

A proposta das Forças, porém, não exclui os casos de procedimentos disciplinares abertos em razão de crimes que tornam o militar indignos do oficialato ou de violações dos direitos humanos, nem dos casos de transgressões cometidas por aqueles que estão ocupando funções civis, como era o caso de Pazuello. O retorno ao status anterior, também para esses casos, trata-se de algo contrário ao princípio exposto por Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte dos EUA, de que “a luz do sol é o melhor desinfetante”.

Por enquanto, parecer da Advocacia Geral da União (AGU) acolheu o sigilo apenas dos casos em que a segurança do País ou de instalações militares estão em risco e os em que as punições foram canceladas para que a CGU modifique o Enunciado 03/2023. Seria preciso achar uma solução que evite o prejuízo à pesquisa acadêmica sobre o tema e ao mesmo tempo não afete a disciplina, sem o retorno do status quo anterior, que protegia com o sigilo, em tese, até casos de crimes hediondos e de transgressões feitas no exercício de atividades civis ou político-partidárias, como Pazuello.

O mapa da punição da indisciplina mostra que a transparência, a integridade e idoneidade de gestores públicos, pesquisadores e dos dados disponíveis a eles podem ajudar a sociedade e os comandantes a conhecer a realidade e a tomar decisões, derrubando muros seculares de incompreensão, suspeitas e preconceitos. Eis um ponto em que todos os ouvidos pela coluna sobre o tema concordam.

O Exército brasileiro aplicou 7.218 punições disciplinares entre 2016 e 2023 à sua tropa. As três sanções mais comuns foram a advertência, com 2.483 casos, a repreensão, com 2.315 ocorrências, e a prisão disciplinar, imposta em 1.177 oportunidades. A evolução dos eventos da Base de Dados Corporativa do Pessoal (BDCP) do Exército mostra que os anos com maior número de punições disciplinares do período foram 2017 e 2019, durante as presidências de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), ultrapassando a casa do milhar.

Militares desfilam durante cerimônia em comemoração ao Dia do Exército realizada em abril no Quartel General do Exército em Brasília, FOTO: WILTON JUNIOR/ ESTADÃO Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo Fiquem Sabendo, uma organização sem fins lucrativos especializada no acesso a informações públicas. Eles mostram que o primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva registrou uma queda de 48% no número de casos de punições disciplinares em relação a 2019, o primeiro ano de Bolsonaro – 670 eventos ante 1.018 eventos.

Quando se analisa unidade por unidade é possível traçar um mapa das punições disciplinares. Nele, o 5.º Batalhão de Engenharia de Combate Blindado, com sede em Porto União (SC), é a unidade do Exército brasileiro que mais puniu disciplinarmente seus integrantes entre 2016 e 2023. Ao todo, foram 142 sanções aplicadas aos seus integrantes. Foram 61 advertências, 31 repreensões, 25 detenções disciplinares, 14 impedimentos, dez prisões disciplinares e uma expulsão. Foram 72 casos no governo Temer, 59 na gestão Bolsonaro e 11 no primeiro ano de Lula.

Mas o Estado que concentra o maior número de eventos entre as 20 unidades mais bem colocadas nesse ranking é o Rio de Janeiro. Ao todo, cinco de unidades – o 1.º Batalhão de Infantaria Mecanizado (2.º lugar), o 1.º Batalhão de Engenharia de Combate (7.º lugar), o 1.º Batalhão de Guardas (8.º lugar), o 15.º Regimento de Cavalaria Mecanizado (10.º lugar) e o 57.º Batalhão de Infantaria Motorizado (13.º lugar) – figuram nessa lista.

Em 6.º lugar entre as unidades que mais puniram está o Batalhão da Guarda Presidencial, que esteve no centro dos eventos de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas invadiram as sedes dos Três Poderes. Ao todo, o batalhão registrou 55 punições no período estudado. Foram 15 em 2016, 2 em 2017, e 5 em 2018 durante o governo de Temer. Na administração Bolsonaro, a unidade teve 13 casos em 2019, 12 em 2020, nenhum em 2021 e apenas 2 em 2022. No ano do 8 de janeiro, 2023, o número voltou a crescer e chegou a 6 transgressões: duas advertências, três repreensões e uma detenção disciplinar.

Há ainda 3 unidades gaúchas, três paranaenses, duas do Amazonas, duas sul-mato-grossenses, uma paulista, uma brasiliense e uma rondoniense na lista. A divisão por Armas do Exército mostra que oito das 20 unidades são de Infantaria, seguidas por 4 de Engenharia, 4 de Cavalaria, duas de Artilharia e duas Logísticas, incluindo aqui a única do Comando Militar do Sudeste (CMSE), o 22.º Batalhão de Logística, de Barueri, na Grande São Paulo.

Já o Arsenal de Guerra de São Paulo registrava apenas 4 casos no período, pois não haviam sido registradas no BDCP as consequências do furto de 21 metralhadoras, que levou à denúncia criminal contra 4 militares e quatro civis, além de punições disciplinares a 38 militares, o que levaria a unidade a ficar em 21.º lugar entre as organizações com maior número de eventos registrados. Ao todo, 587 unidades registraram punições disciplinares no período estudado.

As punições às transgressões disciplinares tem uma hierarquia. A advertência é a mais leve e não é anotada na ficha do militar. A repreensão se diferencia dela justamente porque ela passa a constar na histórico de quem é punido. Acima dela estão as detenção disciplinar, o impedimento disciplinar e prisão disciplinar, todas elas usadas para casos relacionados às transgressões do Regulamento Disciplinar do Exército. Há ainda punições que podem ser motivadas por crimes dolosos, por crime culposos ou contravenções. Nesses casos, além do apuração disciplinar, o militar é submetido a um Inquérito Policial-Militar (IPM).

Hipóteses para as variações estatísticas

Como os dados reunidos envolvem todas as 652 organizações militares da Força Terrestre, variáveis como mudanças pontuais de comandantes e localização das unidades tendem a ser menos importantes no universo total do que quando se analisa o histórico de cada organização. Ou seja, em tese, seria necessário estudar hipóteses que afetassem o Exército como um todo para entender a variação estatística ano a ano, se ela é acidental ou se há causas que indiquem a razão desse movimento, que podem ter correlação com os dados. Este é o desafio dos cientistas políticos, jornalistas e pesquisadores militares e civis do tema.

Uma das hipóteses que pode ser estudada é se há correlação entre a contaminação política dos quartéis com os casos de indisciplina. É conhecida a tese de que quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina se ausenta da unidade pela outra. Levando-se em consideração que o comando do Exército era o mesmo para os anos 2016 a 2018 e 2019 e 2020, não seria a troca de comando que explicaria os picos observados em 2017 e 2019, únicos anos em que o total de casos ultrapassou a barreira dos mil.

De fato, em 2017, foram registradas 1.050 punições e em 2019, 1.018. Nos demais anos, até 2022, o total de casos, em média, esteve próximo dos 900. A única exceção foi 2023, quando se registrou o mais baixo número do período. “A hipótese da correlação com a contaminação política é lícita e deve ser estudada”, afirmou o professor João Roberto Martins Filho. Esse foi o caso em 2022 do major major João Paulo da Costa Araújo, do 2.º Batalhão de Engenharia de Construção (2.º BEC), em Teresina. Militar da ativa, ele se dizia pré-candidato a deputado federal e desafiava seus comandantes nas redes sociais. Acabou preso.

No mesmo sentido, acredita a professora Adriana Marques, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Esse é o período (2016 a 2023) da volta do protagonismo dos militares na política, da volta da política nos quartéis. É preciso saber se há oficial punido, qual o tipo de punição dos praças e dos oficiais.”

Ela vai além. Seria preciso aprofundar os dados. “Essas punições se referem ao comportamento do militar em relação aos superiores. São casos em que o militar chegou atrasado ou estava com farda em desacordo com as normas. Casos, portanto, ligados ao comportamento militar. Antes de olhar região, Arma e unidades é preciso saber quem está sendo punido e por quê. É importante ter acesso aos dados para saber”, afirmou

A coluna consultou militares sobre esses dados. Dois generais analisaram as informações obtidas por meio da LAI e enfatizaram os fatores endógenos para explicar o mapa das punições pelo País. Em relação às unidades, seria necessário levar em consideração a localização de cada quartel, pois o soldado dos grandes centros tem comportamento diferente daqueles de centros menores, bem como existem diferenças entre conscritos e voluntários, assim como entre as realidades culturais das várias regiões do País.

O professor do CECH, Centro de Estudos de Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos, Professor João Roberto Martins Filho: "Hipótese sobre a contaminação política deve ser verificada" Foto: Celio Messias/AE

Os militares também apontam como causa a cultura de cada organização militar e as especificidades de cada Arma e também o comportamento dos comandantes. Um oficial mais duro pode gerar mais punições do que outro acostumado a resolver conflitos “na base da conversa”. Além disso, seria necessário levar em consideração a mudança anual dos conscritos, bem como a de comando da unidade a cada dois anos. Por tudo isso, os militares acreditam ser difícil isolar variáveis, tornando as análises sobre causas um exercício especulativo, mesmo sabendo que o Exército é um recorte da sociedade do País.

Para que os dados sobre as infrações disciplinares se tornassem públicos, foi preciso que o caso chegasse até a Controladoria Geral da União (CGU). No começo, o Exército alegou que se tratava de trabalho excessivo e, com base na lei, recusou a recolher as informações. Mas a CGU entendeu que o argumento da Força só em parte procedia, determinando, assim, que os dados quantitativos sobre os casos de punições fossem fornecidos. Como mostram as opiniões de militares e de pesquisadores, para se avançar na análise sobre a realidade disciplinar na Força, seria necessário aprofundar a apuração dos dados.

Seria necessário verificar se as punições acontecem mais no começo do ano, quando o recruta ainda não se ambientou no quartel, por exemplo. Ou ainda como é a dinâmica das punições de graduados e oficiais. O trabalho de verificar que tipo de situação causou a punição seria fundamental. Isso poderia isolar causas como o atraso contumaz, a farda em desalinho, o corte de cabelo fora do padrão de situações mais graves, que implicariam não só no processo disciplinar, bem como na abertura de inquérito policial militar.

Mais ainda. Seria possível saber a quantidade exata de punições dadas em razão do desenvolvimento de atividade político-partidária proibida, manifestações políticas não autorizadas ou críticas indevidas aos superiores, bem como pelo uso indevido das redes sociais. Assim seria possível verificar hipóteses como a de contaminação política dos quartéis e como ela foi tratada na área responsável pela Justiça e Disciplina das organizações militares.

Transparência e processos disciplinares

Os resultados sobre apurações disciplinares devem obedecer, conforme o enunciado nº 3/2023 da CGU, as mesmas regras referentes aos servidores civis, ou seja, são reservados somente até o julgamento. A decisão, foi motivada pelo caso do ex-ministro da Saúde e hoje deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), que era ainda general da ativa quando subiu no palanque de Jair Bolsonaro. O Exército queria manter em sigilo por cem anos a apuração disciplinar do caso, mas a CGU determinou que ela devia ser pública.

General Eduardo Pazuello (à esq.) com o presidente Jair Bolsonaro em ato pró-governo no Rio: processo disciplinar foi mantido em sigilo pelo Exército Foto: Wilton Junior / Estadão

As Forças Armadas reagiram à decisão e, por meio do Ministério da Defesa, buscam a volta do status anterior, alegando que a publicidade das punições pode atrapalhar a manutenção da disciplina nos quartéis. Um capitão que tivesse sido punido como tenente por chegar atrasado a um unidade não teria mais autoridade para punir um sargento se a sua antiga punição fosse de conhecimento de todos.

A proposta das Forças, porém, não exclui os casos de procedimentos disciplinares abertos em razão de crimes que tornam o militar indignos do oficialato ou de violações dos direitos humanos, nem dos casos de transgressões cometidas por aqueles que estão ocupando funções civis, como era o caso de Pazuello. O retorno ao status anterior, também para esses casos, trata-se de algo contrário ao princípio exposto por Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte dos EUA, de que “a luz do sol é o melhor desinfetante”.

Por enquanto, parecer da Advocacia Geral da União (AGU) acolheu o sigilo apenas dos casos em que a segurança do País ou de instalações militares estão em risco e os em que as punições foram canceladas para que a CGU modifique o Enunciado 03/2023. Seria preciso achar uma solução que evite o prejuízo à pesquisa acadêmica sobre o tema e ao mesmo tempo não afete a disciplina, sem o retorno do status quo anterior, que protegia com o sigilo, em tese, até casos de crimes hediondos e de transgressões feitas no exercício de atividades civis ou político-partidárias, como Pazuello.

O mapa da punição da indisciplina mostra que a transparência, a integridade e idoneidade de gestores públicos, pesquisadores e dos dados disponíveis a eles podem ajudar a sociedade e os comandantes a conhecer a realidade e a tomar decisões, derrubando muros seculares de incompreensão, suspeitas e preconceitos. Eis um ponto em que todos os ouvidos pela coluna sobre o tema concordam.

O Exército brasileiro aplicou 7.218 punições disciplinares entre 2016 e 2023 à sua tropa. As três sanções mais comuns foram a advertência, com 2.483 casos, a repreensão, com 2.315 ocorrências, e a prisão disciplinar, imposta em 1.177 oportunidades. A evolução dos eventos da Base de Dados Corporativa do Pessoal (BDCP) do Exército mostra que os anos com maior número de punições disciplinares do período foram 2017 e 2019, durante as presidências de Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), ultrapassando a casa do milhar.

Militares desfilam durante cerimônia em comemoração ao Dia do Exército realizada em abril no Quartel General do Exército em Brasília, FOTO: WILTON JUNIOR/ ESTADÃO Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo Fiquem Sabendo, uma organização sem fins lucrativos especializada no acesso a informações públicas. Eles mostram que o primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva registrou uma queda de 48% no número de casos de punições disciplinares em relação a 2019, o primeiro ano de Bolsonaro – 670 eventos ante 1.018 eventos.

Quando se analisa unidade por unidade é possível traçar um mapa das punições disciplinares. Nele, o 5.º Batalhão de Engenharia de Combate Blindado, com sede em Porto União (SC), é a unidade do Exército brasileiro que mais puniu disciplinarmente seus integrantes entre 2016 e 2023. Ao todo, foram 142 sanções aplicadas aos seus integrantes. Foram 61 advertências, 31 repreensões, 25 detenções disciplinares, 14 impedimentos, dez prisões disciplinares e uma expulsão. Foram 72 casos no governo Temer, 59 na gestão Bolsonaro e 11 no primeiro ano de Lula.

Mas o Estado que concentra o maior número de eventos entre as 20 unidades mais bem colocadas nesse ranking é o Rio de Janeiro. Ao todo, cinco de unidades – o 1.º Batalhão de Infantaria Mecanizado (2.º lugar), o 1.º Batalhão de Engenharia de Combate (7.º lugar), o 1.º Batalhão de Guardas (8.º lugar), o 15.º Regimento de Cavalaria Mecanizado (10.º lugar) e o 57.º Batalhão de Infantaria Motorizado (13.º lugar) – figuram nessa lista.

Em 6.º lugar entre as unidades que mais puniram está o Batalhão da Guarda Presidencial, que esteve no centro dos eventos de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas invadiram as sedes dos Três Poderes. Ao todo, o batalhão registrou 55 punições no período estudado. Foram 15 em 2016, 2 em 2017, e 5 em 2018 durante o governo de Temer. Na administração Bolsonaro, a unidade teve 13 casos em 2019, 12 em 2020, nenhum em 2021 e apenas 2 em 2022. No ano do 8 de janeiro, 2023, o número voltou a crescer e chegou a 6 transgressões: duas advertências, três repreensões e uma detenção disciplinar.

Há ainda 3 unidades gaúchas, três paranaenses, duas do Amazonas, duas sul-mato-grossenses, uma paulista, uma brasiliense e uma rondoniense na lista. A divisão por Armas do Exército mostra que oito das 20 unidades são de Infantaria, seguidas por 4 de Engenharia, 4 de Cavalaria, duas de Artilharia e duas Logísticas, incluindo aqui a única do Comando Militar do Sudeste (CMSE), o 22.º Batalhão de Logística, de Barueri, na Grande São Paulo.

Já o Arsenal de Guerra de São Paulo registrava apenas 4 casos no período, pois não haviam sido registradas no BDCP as consequências do furto de 21 metralhadoras, que levou à denúncia criminal contra 4 militares e quatro civis, além de punições disciplinares a 38 militares, o que levaria a unidade a ficar em 21.º lugar entre as organizações com maior número de eventos registrados. Ao todo, 587 unidades registraram punições disciplinares no período estudado.

As punições às transgressões disciplinares tem uma hierarquia. A advertência é a mais leve e não é anotada na ficha do militar. A repreensão se diferencia dela justamente porque ela passa a constar na histórico de quem é punido. Acima dela estão as detenção disciplinar, o impedimento disciplinar e prisão disciplinar, todas elas usadas para casos relacionados às transgressões do Regulamento Disciplinar do Exército. Há ainda punições que podem ser motivadas por crimes dolosos, por crime culposos ou contravenções. Nesses casos, além do apuração disciplinar, o militar é submetido a um Inquérito Policial-Militar (IPM).

Hipóteses para as variações estatísticas

Como os dados reunidos envolvem todas as 652 organizações militares da Força Terrestre, variáveis como mudanças pontuais de comandantes e localização das unidades tendem a ser menos importantes no universo total do que quando se analisa o histórico de cada organização. Ou seja, em tese, seria necessário estudar hipóteses que afetassem o Exército como um todo para entender a variação estatística ano a ano, se ela é acidental ou se há causas que indiquem a razão desse movimento, que podem ter correlação com os dados. Este é o desafio dos cientistas políticos, jornalistas e pesquisadores militares e civis do tema.

Uma das hipóteses que pode ser estudada é se há correlação entre a contaminação política dos quartéis com os casos de indisciplina. É conhecida a tese de que quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina se ausenta da unidade pela outra. Levando-se em consideração que o comando do Exército era o mesmo para os anos 2016 a 2018 e 2019 e 2020, não seria a troca de comando que explicaria os picos observados em 2017 e 2019, únicos anos em que o total de casos ultrapassou a barreira dos mil.

De fato, em 2017, foram registradas 1.050 punições e em 2019, 1.018. Nos demais anos, até 2022, o total de casos, em média, esteve próximo dos 900. A única exceção foi 2023, quando se registrou o mais baixo número do período. “A hipótese da correlação com a contaminação política é lícita e deve ser estudada”, afirmou o professor João Roberto Martins Filho. Esse foi o caso em 2022 do major major João Paulo da Costa Araújo, do 2.º Batalhão de Engenharia de Construção (2.º BEC), em Teresina. Militar da ativa, ele se dizia pré-candidato a deputado federal e desafiava seus comandantes nas redes sociais. Acabou preso.

No mesmo sentido, acredita a professora Adriana Marques, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Esse é o período (2016 a 2023) da volta do protagonismo dos militares na política, da volta da política nos quartéis. É preciso saber se há oficial punido, qual o tipo de punição dos praças e dos oficiais.”

Ela vai além. Seria preciso aprofundar os dados. “Essas punições se referem ao comportamento do militar em relação aos superiores. São casos em que o militar chegou atrasado ou estava com farda em desacordo com as normas. Casos, portanto, ligados ao comportamento militar. Antes de olhar região, Arma e unidades é preciso saber quem está sendo punido e por quê. É importante ter acesso aos dados para saber”, afirmou

A coluna consultou militares sobre esses dados. Dois generais analisaram as informações obtidas por meio da LAI e enfatizaram os fatores endógenos para explicar o mapa das punições pelo País. Em relação às unidades, seria necessário levar em consideração a localização de cada quartel, pois o soldado dos grandes centros tem comportamento diferente daqueles de centros menores, bem como existem diferenças entre conscritos e voluntários, assim como entre as realidades culturais das várias regiões do País.

O professor do CECH, Centro de Estudos de Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos, Professor João Roberto Martins Filho: "Hipótese sobre a contaminação política deve ser verificada" Foto: Celio Messias/AE

Os militares também apontam como causa a cultura de cada organização militar e as especificidades de cada Arma e também o comportamento dos comandantes. Um oficial mais duro pode gerar mais punições do que outro acostumado a resolver conflitos “na base da conversa”. Além disso, seria necessário levar em consideração a mudança anual dos conscritos, bem como a de comando da unidade a cada dois anos. Por tudo isso, os militares acreditam ser difícil isolar variáveis, tornando as análises sobre causas um exercício especulativo, mesmo sabendo que o Exército é um recorte da sociedade do País.

Para que os dados sobre as infrações disciplinares se tornassem públicos, foi preciso que o caso chegasse até a Controladoria Geral da União (CGU). No começo, o Exército alegou que se tratava de trabalho excessivo e, com base na lei, recusou a recolher as informações. Mas a CGU entendeu que o argumento da Força só em parte procedia, determinando, assim, que os dados quantitativos sobre os casos de punições fossem fornecidos. Como mostram as opiniões de militares e de pesquisadores, para se avançar na análise sobre a realidade disciplinar na Força, seria necessário aprofundar a apuração dos dados.

Seria necessário verificar se as punições acontecem mais no começo do ano, quando o recruta ainda não se ambientou no quartel, por exemplo. Ou ainda como é a dinâmica das punições de graduados e oficiais. O trabalho de verificar que tipo de situação causou a punição seria fundamental. Isso poderia isolar causas como o atraso contumaz, a farda em desalinho, o corte de cabelo fora do padrão de situações mais graves, que implicariam não só no processo disciplinar, bem como na abertura de inquérito policial militar.

Mais ainda. Seria possível saber a quantidade exata de punições dadas em razão do desenvolvimento de atividade político-partidária proibida, manifestações políticas não autorizadas ou críticas indevidas aos superiores, bem como pelo uso indevido das redes sociais. Assim seria possível verificar hipóteses como a de contaminação política dos quartéis e como ela foi tratada na área responsável pela Justiça e Disciplina das organizações militares.

Transparência e processos disciplinares

Os resultados sobre apurações disciplinares devem obedecer, conforme o enunciado nº 3/2023 da CGU, as mesmas regras referentes aos servidores civis, ou seja, são reservados somente até o julgamento. A decisão, foi motivada pelo caso do ex-ministro da Saúde e hoje deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), que era ainda general da ativa quando subiu no palanque de Jair Bolsonaro. O Exército queria manter em sigilo por cem anos a apuração disciplinar do caso, mas a CGU determinou que ela devia ser pública.

General Eduardo Pazuello (à esq.) com o presidente Jair Bolsonaro em ato pró-governo no Rio: processo disciplinar foi mantido em sigilo pelo Exército Foto: Wilton Junior / Estadão

As Forças Armadas reagiram à decisão e, por meio do Ministério da Defesa, buscam a volta do status anterior, alegando que a publicidade das punições pode atrapalhar a manutenção da disciplina nos quartéis. Um capitão que tivesse sido punido como tenente por chegar atrasado a um unidade não teria mais autoridade para punir um sargento se a sua antiga punição fosse de conhecimento de todos.

A proposta das Forças, porém, não exclui os casos de procedimentos disciplinares abertos em razão de crimes que tornam o militar indignos do oficialato ou de violações dos direitos humanos, nem dos casos de transgressões cometidas por aqueles que estão ocupando funções civis, como era o caso de Pazuello. O retorno ao status anterior, também para esses casos, trata-se de algo contrário ao princípio exposto por Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte dos EUA, de que “a luz do sol é o melhor desinfetante”.

Por enquanto, parecer da Advocacia Geral da União (AGU) acolheu o sigilo apenas dos casos em que a segurança do País ou de instalações militares estão em risco e os em que as punições foram canceladas para que a CGU modifique o Enunciado 03/2023. Seria preciso achar uma solução que evite o prejuízo à pesquisa acadêmica sobre o tema e ao mesmo tempo não afete a disciplina, sem o retorno do status quo anterior, que protegia com o sigilo, em tese, até casos de crimes hediondos e de transgressões feitas no exercício de atividades civis ou político-partidárias, como Pazuello.

O mapa da punição da indisciplina mostra que a transparência, a integridade e idoneidade de gestores públicos, pesquisadores e dos dados disponíveis a eles podem ajudar a sociedade e os comandantes a conhecer a realidade e a tomar decisões, derrubando muros seculares de incompreensão, suspeitas e preconceitos. Eis um ponto em que todos os ouvidos pela coluna sobre o tema concordam.

Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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