As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Medo de caça às bruxas e ações de radicais são os primeiros desafios do novo comandante do Exército


Caso do coronel Cid e de oficiais que incentivaram e compareceram aos eventos do dia 8 é diferente da ação de generais que conviveram com acampados em frente aos quartéis

Por Marcelo Godoy
Atualização:

O medo de uma caça às bruxas no Exército e a necessidade de contenção de extremistas são ameaças que o novo comandante, general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, vai enfrentar. Após a demissão do general Júlio César de Arruda, integrantes da ativa continuam a fazer críticas ao governo. Contê-los será um desafio. Ao mesmo tempo, setores petistas defendem a degola de outros oficiais, além do afastamento do tenente-coronel Mauro César Cid do comando do 1.º Batalhão de Ações de Comando (1.º BAC).

O novo comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, que foi nomeado no sábado por Luiz Inácio Lula da Silva Foto: WILTON JUNIOR

Trata-se aqui de um erro. Há fatos suficientes contra militares que compareceram ou incentivaram os eventos do dia 8, a intentona bolsonarista, como os coronéis Adriano Testoni e José Placídio. Eles devem ser punidos. Mas não há provas que comprometam, por enquanto, os integrantes do Comando Militar do Planalto (CMP). Foi por iniciativa do general Geraldo Henrique Dutra Menezes, comandante do CMP, que três subunidades do Batalhão da Guarda Presidencial estavam de prontidão no dia 8.

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Foi ainda por ordem do general que os dois primeiros contingentes extras para proteger o Palácio do Planalto foram enviados contra os extremistas, antes de serem solicitados pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Este sim dispensou reforço no prédio 20 horas antes da invasão. Aqui se deve indagar por quê. Falha houve na inteligência. E seus culpados devem ser procurados no Centro de Inteligência do Exército (CIE), nos órgãos de inteligência federais e nos das polícias do governo do Distrito Federal.

Sem as informações corretas, Dutra e outros não tinham como dispor dos meios adequados no terreno a fim de defender a sede do Poder Executivo. A caça às bruxas se alimenta ainda do clima que tomou conta das Forças Armadas, logo após a eleição presidencial. Esta mal havia acabado quando o coronel de um dos Batalhões de Polícia do Exército (BPE), do Comando Militar do Leste (CML), resolveu gravar dois áudios e compartilhá-los no grupo de sua turma de Academia das Agulhas Negras (Aman).

“Ora, senhores, será que ninguém viu o que aconteceu? Será que ninguém viu que as eleições foram ganhas com uma diferença de 1 milhão e 800 mil votos?” O oficial prossegue, levantando suspeitas sobre a lisura da votação no Nordeste, área que deu ampla vitória a Luiz Inácio Lula da Silva: “Será que ninguém viu que muitos desses votos foram comprados com dinheiro apreendido em rodovias? O monte de transporte de gente, que é comum no Nordeste? Meus amigos que serviram no Nordeste podem confirmar isso”.

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Depois, o coronel criticou as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tirou do ar perfis de redes sociais que espalhavam notícias falsas sobre as urnas eletrônicas. “Será que ninguém viu que isso mudou as eleições, que todos os apoiadores foram cerceados, que não puderam falar, tiveram seus canais bloqueados, jornalistas afastados? Será que ninguém viu que um preso foi solto? Será que vamos ficar à mercê de uma parcela que não representa a maioria? Vamos ser governados por aquela equipe toda que apareceu na televisão, aquele cara lá que apareceu com dinheiro na cueca? Será que ninguém viu isso?”

O oficial pergunta aos colegas o que eles pensam do silêncio do então presidente Jair Bolsonaro, criticando o que lhe parece ser a omissão dos chefes. “É por isso que queremos ouvir o que vocês acham, porque até agora o presidente não se pronunciou. Ninguém tá vendo o que está acontecendo não?” Ele então conclui: “Se ninguém viu, eu vou dizer para vocês: existe dúvida sobre a legitimidade desse processo. Existe dúvida sobre a legitimidade do que ocorreu”. Os áudios do coronel do BPE mostram a penetração do radicalismo nos grupos de aplicativos de mensagens de oficiais do Exército nos dias que antecederam a posse de Lula.

Lula recebe o general Tomás em Brasília, após nomeá-lo comandante do Exército, no sábado Foto: RICARDO STUCKERT
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Em outro grupo, um capitão de mar e guerra do quadro técnico da Armada escreveu, ao ver Lula discursando no parlatório do Palácio do Planalto: “Hora do sniper”. Um coronel do quadro de Material Bélico do Exército mandou mensagem nesse mesmo dia a um colega que sugeriu um atentado: “Esse é o momento”. Os dois oficiais da ativa fizeram os comentários no momento em que Lula já havia prestado o juramento constitucional e tomado posse como presidente. E como comandante em chefe das Forças Armadas.

Foram comentários em um grupo privado de militares. Representariam uma impropriedade, se fossem obra de cidadãos comuns. Mas ditas por militares que portam armas com a responsabilidade de defender a Constituição e os Poderes da República as frases soam como uma ameaça desleal e incompatível com a farda. A coluna teve acesso às mensagens. Como os áudios do coronel do BPE, elas ajudam a compreender os muitos militares que simpatizavam com as pessoas na frente dos quartéis e, assim, se mantiveram sem perceber a escalada de radicalização que se seguiu entre os acampados, levando até a atos terroristas.

Erro de avaliação – além da simpatia – foi responsável em parte pelo apagão da inteligência militar diante dos extremistas. Mas não só. Havia oficiais no CIE que trabalhavam em dezembro com o cenário de que um golpe estava sendo preparado. Um deles alertou um interlocutor civil. Foi nessa época que o então ministro da Justiça Anderson Torres recebeu a minuta de decreto de Estado de Defesa, apreendida em sua casa. Preparava-se um golpe em Brasília. Disso a maioria do Alto Comando do Exército não tem mais dúvida.

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O tenente-coronel do Exército, Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro durante cerimonia no Palácio do Planalto Foto: Dida Sampaio/Estadão

Até porque os generais se recusaram a virar a mesa, como era desejado pelos bolsonaristas que acampavam nos quartéis. E pelos oficiais da ativa e da reserva que se manifestavam publicamente ou de forma reservada em redes sociais. Militares e bolsonaristas montaram uma campanha de assédio aos generais contra a vitória de Lula. Inconformados com o fracasso, passaram difamar integrantes do Alto Comando que julgavam tê-los traído. Passaram a designá-los como melancias, caso dos generais Tomás, Richard Nunes e Valério Stumpf.

Todos esses conspiradores devem ser identificados e punidos. Todos os que ultrapassaram a barreira do desabafo particular para se envolver em conspiratas que levaram à fracassada tomada do poder devem ser responsabilizados não só pelas ofensas aos superiores, mas pela tentativa de quebra da hierarquia ao defenderem que coronéis ultrapassassem os generais e usassem suas tropas para depor Lula. Eles aderiram à tentativa de golpe quando tornaram públicas exortações em redes sociais para seus milhares de seguidores.

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No dia 8, não foi só a Inteligência que errou. Outra falha foi a de Lula da Silva. Temeroso da reação dos militares e sem interlocutores na caserna, o petista adotou uma política de apaziguamento. E foi cedendo pouco a pouco aos desejos lícitos, mas também às extravagâncias e às indelicadezas que lhe eram dirigidas. A primeira nasceu dos comandantes militares de Bolsonaro. Queriam passar os cargos antes de Lula tomar posse. Foi assim no Exército. Na Marinha, o almirante Almir Garnier mandou às favas seu papel institucional e não passou o comando ao almirante nomeado por Lula, Marcos Sampaio Olsen.

O ministro da Defesa, José Múcio, concordou com a estratégia de se desocupar os acampamentos de forma paulatina  Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO - 9/12/22

Depois, Lula e seu ministro da Defesa, José Múcio, concordaram com a estratégia do comando do Exército de estrangulamento dos acampados, que pediam um golpe militar, em vez de dispersar a manifestação que incitava os militares ao cometimento de um crime. O petista podia ter ordenado a desocupação imediata dos terrenos – Dutra e os outros generais não, pois obedeciam ao comandante. Em vez disso, o presidente deixou de exercer sua autoridade. A fraqueza foi pressentida pelos extremistas. Tivesse dado a ordem, o golpe teria sido frustrado. A tibieza do poder civil e o clima radicalizado no interior da Força – inclusive entre oficiais da ativa – ajudaram a adubar o terreno onde brotou o evento do dia 8.

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Alguns dos que hoje querem impedir uma caça às bruxas sabem que isso não significa se comportar como o general Arruda, então comandante do Exército, e manter a nomeação do tenente-coronel Cid para o 1.º BAC, sob o argumento de que o oficial não pode ser vítima de perseguição ideológica. Arruda usou este argumento bom para uma situação ruim. Esqueceu-se o general de que o coronel, sombra de Bolsonaro durante quatro anos, fora indiciado em inquérito criminal pela Polícia Federal por incitação ao crime – a mesma conduta delituosa que muitos dos extremistas do dia 8 vão responder na Justiça.

A segurança das instituições – e o 1.º BAC é parte da força de reação rápida do comando do Exército – se veria desafiada pela manutenção de Cid? Um oficial nessas condições pode receber da República um comando? Ele deve cuidar de sua defesa na Justiça. E as instituições devem fazer o mesmo. Arruda não percebeu mais uma vez que a conjuntura mudara. Assim como não vislumbrou a radicalização dos acampados, agora não compreendeu a necessidade de se reconstruir a institucionalidade em frangalhos.

O Exército e seu novo comandante podem superar esse episódio e reafirmar a disciplina que os extremistas tentaram esgarçar. Contam com apoios e manifestações de colegas da ativa e da reserva, como a do general Juarez Cunha. Mas a mudança de comando ainda causa temores. O coronel da ativa Antoine Cruz afirmou no Twitter, horas depois de Tomás assumir, que o processo seletivo de um comandante de uma organização militar não tem ligação política ou aval do presidente. O coronel quer ensinar seus comandantes?

Manifestação do coronel Antoine após a demissão do general Arruda Foto: Reprodução/Twitter

A tarefa de Tomás será tanto mais fácil quanto mais moderada – e afastada do punitivismo que golpeou a política na última década – forem as investigações e as medidas adotadas para o revigoramento da disciplina. O presidente exerceu, finalmente, sua autoridade ao nomeá-lo, em um ato que muitos viram como sua posse como comandante em chefe das Forças. Agora, mais do que punir os generais e outros oficiais que conviveram com acampados na frente de quartéis, deve-se responsabilizar os chefes da inteligência – pela incompetência ou pela conivência. Sem perder de vista o equilíbrio e a pacificação.

O medo de uma caça às bruxas no Exército e a necessidade de contenção de extremistas são ameaças que o novo comandante, general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, vai enfrentar. Após a demissão do general Júlio César de Arruda, integrantes da ativa continuam a fazer críticas ao governo. Contê-los será um desafio. Ao mesmo tempo, setores petistas defendem a degola de outros oficiais, além do afastamento do tenente-coronel Mauro César Cid do comando do 1.º Batalhão de Ações de Comando (1.º BAC).

O novo comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, que foi nomeado no sábado por Luiz Inácio Lula da Silva Foto: WILTON JUNIOR

Trata-se aqui de um erro. Há fatos suficientes contra militares que compareceram ou incentivaram os eventos do dia 8, a intentona bolsonarista, como os coronéis Adriano Testoni e José Placídio. Eles devem ser punidos. Mas não há provas que comprometam, por enquanto, os integrantes do Comando Militar do Planalto (CMP). Foi por iniciativa do general Geraldo Henrique Dutra Menezes, comandante do CMP, que três subunidades do Batalhão da Guarda Presidencial estavam de prontidão no dia 8.

Foi ainda por ordem do general que os dois primeiros contingentes extras para proteger o Palácio do Planalto foram enviados contra os extremistas, antes de serem solicitados pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Este sim dispensou reforço no prédio 20 horas antes da invasão. Aqui se deve indagar por quê. Falha houve na inteligência. E seus culpados devem ser procurados no Centro de Inteligência do Exército (CIE), nos órgãos de inteligência federais e nos das polícias do governo do Distrito Federal.

Sem as informações corretas, Dutra e outros não tinham como dispor dos meios adequados no terreno a fim de defender a sede do Poder Executivo. A caça às bruxas se alimenta ainda do clima que tomou conta das Forças Armadas, logo após a eleição presidencial. Esta mal havia acabado quando o coronel de um dos Batalhões de Polícia do Exército (BPE), do Comando Militar do Leste (CML), resolveu gravar dois áudios e compartilhá-los no grupo de sua turma de Academia das Agulhas Negras (Aman).

“Ora, senhores, será que ninguém viu o que aconteceu? Será que ninguém viu que as eleições foram ganhas com uma diferença de 1 milhão e 800 mil votos?” O oficial prossegue, levantando suspeitas sobre a lisura da votação no Nordeste, área que deu ampla vitória a Luiz Inácio Lula da Silva: “Será que ninguém viu que muitos desses votos foram comprados com dinheiro apreendido em rodovias? O monte de transporte de gente, que é comum no Nordeste? Meus amigos que serviram no Nordeste podem confirmar isso”.

Depois, o coronel criticou as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tirou do ar perfis de redes sociais que espalhavam notícias falsas sobre as urnas eletrônicas. “Será que ninguém viu que isso mudou as eleições, que todos os apoiadores foram cerceados, que não puderam falar, tiveram seus canais bloqueados, jornalistas afastados? Será que ninguém viu que um preso foi solto? Será que vamos ficar à mercê de uma parcela que não representa a maioria? Vamos ser governados por aquela equipe toda que apareceu na televisão, aquele cara lá que apareceu com dinheiro na cueca? Será que ninguém viu isso?”

O oficial pergunta aos colegas o que eles pensam do silêncio do então presidente Jair Bolsonaro, criticando o que lhe parece ser a omissão dos chefes. “É por isso que queremos ouvir o que vocês acham, porque até agora o presidente não se pronunciou. Ninguém tá vendo o que está acontecendo não?” Ele então conclui: “Se ninguém viu, eu vou dizer para vocês: existe dúvida sobre a legitimidade desse processo. Existe dúvida sobre a legitimidade do que ocorreu”. Os áudios do coronel do BPE mostram a penetração do radicalismo nos grupos de aplicativos de mensagens de oficiais do Exército nos dias que antecederam a posse de Lula.

Lula recebe o general Tomás em Brasília, após nomeá-lo comandante do Exército, no sábado Foto: RICARDO STUCKERT

Em outro grupo, um capitão de mar e guerra do quadro técnico da Armada escreveu, ao ver Lula discursando no parlatório do Palácio do Planalto: “Hora do sniper”. Um coronel do quadro de Material Bélico do Exército mandou mensagem nesse mesmo dia a um colega que sugeriu um atentado: “Esse é o momento”. Os dois oficiais da ativa fizeram os comentários no momento em que Lula já havia prestado o juramento constitucional e tomado posse como presidente. E como comandante em chefe das Forças Armadas.

Foram comentários em um grupo privado de militares. Representariam uma impropriedade, se fossem obra de cidadãos comuns. Mas ditas por militares que portam armas com a responsabilidade de defender a Constituição e os Poderes da República as frases soam como uma ameaça desleal e incompatível com a farda. A coluna teve acesso às mensagens. Como os áudios do coronel do BPE, elas ajudam a compreender os muitos militares que simpatizavam com as pessoas na frente dos quartéis e, assim, se mantiveram sem perceber a escalada de radicalização que se seguiu entre os acampados, levando até a atos terroristas.

Erro de avaliação – além da simpatia – foi responsável em parte pelo apagão da inteligência militar diante dos extremistas. Mas não só. Havia oficiais no CIE que trabalhavam em dezembro com o cenário de que um golpe estava sendo preparado. Um deles alertou um interlocutor civil. Foi nessa época que o então ministro da Justiça Anderson Torres recebeu a minuta de decreto de Estado de Defesa, apreendida em sua casa. Preparava-se um golpe em Brasília. Disso a maioria do Alto Comando do Exército não tem mais dúvida.

O tenente-coronel do Exército, Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro durante cerimonia no Palácio do Planalto Foto: Dida Sampaio/Estadão

Até porque os generais se recusaram a virar a mesa, como era desejado pelos bolsonaristas que acampavam nos quartéis. E pelos oficiais da ativa e da reserva que se manifestavam publicamente ou de forma reservada em redes sociais. Militares e bolsonaristas montaram uma campanha de assédio aos generais contra a vitória de Lula. Inconformados com o fracasso, passaram difamar integrantes do Alto Comando que julgavam tê-los traído. Passaram a designá-los como melancias, caso dos generais Tomás, Richard Nunes e Valério Stumpf.

Todos esses conspiradores devem ser identificados e punidos. Todos os que ultrapassaram a barreira do desabafo particular para se envolver em conspiratas que levaram à fracassada tomada do poder devem ser responsabilizados não só pelas ofensas aos superiores, mas pela tentativa de quebra da hierarquia ao defenderem que coronéis ultrapassassem os generais e usassem suas tropas para depor Lula. Eles aderiram à tentativa de golpe quando tornaram públicas exortações em redes sociais para seus milhares de seguidores.

No dia 8, não foi só a Inteligência que errou. Outra falha foi a de Lula da Silva. Temeroso da reação dos militares e sem interlocutores na caserna, o petista adotou uma política de apaziguamento. E foi cedendo pouco a pouco aos desejos lícitos, mas também às extravagâncias e às indelicadezas que lhe eram dirigidas. A primeira nasceu dos comandantes militares de Bolsonaro. Queriam passar os cargos antes de Lula tomar posse. Foi assim no Exército. Na Marinha, o almirante Almir Garnier mandou às favas seu papel institucional e não passou o comando ao almirante nomeado por Lula, Marcos Sampaio Olsen.

O ministro da Defesa, José Múcio, concordou com a estratégia de se desocupar os acampamentos de forma paulatina  Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO - 9/12/22

Depois, Lula e seu ministro da Defesa, José Múcio, concordaram com a estratégia do comando do Exército de estrangulamento dos acampados, que pediam um golpe militar, em vez de dispersar a manifestação que incitava os militares ao cometimento de um crime. O petista podia ter ordenado a desocupação imediata dos terrenos – Dutra e os outros generais não, pois obedeciam ao comandante. Em vez disso, o presidente deixou de exercer sua autoridade. A fraqueza foi pressentida pelos extremistas. Tivesse dado a ordem, o golpe teria sido frustrado. A tibieza do poder civil e o clima radicalizado no interior da Força – inclusive entre oficiais da ativa – ajudaram a adubar o terreno onde brotou o evento do dia 8.

Alguns dos que hoje querem impedir uma caça às bruxas sabem que isso não significa se comportar como o general Arruda, então comandante do Exército, e manter a nomeação do tenente-coronel Cid para o 1.º BAC, sob o argumento de que o oficial não pode ser vítima de perseguição ideológica. Arruda usou este argumento bom para uma situação ruim. Esqueceu-se o general de que o coronel, sombra de Bolsonaro durante quatro anos, fora indiciado em inquérito criminal pela Polícia Federal por incitação ao crime – a mesma conduta delituosa que muitos dos extremistas do dia 8 vão responder na Justiça.

A segurança das instituições – e o 1.º BAC é parte da força de reação rápida do comando do Exército – se veria desafiada pela manutenção de Cid? Um oficial nessas condições pode receber da República um comando? Ele deve cuidar de sua defesa na Justiça. E as instituições devem fazer o mesmo. Arruda não percebeu mais uma vez que a conjuntura mudara. Assim como não vislumbrou a radicalização dos acampados, agora não compreendeu a necessidade de se reconstruir a institucionalidade em frangalhos.

O Exército e seu novo comandante podem superar esse episódio e reafirmar a disciplina que os extremistas tentaram esgarçar. Contam com apoios e manifestações de colegas da ativa e da reserva, como a do general Juarez Cunha. Mas a mudança de comando ainda causa temores. O coronel da ativa Antoine Cruz afirmou no Twitter, horas depois de Tomás assumir, que o processo seletivo de um comandante de uma organização militar não tem ligação política ou aval do presidente. O coronel quer ensinar seus comandantes?

Manifestação do coronel Antoine após a demissão do general Arruda Foto: Reprodução/Twitter

A tarefa de Tomás será tanto mais fácil quanto mais moderada – e afastada do punitivismo que golpeou a política na última década – forem as investigações e as medidas adotadas para o revigoramento da disciplina. O presidente exerceu, finalmente, sua autoridade ao nomeá-lo, em um ato que muitos viram como sua posse como comandante em chefe das Forças. Agora, mais do que punir os generais e outros oficiais que conviveram com acampados na frente de quartéis, deve-se responsabilizar os chefes da inteligência – pela incompetência ou pela conivência. Sem perder de vista o equilíbrio e a pacificação.

O medo de uma caça às bruxas no Exército e a necessidade de contenção de extremistas são ameaças que o novo comandante, general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, vai enfrentar. Após a demissão do general Júlio César de Arruda, integrantes da ativa continuam a fazer críticas ao governo. Contê-los será um desafio. Ao mesmo tempo, setores petistas defendem a degola de outros oficiais, além do afastamento do tenente-coronel Mauro César Cid do comando do 1.º Batalhão de Ações de Comando (1.º BAC).

O novo comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, que foi nomeado no sábado por Luiz Inácio Lula da Silva Foto: WILTON JUNIOR

Trata-se aqui de um erro. Há fatos suficientes contra militares que compareceram ou incentivaram os eventos do dia 8, a intentona bolsonarista, como os coronéis Adriano Testoni e José Placídio. Eles devem ser punidos. Mas não há provas que comprometam, por enquanto, os integrantes do Comando Militar do Planalto (CMP). Foi por iniciativa do general Geraldo Henrique Dutra Menezes, comandante do CMP, que três subunidades do Batalhão da Guarda Presidencial estavam de prontidão no dia 8.

Foi ainda por ordem do general que os dois primeiros contingentes extras para proteger o Palácio do Planalto foram enviados contra os extremistas, antes de serem solicitados pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Este sim dispensou reforço no prédio 20 horas antes da invasão. Aqui se deve indagar por quê. Falha houve na inteligência. E seus culpados devem ser procurados no Centro de Inteligência do Exército (CIE), nos órgãos de inteligência federais e nos das polícias do governo do Distrito Federal.

Sem as informações corretas, Dutra e outros não tinham como dispor dos meios adequados no terreno a fim de defender a sede do Poder Executivo. A caça às bruxas se alimenta ainda do clima que tomou conta das Forças Armadas, logo após a eleição presidencial. Esta mal havia acabado quando o coronel de um dos Batalhões de Polícia do Exército (BPE), do Comando Militar do Leste (CML), resolveu gravar dois áudios e compartilhá-los no grupo de sua turma de Academia das Agulhas Negras (Aman).

“Ora, senhores, será que ninguém viu o que aconteceu? Será que ninguém viu que as eleições foram ganhas com uma diferença de 1 milhão e 800 mil votos?” O oficial prossegue, levantando suspeitas sobre a lisura da votação no Nordeste, área que deu ampla vitória a Luiz Inácio Lula da Silva: “Será que ninguém viu que muitos desses votos foram comprados com dinheiro apreendido em rodovias? O monte de transporte de gente, que é comum no Nordeste? Meus amigos que serviram no Nordeste podem confirmar isso”.

Depois, o coronel criticou as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tirou do ar perfis de redes sociais que espalhavam notícias falsas sobre as urnas eletrônicas. “Será que ninguém viu que isso mudou as eleições, que todos os apoiadores foram cerceados, que não puderam falar, tiveram seus canais bloqueados, jornalistas afastados? Será que ninguém viu que um preso foi solto? Será que vamos ficar à mercê de uma parcela que não representa a maioria? Vamos ser governados por aquela equipe toda que apareceu na televisão, aquele cara lá que apareceu com dinheiro na cueca? Será que ninguém viu isso?”

O oficial pergunta aos colegas o que eles pensam do silêncio do então presidente Jair Bolsonaro, criticando o que lhe parece ser a omissão dos chefes. “É por isso que queremos ouvir o que vocês acham, porque até agora o presidente não se pronunciou. Ninguém tá vendo o que está acontecendo não?” Ele então conclui: “Se ninguém viu, eu vou dizer para vocês: existe dúvida sobre a legitimidade desse processo. Existe dúvida sobre a legitimidade do que ocorreu”. Os áudios do coronel do BPE mostram a penetração do radicalismo nos grupos de aplicativos de mensagens de oficiais do Exército nos dias que antecederam a posse de Lula.

Lula recebe o general Tomás em Brasília, após nomeá-lo comandante do Exército, no sábado Foto: RICARDO STUCKERT

Em outro grupo, um capitão de mar e guerra do quadro técnico da Armada escreveu, ao ver Lula discursando no parlatório do Palácio do Planalto: “Hora do sniper”. Um coronel do quadro de Material Bélico do Exército mandou mensagem nesse mesmo dia a um colega que sugeriu um atentado: “Esse é o momento”. Os dois oficiais da ativa fizeram os comentários no momento em que Lula já havia prestado o juramento constitucional e tomado posse como presidente. E como comandante em chefe das Forças Armadas.

Foram comentários em um grupo privado de militares. Representariam uma impropriedade, se fossem obra de cidadãos comuns. Mas ditas por militares que portam armas com a responsabilidade de defender a Constituição e os Poderes da República as frases soam como uma ameaça desleal e incompatível com a farda. A coluna teve acesso às mensagens. Como os áudios do coronel do BPE, elas ajudam a compreender os muitos militares que simpatizavam com as pessoas na frente dos quartéis e, assim, se mantiveram sem perceber a escalada de radicalização que se seguiu entre os acampados, levando até a atos terroristas.

Erro de avaliação – além da simpatia – foi responsável em parte pelo apagão da inteligência militar diante dos extremistas. Mas não só. Havia oficiais no CIE que trabalhavam em dezembro com o cenário de que um golpe estava sendo preparado. Um deles alertou um interlocutor civil. Foi nessa época que o então ministro da Justiça Anderson Torres recebeu a minuta de decreto de Estado de Defesa, apreendida em sua casa. Preparava-se um golpe em Brasília. Disso a maioria do Alto Comando do Exército não tem mais dúvida.

O tenente-coronel do Exército, Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro durante cerimonia no Palácio do Planalto Foto: Dida Sampaio/Estadão

Até porque os generais se recusaram a virar a mesa, como era desejado pelos bolsonaristas que acampavam nos quartéis. E pelos oficiais da ativa e da reserva que se manifestavam publicamente ou de forma reservada em redes sociais. Militares e bolsonaristas montaram uma campanha de assédio aos generais contra a vitória de Lula. Inconformados com o fracasso, passaram difamar integrantes do Alto Comando que julgavam tê-los traído. Passaram a designá-los como melancias, caso dos generais Tomás, Richard Nunes e Valério Stumpf.

Todos esses conspiradores devem ser identificados e punidos. Todos os que ultrapassaram a barreira do desabafo particular para se envolver em conspiratas que levaram à fracassada tomada do poder devem ser responsabilizados não só pelas ofensas aos superiores, mas pela tentativa de quebra da hierarquia ao defenderem que coronéis ultrapassassem os generais e usassem suas tropas para depor Lula. Eles aderiram à tentativa de golpe quando tornaram públicas exortações em redes sociais para seus milhares de seguidores.

No dia 8, não foi só a Inteligência que errou. Outra falha foi a de Lula da Silva. Temeroso da reação dos militares e sem interlocutores na caserna, o petista adotou uma política de apaziguamento. E foi cedendo pouco a pouco aos desejos lícitos, mas também às extravagâncias e às indelicadezas que lhe eram dirigidas. A primeira nasceu dos comandantes militares de Bolsonaro. Queriam passar os cargos antes de Lula tomar posse. Foi assim no Exército. Na Marinha, o almirante Almir Garnier mandou às favas seu papel institucional e não passou o comando ao almirante nomeado por Lula, Marcos Sampaio Olsen.

O ministro da Defesa, José Múcio, concordou com a estratégia de se desocupar os acampamentos de forma paulatina  Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO - 9/12/22

Depois, Lula e seu ministro da Defesa, José Múcio, concordaram com a estratégia do comando do Exército de estrangulamento dos acampados, que pediam um golpe militar, em vez de dispersar a manifestação que incitava os militares ao cometimento de um crime. O petista podia ter ordenado a desocupação imediata dos terrenos – Dutra e os outros generais não, pois obedeciam ao comandante. Em vez disso, o presidente deixou de exercer sua autoridade. A fraqueza foi pressentida pelos extremistas. Tivesse dado a ordem, o golpe teria sido frustrado. A tibieza do poder civil e o clima radicalizado no interior da Força – inclusive entre oficiais da ativa – ajudaram a adubar o terreno onde brotou o evento do dia 8.

Alguns dos que hoje querem impedir uma caça às bruxas sabem que isso não significa se comportar como o general Arruda, então comandante do Exército, e manter a nomeação do tenente-coronel Cid para o 1.º BAC, sob o argumento de que o oficial não pode ser vítima de perseguição ideológica. Arruda usou este argumento bom para uma situação ruim. Esqueceu-se o general de que o coronel, sombra de Bolsonaro durante quatro anos, fora indiciado em inquérito criminal pela Polícia Federal por incitação ao crime – a mesma conduta delituosa que muitos dos extremistas do dia 8 vão responder na Justiça.

A segurança das instituições – e o 1.º BAC é parte da força de reação rápida do comando do Exército – se veria desafiada pela manutenção de Cid? Um oficial nessas condições pode receber da República um comando? Ele deve cuidar de sua defesa na Justiça. E as instituições devem fazer o mesmo. Arruda não percebeu mais uma vez que a conjuntura mudara. Assim como não vislumbrou a radicalização dos acampados, agora não compreendeu a necessidade de se reconstruir a institucionalidade em frangalhos.

O Exército e seu novo comandante podem superar esse episódio e reafirmar a disciplina que os extremistas tentaram esgarçar. Contam com apoios e manifestações de colegas da ativa e da reserva, como a do general Juarez Cunha. Mas a mudança de comando ainda causa temores. O coronel da ativa Antoine Cruz afirmou no Twitter, horas depois de Tomás assumir, que o processo seletivo de um comandante de uma organização militar não tem ligação política ou aval do presidente. O coronel quer ensinar seus comandantes?

Manifestação do coronel Antoine após a demissão do general Arruda Foto: Reprodução/Twitter

A tarefa de Tomás será tanto mais fácil quanto mais moderada – e afastada do punitivismo que golpeou a política na última década – forem as investigações e as medidas adotadas para o revigoramento da disciplina. O presidente exerceu, finalmente, sua autoridade ao nomeá-lo, em um ato que muitos viram como sua posse como comandante em chefe das Forças. Agora, mais do que punir os generais e outros oficiais que conviveram com acampados na frente de quartéis, deve-se responsabilizar os chefes da inteligência – pela incompetência ou pela conivência. Sem perder de vista o equilíbrio e a pacificação.

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