O ministro da Defesa, general Paulo Sérgio de Oliveira, não quer se ver enrolado em nova acusação de quebra de sigilo funcional e, por isso, pediu autorização ao ministro Edson Fachin, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para divulgar o documento criado por seu subordinado, general Heber Garcia Portella, sobre as urnas eletrônicas. Paulo Sérgio escreveu ainda que teve de lidar com o pedido de acesso aos dados feito pelo deputado bolsonarista Filipe Barros (PL-PR).
O titular da Defesa podia muito bem nem mesmo ter citado no documento que encaminhou ao TSE o interesse do deputado pelos papéis, mas só o fez para deixar claro que se dissociava de um futuro vazamento. Além disso, a Pasta estuda propor ao TSE que seja feito um rodízio de oficiais generais das três Forças na Comissão de Transparência das Eleições, mantida pelo tribunal.
Hoje, o representante da Defesa é o general Heber. A ideia é substituí-lo primeiro por um almirante e, depois, por um brigadeiro. Os 71 técnicos ligados às três Forças que participam dos trabalhos continuariam a assessorar a comissão. Enquanto o rodízio não se instala, o ministro encaminhou ofício ao TSE para que as comunicações entre a Corte e a Defesa sejam endereçadas a ele e não mais a Heber, seu subordinado, conforme nota divulgada no começo desta tarde.
Há no Exército uma sensação de que os atritos na Praça dos Três Poderes causam degradação da imagem da Força Terrestre. E a atuação do ministro serviria para passar uma mensagem de normalidade institucional. Daí a necessidade de se dissociar dos movimentos do deputado bolsonarista.
Era já público o desejo do Planalto para que toda a documentação fosse publicada e, assim, servisse de base para os argumentos do deputado e do presidente Jair Bolsonaro, que, depois que novas pesquisas eleitorais o colocaram ainda atrás de Luiz Inácio Lula da Silva, voltou a questionar as urnas. Bolsonaro e seu entorno sabem que não basta criticar os institutos que verificam a intenção de voto do eleitor.
No ano passado, o ex-ministro do STF e da Defesa Nelson Jobim definiu a alegação bolsonarista de fraude eleitoral como bobagem e “discurso de derrotado”. Bobagem não é. Não pelo menos no sentido que Jobim quis dar. Trata-se de coisa séria. Enquanto Jobim destilava seu desprezo pelos argumentos do governo, no Planalto armavam-se lances que serão lembrados por décadas, como o desfile de tanques em Brasília, que, para muitos, serviu para intimidar o Congresso no dia da votação sobre o voto impresso. Antes houve o vazamento do inquérito sigiloso da PF sobre as urnas eletrônicas. A investigação não encontrou falhas no sistema, mas trechos dela foram usados pelo presidente em uma operação para pôr em dúvida o sistema.
A ação – segundo a PF – resultou em uma live do presidente com o deputado Filipe Barros. Ambos foram auxiliados pelo tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, o ajudante de Jair Bolsonaro que está envolvido em três de cada quatro inquéritos a que o chefe responde. Cid é aquele que foi flagrado em 1.º de junho de 2020 em um diálogo com o blogueiro Allan Santos, foragido há quase um ano. Diante das primeiras manifestações de rua contra seu chefe, o coronel escreveu para o blogueiro: “Grupos guerrilheiros/terroristas. Estamos voltando para 68, mas agora com apoio da mídia”.
Diante da resposta de Santos de que era necessário um golpe militar urgentemente, o militar escreveu: “Opa!”. Escreveu então o Blog do Fausto Macedo: “Questionado sobre a declaração, Mauro Cid disse que o seu ‘Opa!’ era ‘apenas uma saudação, como, por exemplo, Bom dia!’”. Eis o ponto: junta-se à gravidade do caso o deboche. É sabido que na caserna o ‘opa’ do coronel é sinal de concordância. O tenente-coronel Cid tem a proteção de Bolsonaro em razão da proximidade do presidente com sua família.
Seu avô, o coronel Antonio Carlos Cid, é um artilheiro da turma de 1955 da Academia Militar que ajudara o cadete Bolsonaro quando o jovem se indispôs com um oficial médico na escola. O aluno só não foi desligado do curso em razão da intervenção do avô do ajudante de ordens. Bolsonaro era colega de um dos filhos de seu salvador – o futuro general Mauro Cesar Lorena Cid, pai do assessor do presidente. Ao passar para a reserva em 2019, o general Cid ganhou uma sinecura em Miami – é o representante da Agência de Promoção das Exportações (Apex), com vencimentos de R$ 78 mil (R$ 48 mil da Apex e R$ 32 mil como militar).
É notável que, agora, mais uma vez o deputado Filipe Barros, relator da PEC do Voto Impresso, ressurja em nova ação do bolsonarismo contra as urnas eletrônicas. No mesmo dia em que o ministro da Defesa conta a Fachin que o parlamentar era uma das pessoas interessadas em ter acesso aos documentos produzidos pelo general Heber, a AGU entrava com ação para impedir que seja feito um laudo com os dados da quebra de sigilo do coronel Cid no inquérito relatado pelo ministro Alexandre de Moraes.
Conforme mostrou o Estadão, Barros tinha mais uma vez o obstáculo do sigilo para poder passar a mão na papelada da Defesa. É que o general Heber havia decretado sigilo em trechos de seu documento, alegando que as informações podiam pôr em risco as instituições. O general decidiu que sete pontos de sua resposta deveriam permanecer em sigilo por cinco anos e, por isso, classificou o documento como de caráter reservado. Por isso, nem Barros nem qualquer outra pessoa poderia ter acesso ao seu conteúdo sem incorrer em crime a autoridade responsável que permitisse a consulta.
Se Bolsonaro ou Barros aparecessem em uma live com o papel do general, seria uma flagrante reincidência criminosa. Não se sabe ao certo o que Heber escreveu ali. No Exército dizem que se trata de questões técnicas. Foi Bolsonaro quem sugeriu que as Forças Armadas fizessem uma apuração paralela dos votos, como se ela fosse um partido político ou parte interessada nas eleições, vinculada, obviamente, ao bolsonarismo. Em Brasília, todos esperam pela publicação dos papéis do general. O princípio da publicidade na administração pública pode desamarrar esse embrulho. Mesmo quando se trata de antigas tradições.
No Império cercavam-se as igrejas ou despachavam-se capoeiras e capangas para garantir o resultado da eleição. À falta de instrumentos eficazes contra a falta de apoio popular, os interessados em salgar as urnas podem recorrer a outro antigo símbolo das eleições no Brasil: a cabala. Conspira-se contra o voto e a vontade popular. Talvez se queira substituir as urnas pelo saco e pelas bolas das aranhas de A Sereníssima República. Ainda assim teríamos de conviver com os testemunhos de Barros, de Bolsonaro e do coronel Cid. Diante de tal espetáculo, impossível não dar razão ao Cônego Vargas, o personagem do conto de Machado de Assis: “O comentário da lei é a eterna malícia”.