Era 1971 quando Daniel Ellsberg, um analista da Rand Corporation, encaminhou os 47 volumes da História do processo norte-americano para a tomada de decisões em política vietnamita ao repórter Neil Sheehan, do New York Times. O conjunto de documentos entrou para a história como os Pentagon Papers, os Documentos do Pentágono.
A ação de Ellsberg expôs os limites da mentira e o fracasso da impostura como condição para o exercício de um cargo por governantes que se preocupam mais com as relações públicas e com as próximas eleições do que com o bem comum. Os documentos tinham uma característica curiosa descrita por Hannah Arendt em Crises da República: existia entre os mentirosos um processo que Ellsberg chamou de “autoembuste”. Ou seja, antes de fazerem de tudo para ganhar a mente do povo, para manipulá-lo, os governantes se convenciam de suas próprias mentiras.
Arendt conclui: “A política da mentira quase nunca visa o inimigo”. Eis por que os papéis de Ellsberg não traziam segredos militares que pudessem enquadrá-lo na lei antiespionagem. “Eram destinados ao consumo doméstico, à propaganda caseira, e, especialmente, a enganar o Congresso.” Assim também seria com Jair Bolsonaro.
A reunião com embaixadores em Brasília para difamar as urnas eletrônicas não era dirigida ao convencimento dos representantes estrangeiros. Mas aos eleitores brasileiros. Em resposta, os bolsonaristas logo se apressam a afirmar: o ex-presidente não pode ser cassado por ter mentido, pois qual político não conta suas lorotas? Mentir não pode. E roubar? Pode?
Leia mais
O problema é que o ex-presidente não será julgado em razão das mentiras contra as urnas, mas pelo abuso de poder, por ultrapassar o limite da discricionariedade para entrar no terreno da arbitrariedade. A mentira seria a justificativa que procurava normalizar a conduta abusiva. Bolsonaro não enfrentará, desta vez, o veredicto de um tribunal de honra militar, mas o de uma Corte civil. Não será declarado indigno de seus pares – ontem militares, hoje políticos –, mas julgado se cometeu um crime.
Falecido na semana passada, Ellsberg foi o instrumento por meio do qual uma nação dividida – os EUA durante a Guerra do Vietnã – pôde discutir o uso da mentira na política. A informação não manipulada dos fatos, sem a qual a liberdade de opinião é uma farsa, revela não só a importância de uma imprensa livre e idônea, como dizia Arendt. Também demonstra o valor da transparência – e da verdade – na esfera pública para que a soberania popular não seja fraudada. Eis a responsabilidade dos governantes. E é sobre ela que Bolsonaro vai prestar contas.