É preciso olhar os dados do Ministério da Justiça sobre o recadastramento de armas de uso restrito que constavam no sistema Sigma, mantido pelo Exército, para descobrir o tamanho da enrascada que foi a liberação – sem fiscalização suficiente – de armas como fuzis para os chamados CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) no governo de Jair Bolsonaro. Ao todo, 6.198 dessas armas não foram recadastradas e, das 44.264 que o foram, 1.727 deixaram de ser conferidas pelos agentes federais. Ou seja, não foram levadas até a delegacia da Polícia Federal, como mandava a legislação, para serem conferidas pelas autoridades.
O risco de que parte desse arsenal tenha ido parar nas mãos de milicianos e de traficantes de drogas ou nos arsenais das facções do crime organizado não é pequeno. É o que disse à coluna, por exemplo, o policial federal Roberto Uchôa, pesquisador do Fórum Brasileiro da Segurança Pública. “Estamos falando das armas mais restritas, de calibre 7,62 mm. Armas poderosas. Há uma percepção de que uma grande parte dessas armas pode ter sido desviada para o mercado ilegal. Mas outros dizem que dentro desses 6 mil estariam CACs com receio do recadastramento, o que para mim é papo furado.”
Uchôa trabalhou com o Sinarm, o Sistema Nacional de Armas, da PF. Para ele, o problema envolvendo cerca de 12% de armas restritas não recadastradas deve se repetir no caso das pistolas e carabinas. “A diferença é que nas armas de calibre permitido (os novos decretos devem torná-las novamente de uso restrito) não era preciso a apresentação na PF. Até o criminoso que estava em posse dela podia fazer o recadastramento por meio de um laranja que lançasse tudo no sistema. Aí, não estamos falando de 6 mil, mas de 12% de 840 mil. O problema pode atingir quase cem mil armas.”
Se há o risco de boa parte desse armamento ter ido parar nas mãos de criminosos em razão de medidas adotadas no governo Bolsonaro, há também o risco de o governo de Luiz Inácio Lula da Silva estimular a venda de mais armas aos bandidos ao tentar fechar o cerco aos donos de pistolas e carabinas e oferecer valores de recompra dessas armas muito abaixo daqueles que podem ser obtidos no mercado ilegal. É que os decretos anunciados pelo atual governo querem tornar mais difícil a vida dos CACs.
Lula anunciou que restringirá a quantidade de munição que donos de armas e CACs podem comprar por ano. Também reduziu de dez anos para três a validade dos registros de armas, tornando mais caro manter arsenais. Por fim, acabou com o porte de trânsito para os CACs – o documento era usado para burlar o Estatuto do Desarmamento – e com os clubes que funcionavam 24 horas – muitos funcionavam apenas no papel para dar um álibi a quem andava ilegalmente armado de madrugada.
Todas essas medidas podem desestimular a manutenção de armas e é aí que o caldo pode engrossar. O programa de recompra de armas do governo prevê, atualmente, valores que vão de R$ 150 a R$ 450, dependendo do tipo de arma, para o governo adquirir pistolas e carabinas. O preço muito baixo pode estimular a venda delas a criminosos. “Se não vai poder andar armado pelas ruas e se está ficando muito caro, a tendência será que muita gente não vai querer manter a arma. E aí ela vai ter o governo, que vai pagar R$ 450, e o ilegal, que vai pagar de R$ 4 mil a R$ 5 mil numa arma que basta raspar a numeração”, afirmou Uchôa, para quem o governo deve atualizar os valores da recompra.
Para ele, a chamada “festa dos CACs” termina com fim do porte de trânsito – que permitia ao dono da arma levá-la municiada no trajeto de casa para o clube de tiro –, bem como com a criação de três níveis de atiradores, restringindo a compra de armas e munições e condicionando-a à presença efetiva no clube de tiro e à participação em competições. “Esse são pontos que devem mudar bastante o mercado”, disse. Além disso, em um prazo de seis meses, toda a fiscalização dos CACs passará do Exército à PF.
Fronteiras
Com o fechamento da torneira que permitiu a bandidos do Primeiro Comando da Capital (PCC) comprar fuzis e submetralhadoras por meio do uso de laranjas registrados como CACs e aos milicianos do Rio a adquirir munições por um terço do preço que deveriam pagar por elas na Bolívia ou no Paraguai, os órgãos de segurança voltarão suas atenções para a faixa de fronteira com essas países vizinhos. “Voltamos a ter o protagonismo do mercado internacional. Vai gerar um aumento do custo para aquisição de novas armas e volta a necessidade de trazer por R$ 60 mil, R$ 70 mil essas armas de países do entorno”, disse Uchôa.
Um dos maiores especialistas no combate ao PCC no Brasil, o promotor Lincoln Gakiya, afirmou que os novos decretos de Lula não devem ter grande impacto na vida da facção. “Não vai ter muito impacto. O PCC fez isso de forma esporádica”, disse. Entre os bandidos que utilizaram a brecha estava Marcos Roberto de Almeida, o Tuta, bandido que recebeu a tarefa de planejar o resgate de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, detido no sistema penitenciário federal. Atualmente, ele se encontra desaparecido.
“O PCC tem facilidade muito grande em adquirir esse armamento no Paraguai e na Bolívia. Quando compram drogas, no carregamento sempre vem uma quantidade de fuzis vendidos pelos mesmos fornecedores. O PCC já tem muito armamento guardado no Brasil, no Paraguai e na Bolívia. Calculo em milhares. Não dependem do armamento comprado na indústria nacional”, disse Gakiya. Para Uchôa não dá para resolver todos os problemas de uma vez. “Mas vamos acabar com o fornecimento interno , principalmente, de munições: um atirador podia comprar 30 mil munições de fuzis por ano.”
Ou seja, as boas intenções de se rastrear e restringir a venda de munições, bem como de se ter uma fiscalização efetiva das armas, não exime a autoridade de cuidar para que novas brechas para o crime não sejam criadas. Nem ela deve tratar os donos de armas como se fossem celerados ou inimigos – é um direito do cidadão decidir quando e por que manter uma arma em casa para sua defesa. Bolsonaro buscou aplausos fáceis vendendo a ideia da liberação de revólveres, pistolas, carabinas e fuzis. Lula deve cuidar para que a festa do passado não se transforme em uma feira do presente. Mais uma vez, para o deleite dos criminosos.