Quando a coordenação da transição para o futuro governo decidiu procurar os ex-comandantes das Forças Armadas para que participassem do grupo que definiria as políticas de defesa para os próximos quatro anos, encontrou diante dela oficiais generais que responderam aos emissários do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e ao próprio petista que transição nos quartéis é passagem de comando. E o melhor que Lula poderia fazer era escolher os oficiais mais antigos de cada Força para comandar a Marinha, o Exército e a Força Aérea pelos próximos quatro anos.
Esse foi o conselho que Lula e o futuro ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho, ouviram dos brigadeiros Juniti Saito e Nivaldo Rossato, em reunião revelada pela colunista Eliane Cantanhede, do Estadão. Antes, o general Enzo Peri, que comandara o Exército de 2007 a 2015, afirmara o mesmo para o grupo de Aloizio Mercadante, Celso Amorim e Geraldo Alckmin. Assim também disse o almirante Julio Soares de Moura Neto. O conselho dos ex-comandantes foi unânime.
E, ao ouvi-los, Lula e Múcio concordaram com a proposta, tanto que a tendência é aceitá-la. Mas quando falam em nomear o mais antigo, os comandantes sabem que o comandante em chefe pode escolhê-los entre os três mais antigos e não, necessariamente, o mais antigo de cada Força. E é justamente isso que setores do PT e do PSB, além de estudiosos da área de defesa tentaram fazer chegar aos ouvidos do presidente eleito. Todo o nó está na escolha do comandante do Exército.
É que o mais antigo, o general Julio Cesar de Arruda, atual chefe do Departamento de Engenharia e Construção (DEC), fez sua carreira entre as Forças Especiais (FE), é visto como oficial próximo do ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, e do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Considerado o candidato ao comando dos bolsonaristas no Exército, sua nomeação para o cargo por Lula é vista como uma “ironia” até entre os generais. De que forma os bolsonaristas vão reclamar, agora que estaria mantida a ascendência de Ramos e Pazuello na Força? Em resposta, os que defendem Arruda lembram sua proximidade com Enzo.
Seus críticos rebatem, afirmando que, entre outros temas que podem ser varridos para debaixo do tapete estaria o sigilo de cem anos, por exemplo, do resultado da apuração disciplinar sobre o ex-titular da Saúde decretado pelo Exército depois que o comando foi impedido de punir o general por participar de um comício de Bolsonaro, no Rio, em 2021. Pazuello agora é deputado eleito pelo PL, no Rio. Em uma transmissão para o site Opera Mundi, já na sexta-feira, o ex-deputado federal petista José Genoíno disse que, se o PT respeitar a antiguidade na escolha dos comandantes, vai pôr nos cargos bolsonaristas. “E quem não comanda, é comandado”, afirmou.
Lula, para ele, deveria sinalizar, claramente, que a soberania do voto vai prevalecer. A história revelada pelo Estadão de que os chefes atuais planejam passar os comandos antes da posse de Lula ou para um indicado pelo futuro presidente ou para um interino foi chamada por Genoíno de “a expressão da tutela militar sob o novo governo, que não devia ser aceita pelo presidente da República”. Está aqui o inconformismo com os destinos da transição na Defesa. Ou antes a sua ausência. A área militar ficou sem transição. Em seu lugar, apostou-se na continuidade e no apaziguamento.
É provável que Lula nomeie Arruda, assim como o almirante Renato Rodrigues Aguiar Freire seja o escolhido para a Marinha, assim como o brigadeiro Marcelo Kanitz Damasceno, para a FAB. Ambos são chefes do estado-Maior de suas Forças. Ex-ministros e estudiosos da caserna defendiam que no caso do Exército, a escolha recaísse sob o segundo da lista, o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva. Tido como um moderado, ele foi ajudante de ordens dos ex-presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, de quem é amigo.
Na transição, depois da escolha de Múcio para a Defesa, o homem que montou uma consultoria em Brasília com a qual abria portas para seus clientes no governo, conforme revelou o jornalista Luiz Vassallo, no Estadão, integrantes do grupo restrito que se reúne com Lula acreditam que a partida está decidida. A favor de Arruda, lembram que ele foi oficial da Arma de Engenharia como o ex-comandante Enzo, de quem foi ajudante de ordens. E o ex-comandante foi um dos poucos generais que mantiveram interlocução com petistas depois que deixou o governo – neste ano, esteve no almoço de aniversário do ex-ministro Celso Amorim.
Enquanto a decisão não é tomada, milhares de pessoas tomam as frentes dos quartéis em protesto contra a eleição de Lula. Por fim, os defensores de Arruda afirmam ainda que Lula tem ao seu lado o general Marco Edson Gonçalves Dias, o G. DIas, que, assim como Arruda, é um F.E., essa confraria, cujo espírito é o da guerra contra o terror, um cenário diferente do atual da guerra moderna.
Vivemos um tempo em que a guerra na Ucrânia faz ser menos essencial ler o Contre-insurrection, théorie et pratique (pode ser a edição com o prefácio do general David H. Petraeus, da guerra no Iraque e no Afeganistão), do tenente-coronel francês David Galula, em comparação com a obra Penser la guerre, Clausewitz, (l’âge planetaire), de Raymond Aron, com sua conclusão sobre a grande ilusão do adeus às armas.
O PT parece procurar alargar a classe dirigente do País, por meio de sua incorporação àquela elite. Nessa festa, uns querem ser aceitos; outros não querem perdê-la. Trata-se de cena conhecida. Pode-se encontrá-la em O Leopardo, de Tomasi di Lampedusa,. Nela, o Principe di Salina se barbeava quando Tancredi apareceu. O sobrinho, após confessar ter visto o tio em suas andanças em Palermo, revela que vai se juntar aos que lutavam nas montanhas de Corleone. “Você está maluco. Ir se meter com essa gente. São todos mafiosos ou enganadores. Um Falconieri deve estar sempre conosco. Com o rei.”
O sobrinho então faz a única pergunta que importava no momento em que a Casa de Savoia tentava unificar a Itália e, para tanto, devia acabar com o Reino dos Bourbon-Duas Sicílias. “Pelo rei. Certo. Mas por qual rei?” E completou: “Se não estivermos também com eles, acabarão por fazer a república. Se quisermos que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude”.
O diálogo vale por uma aula de política. Explica o movimento dos conservadores em tempos de mudança. Um fenômeno não muito distinto toma conta dos progressistas. Na Itália do Risorgimento, toda vida estatal, a partir de 1848, foi caracterizada pela criação de uma classe dirigente cada vez mais ampla, após o fracasso das utopias e da captura das lideranças progressistas pelas forças moderadas, o chamado transformismo.
Antonio Gramsci descreve esse processo que uniu inimigos, aparentemente, irreconciliáveis. No Brasil, os personagens que atuam nos bastidores da escolha do futuro comandante do Exército bem que poderiam estar na obra de Lampedusa ou serem analisados nos Quaderni del Carcere, de Gramsci. A transição de Jair Bolsonaro para Luiz Inácio Lula da Silva na Defesa assume ares que até o vice-presidente Hamilton Mourão elogia.
É como se o PT reconhecesse ter abacaxis demais para descascar no novo governo para se dedicar à Defesa. Daí o apaziguamento, ainda que uma parte do partido não goste. Há muito o que fazer para decidir o destino dos mais de mil militares em cargos civis na Esplanada ou estabelecer uma quarentena para funções políticas que atinja as carreiras de Estado. Lula terá de arrumar recursos para projetos estratégicos nas áreas nuclear, de ciência e tecnologia – com seus mísseis e drones – e para blindados e aeronaves. Espera que os novos comandantes assumam, em troca, o compromisso de não politizar os quartéis.