As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Análise|O presente que Arthur Lira quer dar à cúpula do PCC e da máfia italiana


Sem a delação de Macarrão, Marcola não teria sido condenado a 30 anos de prisão na Operação Ethos nem a máfia siciliana teria sido implodida por Tommaso Buscetta, ‘il boss dei due mundi’

Por Marcelo Godoy
Atualização:

“Il potere logora chi non ce l’ha” (O poder desgasta quem não o tem) é um dos aforismos políticos sobre o poder mais famosos na Itália. Arthur Lira é um homem poderoso. Em suas mãos, tem a pauta da Câmara dos Deputados e os bilhões de emendas parlamentares. Pode fazer um governo rir ou chorar. Ele trava uma luta escatológica pela manutenção de sua força quando deixar a presidência da Casa. E precisa de apoios para eleger um sucessor fiel. Dedica-se a desgastar opositores, bem como qualquer um que se coloque em seu caminho. Sabe que a natureza de Brasília é a do “rei morto, rei posto”. Lira quer sobreviver.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em sessão da Câmara na semana passada Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

E, para isso, promete tudo e qualquer coisa aos seus pares, em troca de apoio na eleição que se avizinha. É nesse contexto que o deputado se tornou o novo Negociador-Geral da República, um cargo que estava vago desde que Eduardo Cunha fora expelido do Congresso. Tudo passa por ele, dos planos de saúde aos planos do Centrão. Em um dos últimos lances dessa corrida pelo poder, Lira desengavetou um projeto do PT, feito em 2016 sob medida para Lula, que, agora, muitos enxergam ser uma forma de salvar Jair Bolsonaro: acabar com a delação premiada de réus presos.

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Legislações desse tipo, feitas para obstar o combate à corrupção, são conhecidas em todo mundo. Na Itália, durante o governo de Silvio Berlusconi, uma delas, o Decreto Biondi, ficou conhecida como il decreto salva-ladri (salva ladrões). No Brasil, se a proposta defendida por Lira em defesa de políticos enrolados com todo tipo de desvio for adiante, não se vai salvar só a turma da Esplanada, mas as cúpulas do Primeiro Comando da Capital (PCC) e as das máfias italiana e dos Bálcãs, que faturam bilhões com o tráfico transatlântico.

Antes de cada deputado votar sobre mais essa inovação de Lira, o Congresso devia ouvir o que tem a dizer o promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco), de São Paulo. Há quase vinte anos, Lincoln não dá um passo sem a escolta de policiais militares. Era 2005 quando ele recebeu o telefonema de um colega. Estava em uma farmácia. “Vá agora para sua casa”, mandou. Uma interceptação telefônica havia acabado de identificar um plano do PCC para matá-lo. Em 2018, a facção usou drones para sobrevoar sua casa e seguir a mulher do promotor, enquanto ela ia às compras.

O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do núcleo do Gaeco, de Presidente Prudente  Foto: Stephanie Fonseca/ESTADÃO
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Após obter dezenas de condenações contra a cúpula da maior organização criminosa da América do Sul, Gakyia se tornou um homem marcado para morrer. O ódio que a liderança do grupo lhe dedica só é comparável ao que a máfia siciliana tinha em relação ao juiz Giovanni Falcone, assassinado em 1992, depois de o chefão Salvatore Riina, ‘U Curtu, fazer explodir os 500 quilos de tritolo, RDX e nitrato de amônia que mandaram pelos ares o magistrado e a sua escolta, em uma autoestrada, em Capaci, na Sicília.

Tudo porque Falcone convencera o mafioso Tommaso Buscetta, don Masino, il boss dei due mondi, então preso no Brasil e condenado pela Justiça italiana, a revelar os segredos de Cosa Nostra. O instituto da colaboração premiada feriu mortalmente a cúpula da máfia, rompendo a lei do silêncio, a omertà, que garantira décadas de impunidade aos criminosos, protegendo suas relações com o mundo político italiano. Falcone mexeu com o poder da máfia. E, para Riina, em bom siciliano, ‘u cummannari è megghiu ri futtiri, ou mandar é melhor do que transar. Sobre o projeto de Lira, disse o promotor Gakiya:

“Acredito que seria um retrocesso sim (na luta contra o crime organizado). Há vários casos envolvendo organizações criminosas em que a delação premiada de colaborador preso foi utilizada como meio de prova. No caso do PCC, é bem comum, inclusive. Aliás, às vezes, é o único meio de obter determinada prova.” Ou seja, Lira quer retirar de homens como Gakiya aquilo que muitas vezes é o único meio de prova para barrar ações do crime organizado, como os planos descobertos pelo promotor.

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Imagens encontradas pelo Gaeco com o PCC das residências de Lira e de Pacheco em Brasília. durante a investigação sobre a Sintonia Restrita Foto: Reprodução / Estadão

Talvez Lira tenha esquecido de um desses planos frustrados por Gakyia: a Sintonia Restrita, o grupo de sicários da facção, enviou a Brasília uma equipe que tinha como alvo o presidente da Câmara dos Deputados e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A facção mobilizou uma célula com três de seus integrantes e bancou seus custos – cerca de R$ 44 mil –, como estadia, celulares, aluguéis, seguro, IPTU, mobília, transporte e até compra de eletrodomésticos. As investigações encontraram ainda explosivos, que seriam usados em um atentado a bomba contra o senador Sergio Moro (União-PR).

Prossegue Lincoln: “A delação ou colaboração tem que ser voluntária, livre de qualquer coação, obviamente, acompanhada de advogado e homologada judicialmente. É usada há décadas com muito sucesso na Itália, nos casos das máfias, na Europa e nos EUA”. Essa ameaça ao combate ao crime organizado patrocinada por Lira – que diz haver consenso sobre a matéria na Câmara – ocorre no momento em que a infiltração do PCC no poder público atinge níveis alarmantes. Ela ameaça fazer do Brasil um narcoestado.

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Esse é o caso da captura de contratos do transporte público a fim de lavar dinheiro do tráfico de drogas em empresas de ônibus de São Paulo, investigado pelo Gaeco. Esse foi também o caso da Operação Ethos, que desmantelou a rede de advogados – a chamada Sintonia dos Gravatas – que o PCC montou e infiltrou no Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana (Condepe), a fim de patrocinar os interesses da facção no governo paulista. O processo levou à condenação de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola.

O promotor só conseguiu chegar ao resultado porque obteve a delação de um preso. É Lincoln quem conta: “É o caso do Orlando Motta Junior, o Macarrão, testemunha fundamental no processo da Operação Ethos, que levou à condenação de dezenas de advogados, do vice-presidente do Condepe e também à condenação a 30 anos de reclusão do Marcola.” Luiz Carlos dos Santos, o vice do Condepe, recebia R$ 5 mil por mês do PCC para fazer denúncias de violações dos direitos humanos. Pegou 16 anos de cadeia.

Roberto Soriano, o Tiriça, usou advogado para ameaçar 'derreter' a família de Macarrão, que delatou o comando do PCC; aqui, trecho de documento da promotoria Foto: Reprodução / Estadão
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Além dos dois, foram condenadas outras lideranças da facção: Cleber Marcelino Dias dos Santos, o Clebinho, Daniel Vinícius Canônico, o Cego, Paulo Cesar Nascimento Júnior, o Paulinho Neblina, e Marcos Paulo Ferreira Lustosa, o Japonês. Preso havia quase uma década, Macarrão decidiu delatar os companheiros após se ver ameaçado pela cúpula da facção, da qual fazia parte. Em uma intercepção, o chefão Roberto Soriano, o Tiriça, mandou um recado: “Se ele (Macarrão) ficar com esta palhaçada, nós vamos ‘derreter’ a família dele inteirinha”. Era a primeira vez que um integrante da Sintonia Final decidia contar o que sabia.

Com base nas informações do delator, o promotor descobriu que as funções dos advogados haviam deixado de ser exclusivamente jurídicas para funcionar como elo de comunicação das atividades criminosas entre os líderes presos e os que estão em liberdade. Deflagrada em 22 de novembro de 2016, a Operação Ethos levou à prisão 33 advogados, que contribuíram e concorreram direta ou indiretamente “para o projeto de poder e esquema da maior organização criminosa do País”.

Se a proposta defendida por Lira passar, outra operação como a Ethos pode se tornar impossível. “Sem contar que (a proposta) prejudica o réu colaborador, que não pode negociar uma redução na pena, por exemplo, apenas pelo fato de estar preso, enquanto que um réu, no mesmo processo, que estivesse solto poderia fazê-lo”, afirmou Gakiya.

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Policiais e fiscais da Receita Federal mobilizados na Operação Fim da Linha; captura do transporte pública de São Paulo Foto: Receita Federal

Por essa razão, o promotor confessa: “Tenho dúvidas, inclusive, a respeito da constitucionalidade desse projeto”. Atualmente, o Gaeco mantém em andamento e negocia, em sigilo, outros acordos de delação premiada contra a cúpula da facção. Muitos correm o risco de perder a validade se a lei passar, devolvendo bilhões em bens de origem ilícita sequestrados pela Justiça aos chefões de facções e milícias.

Lira parece não saber que, se há dez anos, a facção usava a sintonia dos gravatas, hoje ela passou a contratar algumas das maiores bancas de advocacia do País, muitas das quais atuaram na defesa de réus da Operação Lava Jato. É que o dinheiro do bilionário tráfico de drogas transatlântico não tem cheiro e circula pelos mesmos caminhos da lavagem de capitais de doleiros, de sonegadores de impostos e de políticos corruptos.

Essa é a nova fase do crime organizado do Brasil. Enquanto a Operação Fim da Linha obteve o bloqueio de R$ 684 milhões de bens de empresas de ônibus usadas para lavar o dinheiro do PCC, a Operação Dontraz, da PF, apreendeu drogas avaliadas em R$ 2,5 bilhões em embarcações que a facção e seus sócios da ‘Ndrangheta e da máfia dos Bálcãs usavam para transportar cocaína para a Europa.

O pesqueiro Alcatraz 1 ao ser abordado por uma fragata da Marinha americana perto do arquipélago de Cabo Verde, com 5,4 toneladas de cocaína, durante a Operação Dontraz Foto: POLÍCIA FEDERAL/ MARINHA AMERICANA

Procuradores italianos recentemente reunidos com colegas brasileiros enxergam semelhanças no que está acontecendo aqui com o que foi enfrentado pela Itália nos anos 1980 e 1990, quando a frase il potere logora chi non ce l’ha, aforisma criado pelo diplomata Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, ganhou notoriedade após Giulio Andreotti, sete vezes primeiro-ministro da Itália, utilizá-la em resposta a um jornalista, que indagara: “Onorevole Andreotti, il potere logora? (Sr. Andreotti, o poder desgasta?)

Mais tarde, quando investigações levaram à condenação de Andreotti por ligações com o submundo de Palermo, a frase de Talleyrand, envolta nas relações sombrias entre Máfia e Estado, ganhou novos significados, o que levou Francis Ford Coppola a colocá-la na boca de um dos assassinos a serviço de Michael Corleone, em seu O Poderoso Chefão 3.

Poucos, no entanto, lembram-se, hoje em dia, de como Andreotti concluíra sua resposta sobre o poder: “È meglio non perderlo (É melhor não perdê-lo). Deu no que deu. É diante desse exemplo histórico que, agora, a Câmara está. Lira parece pensar como Andreotti. Não quer perder o poder. Mas a que custo?

“Il potere logora chi non ce l’ha” (O poder desgasta quem não o tem) é um dos aforismos políticos sobre o poder mais famosos na Itália. Arthur Lira é um homem poderoso. Em suas mãos, tem a pauta da Câmara dos Deputados e os bilhões de emendas parlamentares. Pode fazer um governo rir ou chorar. Ele trava uma luta escatológica pela manutenção de sua força quando deixar a presidência da Casa. E precisa de apoios para eleger um sucessor fiel. Dedica-se a desgastar opositores, bem como qualquer um que se coloque em seu caminho. Sabe que a natureza de Brasília é a do “rei morto, rei posto”. Lira quer sobreviver.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em sessão da Câmara na semana passada Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

E, para isso, promete tudo e qualquer coisa aos seus pares, em troca de apoio na eleição que se avizinha. É nesse contexto que o deputado se tornou o novo Negociador-Geral da República, um cargo que estava vago desde que Eduardo Cunha fora expelido do Congresso. Tudo passa por ele, dos planos de saúde aos planos do Centrão. Em um dos últimos lances dessa corrida pelo poder, Lira desengavetou um projeto do PT, feito em 2016 sob medida para Lula, que, agora, muitos enxergam ser uma forma de salvar Jair Bolsonaro: acabar com a delação premiada de réus presos.

Legislações desse tipo, feitas para obstar o combate à corrupção, são conhecidas em todo mundo. Na Itália, durante o governo de Silvio Berlusconi, uma delas, o Decreto Biondi, ficou conhecida como il decreto salva-ladri (salva ladrões). No Brasil, se a proposta defendida por Lira em defesa de políticos enrolados com todo tipo de desvio for adiante, não se vai salvar só a turma da Esplanada, mas as cúpulas do Primeiro Comando da Capital (PCC) e as das máfias italiana e dos Bálcãs, que faturam bilhões com o tráfico transatlântico.

Antes de cada deputado votar sobre mais essa inovação de Lira, o Congresso devia ouvir o que tem a dizer o promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco), de São Paulo. Há quase vinte anos, Lincoln não dá um passo sem a escolta de policiais militares. Era 2005 quando ele recebeu o telefonema de um colega. Estava em uma farmácia. “Vá agora para sua casa”, mandou. Uma interceptação telefônica havia acabado de identificar um plano do PCC para matá-lo. Em 2018, a facção usou drones para sobrevoar sua casa e seguir a mulher do promotor, enquanto ela ia às compras.

O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do núcleo do Gaeco, de Presidente Prudente  Foto: Stephanie Fonseca/ESTADÃO

Após obter dezenas de condenações contra a cúpula da maior organização criminosa da América do Sul, Gakyia se tornou um homem marcado para morrer. O ódio que a liderança do grupo lhe dedica só é comparável ao que a máfia siciliana tinha em relação ao juiz Giovanni Falcone, assassinado em 1992, depois de o chefão Salvatore Riina, ‘U Curtu, fazer explodir os 500 quilos de tritolo, RDX e nitrato de amônia que mandaram pelos ares o magistrado e a sua escolta, em uma autoestrada, em Capaci, na Sicília.

Tudo porque Falcone convencera o mafioso Tommaso Buscetta, don Masino, il boss dei due mondi, então preso no Brasil e condenado pela Justiça italiana, a revelar os segredos de Cosa Nostra. O instituto da colaboração premiada feriu mortalmente a cúpula da máfia, rompendo a lei do silêncio, a omertà, que garantira décadas de impunidade aos criminosos, protegendo suas relações com o mundo político italiano. Falcone mexeu com o poder da máfia. E, para Riina, em bom siciliano, ‘u cummannari è megghiu ri futtiri, ou mandar é melhor do que transar. Sobre o projeto de Lira, disse o promotor Gakiya:

“Acredito que seria um retrocesso sim (na luta contra o crime organizado). Há vários casos envolvendo organizações criminosas em que a delação premiada de colaborador preso foi utilizada como meio de prova. No caso do PCC, é bem comum, inclusive. Aliás, às vezes, é o único meio de obter determinada prova.” Ou seja, Lira quer retirar de homens como Gakiya aquilo que muitas vezes é o único meio de prova para barrar ações do crime organizado, como os planos descobertos pelo promotor.

Imagens encontradas pelo Gaeco com o PCC das residências de Lira e de Pacheco em Brasília. durante a investigação sobre a Sintonia Restrita Foto: Reprodução / Estadão

Talvez Lira tenha esquecido de um desses planos frustrados por Gakyia: a Sintonia Restrita, o grupo de sicários da facção, enviou a Brasília uma equipe que tinha como alvo o presidente da Câmara dos Deputados e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A facção mobilizou uma célula com três de seus integrantes e bancou seus custos – cerca de R$ 44 mil –, como estadia, celulares, aluguéis, seguro, IPTU, mobília, transporte e até compra de eletrodomésticos. As investigações encontraram ainda explosivos, que seriam usados em um atentado a bomba contra o senador Sergio Moro (União-PR).

Prossegue Lincoln: “A delação ou colaboração tem que ser voluntária, livre de qualquer coação, obviamente, acompanhada de advogado e homologada judicialmente. É usada há décadas com muito sucesso na Itália, nos casos das máfias, na Europa e nos EUA”. Essa ameaça ao combate ao crime organizado patrocinada por Lira – que diz haver consenso sobre a matéria na Câmara – ocorre no momento em que a infiltração do PCC no poder público atinge níveis alarmantes. Ela ameaça fazer do Brasil um narcoestado.

Esse é o caso da captura de contratos do transporte público a fim de lavar dinheiro do tráfico de drogas em empresas de ônibus de São Paulo, investigado pelo Gaeco. Esse foi também o caso da Operação Ethos, que desmantelou a rede de advogados – a chamada Sintonia dos Gravatas – que o PCC montou e infiltrou no Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana (Condepe), a fim de patrocinar os interesses da facção no governo paulista. O processo levou à condenação de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola.

O promotor só conseguiu chegar ao resultado porque obteve a delação de um preso. É Lincoln quem conta: “É o caso do Orlando Motta Junior, o Macarrão, testemunha fundamental no processo da Operação Ethos, que levou à condenação de dezenas de advogados, do vice-presidente do Condepe e também à condenação a 30 anos de reclusão do Marcola.” Luiz Carlos dos Santos, o vice do Condepe, recebia R$ 5 mil por mês do PCC para fazer denúncias de violações dos direitos humanos. Pegou 16 anos de cadeia.

Roberto Soriano, o Tiriça, usou advogado para ameaçar 'derreter' a família de Macarrão, que delatou o comando do PCC; aqui, trecho de documento da promotoria Foto: Reprodução / Estadão

Além dos dois, foram condenadas outras lideranças da facção: Cleber Marcelino Dias dos Santos, o Clebinho, Daniel Vinícius Canônico, o Cego, Paulo Cesar Nascimento Júnior, o Paulinho Neblina, e Marcos Paulo Ferreira Lustosa, o Japonês. Preso havia quase uma década, Macarrão decidiu delatar os companheiros após se ver ameaçado pela cúpula da facção, da qual fazia parte. Em uma intercepção, o chefão Roberto Soriano, o Tiriça, mandou um recado: “Se ele (Macarrão) ficar com esta palhaçada, nós vamos ‘derreter’ a família dele inteirinha”. Era a primeira vez que um integrante da Sintonia Final decidia contar o que sabia.

Com base nas informações do delator, o promotor descobriu que as funções dos advogados haviam deixado de ser exclusivamente jurídicas para funcionar como elo de comunicação das atividades criminosas entre os líderes presos e os que estão em liberdade. Deflagrada em 22 de novembro de 2016, a Operação Ethos levou à prisão 33 advogados, que contribuíram e concorreram direta ou indiretamente “para o projeto de poder e esquema da maior organização criminosa do País”.

Se a proposta defendida por Lira passar, outra operação como a Ethos pode se tornar impossível. “Sem contar que (a proposta) prejudica o réu colaborador, que não pode negociar uma redução na pena, por exemplo, apenas pelo fato de estar preso, enquanto que um réu, no mesmo processo, que estivesse solto poderia fazê-lo”, afirmou Gakiya.

Policiais e fiscais da Receita Federal mobilizados na Operação Fim da Linha; captura do transporte pública de São Paulo Foto: Receita Federal

Por essa razão, o promotor confessa: “Tenho dúvidas, inclusive, a respeito da constitucionalidade desse projeto”. Atualmente, o Gaeco mantém em andamento e negocia, em sigilo, outros acordos de delação premiada contra a cúpula da facção. Muitos correm o risco de perder a validade se a lei passar, devolvendo bilhões em bens de origem ilícita sequestrados pela Justiça aos chefões de facções e milícias.

Lira parece não saber que, se há dez anos, a facção usava a sintonia dos gravatas, hoje ela passou a contratar algumas das maiores bancas de advocacia do País, muitas das quais atuaram na defesa de réus da Operação Lava Jato. É que o dinheiro do bilionário tráfico de drogas transatlântico não tem cheiro e circula pelos mesmos caminhos da lavagem de capitais de doleiros, de sonegadores de impostos e de políticos corruptos.

Essa é a nova fase do crime organizado do Brasil. Enquanto a Operação Fim da Linha obteve o bloqueio de R$ 684 milhões de bens de empresas de ônibus usadas para lavar o dinheiro do PCC, a Operação Dontraz, da PF, apreendeu drogas avaliadas em R$ 2,5 bilhões em embarcações que a facção e seus sócios da ‘Ndrangheta e da máfia dos Bálcãs usavam para transportar cocaína para a Europa.

O pesqueiro Alcatraz 1 ao ser abordado por uma fragata da Marinha americana perto do arquipélago de Cabo Verde, com 5,4 toneladas de cocaína, durante a Operação Dontraz Foto: POLÍCIA FEDERAL/ MARINHA AMERICANA

Procuradores italianos recentemente reunidos com colegas brasileiros enxergam semelhanças no que está acontecendo aqui com o que foi enfrentado pela Itália nos anos 1980 e 1990, quando a frase il potere logora chi non ce l’ha, aforisma criado pelo diplomata Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, ganhou notoriedade após Giulio Andreotti, sete vezes primeiro-ministro da Itália, utilizá-la em resposta a um jornalista, que indagara: “Onorevole Andreotti, il potere logora? (Sr. Andreotti, o poder desgasta?)

Mais tarde, quando investigações levaram à condenação de Andreotti por ligações com o submundo de Palermo, a frase de Talleyrand, envolta nas relações sombrias entre Máfia e Estado, ganhou novos significados, o que levou Francis Ford Coppola a colocá-la na boca de um dos assassinos a serviço de Michael Corleone, em seu O Poderoso Chefão 3.

Poucos, no entanto, lembram-se, hoje em dia, de como Andreotti concluíra sua resposta sobre o poder: “È meglio non perderlo (É melhor não perdê-lo). Deu no que deu. É diante desse exemplo histórico que, agora, a Câmara está. Lira parece pensar como Andreotti. Não quer perder o poder. Mas a que custo?

“Il potere logora chi non ce l’ha” (O poder desgasta quem não o tem) é um dos aforismos políticos sobre o poder mais famosos na Itália. Arthur Lira é um homem poderoso. Em suas mãos, tem a pauta da Câmara dos Deputados e os bilhões de emendas parlamentares. Pode fazer um governo rir ou chorar. Ele trava uma luta escatológica pela manutenção de sua força quando deixar a presidência da Casa. E precisa de apoios para eleger um sucessor fiel. Dedica-se a desgastar opositores, bem como qualquer um que se coloque em seu caminho. Sabe que a natureza de Brasília é a do “rei morto, rei posto”. Lira quer sobreviver.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em sessão da Câmara na semana passada Foto: WILTON JUNIOR/Estadão

E, para isso, promete tudo e qualquer coisa aos seus pares, em troca de apoio na eleição que se avizinha. É nesse contexto que o deputado se tornou o novo Negociador-Geral da República, um cargo que estava vago desde que Eduardo Cunha fora expelido do Congresso. Tudo passa por ele, dos planos de saúde aos planos do Centrão. Em um dos últimos lances dessa corrida pelo poder, Lira desengavetou um projeto do PT, feito em 2016 sob medida para Lula, que, agora, muitos enxergam ser uma forma de salvar Jair Bolsonaro: acabar com a delação premiada de réus presos.

Legislações desse tipo, feitas para obstar o combate à corrupção, são conhecidas em todo mundo. Na Itália, durante o governo de Silvio Berlusconi, uma delas, o Decreto Biondi, ficou conhecida como il decreto salva-ladri (salva ladrões). No Brasil, se a proposta defendida por Lira em defesa de políticos enrolados com todo tipo de desvio for adiante, não se vai salvar só a turma da Esplanada, mas as cúpulas do Primeiro Comando da Capital (PCC) e as das máfias italiana e dos Bálcãs, que faturam bilhões com o tráfico transatlântico.

Antes de cada deputado votar sobre mais essa inovação de Lira, o Congresso devia ouvir o que tem a dizer o promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco), de São Paulo. Há quase vinte anos, Lincoln não dá um passo sem a escolta de policiais militares. Era 2005 quando ele recebeu o telefonema de um colega. Estava em uma farmácia. “Vá agora para sua casa”, mandou. Uma interceptação telefônica havia acabado de identificar um plano do PCC para matá-lo. Em 2018, a facção usou drones para sobrevoar sua casa e seguir a mulher do promotor, enquanto ela ia às compras.

O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do núcleo do Gaeco, de Presidente Prudente  Foto: Stephanie Fonseca/ESTADÃO

Após obter dezenas de condenações contra a cúpula da maior organização criminosa da América do Sul, Gakyia se tornou um homem marcado para morrer. O ódio que a liderança do grupo lhe dedica só é comparável ao que a máfia siciliana tinha em relação ao juiz Giovanni Falcone, assassinado em 1992, depois de o chefão Salvatore Riina, ‘U Curtu, fazer explodir os 500 quilos de tritolo, RDX e nitrato de amônia que mandaram pelos ares o magistrado e a sua escolta, em uma autoestrada, em Capaci, na Sicília.

Tudo porque Falcone convencera o mafioso Tommaso Buscetta, don Masino, il boss dei due mondi, então preso no Brasil e condenado pela Justiça italiana, a revelar os segredos de Cosa Nostra. O instituto da colaboração premiada feriu mortalmente a cúpula da máfia, rompendo a lei do silêncio, a omertà, que garantira décadas de impunidade aos criminosos, protegendo suas relações com o mundo político italiano. Falcone mexeu com o poder da máfia. E, para Riina, em bom siciliano, ‘u cummannari è megghiu ri futtiri, ou mandar é melhor do que transar. Sobre o projeto de Lira, disse o promotor Gakiya:

“Acredito que seria um retrocesso sim (na luta contra o crime organizado). Há vários casos envolvendo organizações criminosas em que a delação premiada de colaborador preso foi utilizada como meio de prova. No caso do PCC, é bem comum, inclusive. Aliás, às vezes, é o único meio de obter determinada prova.” Ou seja, Lira quer retirar de homens como Gakiya aquilo que muitas vezes é o único meio de prova para barrar ações do crime organizado, como os planos descobertos pelo promotor.

Imagens encontradas pelo Gaeco com o PCC das residências de Lira e de Pacheco em Brasília. durante a investigação sobre a Sintonia Restrita Foto: Reprodução / Estadão

Talvez Lira tenha esquecido de um desses planos frustrados por Gakyia: a Sintonia Restrita, o grupo de sicários da facção, enviou a Brasília uma equipe que tinha como alvo o presidente da Câmara dos Deputados e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A facção mobilizou uma célula com três de seus integrantes e bancou seus custos – cerca de R$ 44 mil –, como estadia, celulares, aluguéis, seguro, IPTU, mobília, transporte e até compra de eletrodomésticos. As investigações encontraram ainda explosivos, que seriam usados em um atentado a bomba contra o senador Sergio Moro (União-PR).

Prossegue Lincoln: “A delação ou colaboração tem que ser voluntária, livre de qualquer coação, obviamente, acompanhada de advogado e homologada judicialmente. É usada há décadas com muito sucesso na Itália, nos casos das máfias, na Europa e nos EUA”. Essa ameaça ao combate ao crime organizado patrocinada por Lira – que diz haver consenso sobre a matéria na Câmara – ocorre no momento em que a infiltração do PCC no poder público atinge níveis alarmantes. Ela ameaça fazer do Brasil um narcoestado.

Esse é o caso da captura de contratos do transporte público a fim de lavar dinheiro do tráfico de drogas em empresas de ônibus de São Paulo, investigado pelo Gaeco. Esse foi também o caso da Operação Ethos, que desmantelou a rede de advogados – a chamada Sintonia dos Gravatas – que o PCC montou e infiltrou no Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana (Condepe), a fim de patrocinar os interesses da facção no governo paulista. O processo levou à condenação de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola.

O promotor só conseguiu chegar ao resultado porque obteve a delação de um preso. É Lincoln quem conta: “É o caso do Orlando Motta Junior, o Macarrão, testemunha fundamental no processo da Operação Ethos, que levou à condenação de dezenas de advogados, do vice-presidente do Condepe e também à condenação a 30 anos de reclusão do Marcola.” Luiz Carlos dos Santos, o vice do Condepe, recebia R$ 5 mil por mês do PCC para fazer denúncias de violações dos direitos humanos. Pegou 16 anos de cadeia.

Roberto Soriano, o Tiriça, usou advogado para ameaçar 'derreter' a família de Macarrão, que delatou o comando do PCC; aqui, trecho de documento da promotoria Foto: Reprodução / Estadão

Além dos dois, foram condenadas outras lideranças da facção: Cleber Marcelino Dias dos Santos, o Clebinho, Daniel Vinícius Canônico, o Cego, Paulo Cesar Nascimento Júnior, o Paulinho Neblina, e Marcos Paulo Ferreira Lustosa, o Japonês. Preso havia quase uma década, Macarrão decidiu delatar os companheiros após se ver ameaçado pela cúpula da facção, da qual fazia parte. Em uma intercepção, o chefão Roberto Soriano, o Tiriça, mandou um recado: “Se ele (Macarrão) ficar com esta palhaçada, nós vamos ‘derreter’ a família dele inteirinha”. Era a primeira vez que um integrante da Sintonia Final decidia contar o que sabia.

Com base nas informações do delator, o promotor descobriu que as funções dos advogados haviam deixado de ser exclusivamente jurídicas para funcionar como elo de comunicação das atividades criminosas entre os líderes presos e os que estão em liberdade. Deflagrada em 22 de novembro de 2016, a Operação Ethos levou à prisão 33 advogados, que contribuíram e concorreram direta ou indiretamente “para o projeto de poder e esquema da maior organização criminosa do País”.

Se a proposta defendida por Lira passar, outra operação como a Ethos pode se tornar impossível. “Sem contar que (a proposta) prejudica o réu colaborador, que não pode negociar uma redução na pena, por exemplo, apenas pelo fato de estar preso, enquanto que um réu, no mesmo processo, que estivesse solto poderia fazê-lo”, afirmou Gakiya.

Policiais e fiscais da Receita Federal mobilizados na Operação Fim da Linha; captura do transporte pública de São Paulo Foto: Receita Federal

Por essa razão, o promotor confessa: “Tenho dúvidas, inclusive, a respeito da constitucionalidade desse projeto”. Atualmente, o Gaeco mantém em andamento e negocia, em sigilo, outros acordos de delação premiada contra a cúpula da facção. Muitos correm o risco de perder a validade se a lei passar, devolvendo bilhões em bens de origem ilícita sequestrados pela Justiça aos chefões de facções e milícias.

Lira parece não saber que, se há dez anos, a facção usava a sintonia dos gravatas, hoje ela passou a contratar algumas das maiores bancas de advocacia do País, muitas das quais atuaram na defesa de réus da Operação Lava Jato. É que o dinheiro do bilionário tráfico de drogas transatlântico não tem cheiro e circula pelos mesmos caminhos da lavagem de capitais de doleiros, de sonegadores de impostos e de políticos corruptos.

Essa é a nova fase do crime organizado do Brasil. Enquanto a Operação Fim da Linha obteve o bloqueio de R$ 684 milhões de bens de empresas de ônibus usadas para lavar o dinheiro do PCC, a Operação Dontraz, da PF, apreendeu drogas avaliadas em R$ 2,5 bilhões em embarcações que a facção e seus sócios da ‘Ndrangheta e da máfia dos Bálcãs usavam para transportar cocaína para a Europa.

O pesqueiro Alcatraz 1 ao ser abordado por uma fragata da Marinha americana perto do arquipélago de Cabo Verde, com 5,4 toneladas de cocaína, durante a Operação Dontraz Foto: POLÍCIA FEDERAL/ MARINHA AMERICANA

Procuradores italianos recentemente reunidos com colegas brasileiros enxergam semelhanças no que está acontecendo aqui com o que foi enfrentado pela Itália nos anos 1980 e 1990, quando a frase il potere logora chi non ce l’ha, aforisma criado pelo diplomata Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, ganhou notoriedade após Giulio Andreotti, sete vezes primeiro-ministro da Itália, utilizá-la em resposta a um jornalista, que indagara: “Onorevole Andreotti, il potere logora? (Sr. Andreotti, o poder desgasta?)

Mais tarde, quando investigações levaram à condenação de Andreotti por ligações com o submundo de Palermo, a frase de Talleyrand, envolta nas relações sombrias entre Máfia e Estado, ganhou novos significados, o que levou Francis Ford Coppola a colocá-la na boca de um dos assassinos a serviço de Michael Corleone, em seu O Poderoso Chefão 3.

Poucos, no entanto, lembram-se, hoje em dia, de como Andreotti concluíra sua resposta sobre o poder: “È meglio non perderlo (É melhor não perdê-lo). Deu no que deu. É diante desse exemplo histórico que, agora, a Câmara está. Lira parece pensar como Andreotti. Não quer perder o poder. Mas a que custo?

Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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