O Boletim do Exército publicado na última sexta-feira, 1º, trouxe dois dos mais importantes documentos produzidos pelo Estado-Maior da Força desde a crise desencadeada pelos eventos de 8 de janeiro de 2023. Trata-se da Política de Ética Profissional e de Liderança Militar do Exército Brasileiro 2024-2027 e da diretriz estratégica sobre o mesmo tema.
Depois de dois anos tentando fechar as feridas causadas pela polarização, restabelecendo pontes e concluindo investigações e inquéritos, chegou o momento de investir na educação e na consolidação de valores do Exército como antídoto à manipulação de informações, polarização política em um ambiente informacional que deve se tornar ainda mais conturbado quando a campanha eleitoral de 2026 estiver nas ruas e nas redes sociais.
Os generais do Alto Comando não querem mais ouvir falar de acampamentos diante dos quartéis, ofensas a eles e suas famílias nas redes sociais e de ameaças de uns poucos coronéis subscritores de manifestos que visavam dar um bypass no comando da Força em prol de um golpe de Estado. Para conter espertalhões em busca de voto, existe a lei militar, a hierarquia e a disciplina. Em resumo: a legalidade.
Para impedir que “inocentes” se deixem envolver por radicais e pela desinformação, prejudicando até mesmo a coesão da tropa, o general Richard Nunes, chefe do Estado-Maior, fez publicar os dois documentos. Contou com a decisão e apoio do comandante Tomás Ribeiro de Paiva. O objetivo está logo no primeiro parágrafo: “Fortalecer nos integrantes do Exército Brasileiro, em todos os escalões, o entendimento e a aplicação da Ética Profissional e da Liderança Militar”.
Richard espera preparar os integrantes do Exército para o que considera “as complexas e dinâmicas situações que se apresentarão doravante, em um mundo eivado de ações precipitadas, de abordagem superficial, de visão imediatista e contextualizadas em ambiente informacional conturbado”. Ele já publicou artigos sobre o tema e foi um dos responsáveis por regularizar, em 2019, o uso de redes sociais pelas organizações militares.
Conforme o general explica, é preciso “desenvolver o pensamento crítico do militar, com base nos preceitos da Ética Profissional, para adequar-se ao ambiente virtual, visando a dotar o integrante do Exército Brasileiro de maior e melhor capacidade para avaliar, filtrar e lidar com as questões morais que se apresentarão em seu dia a dia, diante do incontrolável fluxo de estímulos que ele recebe”.
Não se trata apenas de uma questão interna dos militares, mas também da necessidade de orientar “a conduta dos militares em ambientes internacionais, interagências, multidisciplinares e no seio da sociedade, com base nos valores institucionais, de modo a reforçar a respeitabilidade do Exército Brasileiro”. Aí está a ideia do primeiro documento. Ele tem sete páginas. Logo em seguida, Nunes publicou outro documento, com 16 páginas com as diretrizes sobre o tema.
Atribuições de cada departamento
Ali fica claro que o Departamento de Educação e Cultura do Exército (Decex) ficará com o principal número de atribuições (16), o que demonstra a natureza da abordagem que o tema deve ter na instituição. Outras áreas do Exército também receberam atribuições: Departamento de Ciência e Tecnologia (10), Comando de Operações Terrestres e os Comandos de Área (5 cada), Departamento-Geral do Pessoal (1), Centro de Comunicação Social do Exército (3) e o Estado-Maior (3).
O segundo documento traz ainda uma descrição do ambiente informacional atual. “As primeiras décadas do século 21 têm se caracterizado por um ambiente informacional precipitado, superficial nas análises, imediatista na busca por resultados e conturbado por sua própria natureza. Esse cenário exige dos profissionais das Forças Armadas uma capacitação técnico-profissional flexível, além de pensamento crítico, sem negligenciar os valores militares fundamentais que sustentam a Instituição.”
O documento segue afirmando que o ambiente virtual trouxe também novas e complexas abordagens para a compreensão da conjuntura sob a qual o soldado deve decidir e agir. “As mídias digitais, as redes sociais e a Inteligência Artificial (IA) exigem o desenvolvimento e a implementação de tecnologias de maneira responsável, garantindo o respeito aos direitos humanos, à privacidade, à justiça e à transparência.”
De acordo com o documento, “à medida que essas tecnologias se tornam cada vez mais presentes em diversos setores, preocupações éticas como viés algorítmico, discriminação e segurança impulsionam as instituições a criar diretrizes e regulamentações”. As soluções encontradas pelo Estado-Maior e as interações decorrentes devem seguir os princípios éticos do Exército Brasileiro.
É aqui que o Exército explica como pretende se defender de uma nova onda de polarização política, como provavelmente o País deve conhecer em 2026, independentemente de uma vitória de Donald Trump nos EUA. Diversos artigos acadêmicos escritos por militares americanos têm abordado os efeitos danosos para suas Forças Armadas do processo de contaminação política invadindo suas casernas. Reforça-se nos EUA a ideia de juramento à Constituição como forma de garantir legitimidade aos chefes militares em oposição aos desejos autoritários personalistas.
No Brasil, o Exército quer reforçar a ideia de legalidade, profissionalismo e seus valores para fugir de novas armadilhas. “Os temas ética profissional e liderança militar são prioritários, pois se apresentam como essenciais para a efetividade e a resiliência da Instituição. Com base nessa orientação, o integrante do Exército deve conhecer profundamente e incorporar a ética profissional e a liderança militar em sua conduta”. Nunes enfatiza o ethos militar que “promove identificação, comunicação e coesão entre seus membros”. E complementa: “fardados ou não”.
Aqui ressurge a força dos exemplos históricos de lideranças como a do patrono da Cavalaria, o general Manoel Luís Osório. Não só pelo seu compromisso ético na Guerra do Paraguai, mas também pelo exemplo profissional. Antes da guerra, acossado pela imprensa liberal, o Barão de Uruguaiana procurou Osório, em 1858, para que assinasse um manifesto militar em defesa de seu governo provincial. Osório recusou.
Ele disse: “Se não acompanho meus amigos nos seus desmandos, também não tenho alma para coadjuvar a empurrá-los na lama.” E concluiu: “Não assinei esse papel, porque o Exército que tivesse o direito de aprovar as qualidades do seu governo o teria também para as reprovar; e eu não desejo ao Exército de 1858 a sorte e crédito do de 1830 e 1831″. Ele se referia à anarquia do início da Regência.
O Estado-Maior diz, agora, em seu documento: “É crucial reafirmar que a ética profissional e a liderança militar refletem os valores coletivos do Exército Brasileiro, construídos ao longo dos anos pelas experiências e exemplos dos antepassados”. O documento afirma que é o exemplo e a competência que consolidam os valores que sustentam a ética profissional na caserna, principalmente, segundo Nunes, “em um contexto de mudanças sociais e comportamentais”.
Ambição pessoal e o desafio das redes sociais
O documento passa então a tratar da personalidade do militar. Ele diz que “de nada adianta a existência de líderes militares possuidores de várias expertises se faltarem valores fundamentais muito bem consolidados em suas personalidades”. E critica a “ambição (que), em sua forma desmedida, dirigida por um comportamento egoísta e vaidoso, por um forte desejo de poder e riqueza, pode conduzir a atitudes antiéticas, prejudiciais ao profissional militar, à Instituição e às outras pessoas”.
E opõe a ela o “desejo de progressão na carreira, alinhado aos valores da caserna”, que deve “ser compreendido como manifestação legítima que direciona o militar em seu itinerário formativo, expressando a fé na missão, o amor à profissão e a busca constante pelo autoaperfeiçoamento”. Só, então, o Estado-Maior passa a definir as estratégias para atingir os objetivos estabelecidos pelo documento, a partir de um estudo multissetorial, envolvendo diagnósticos de “riscos, oportunidades e desafios”.
O documento afirma que o “ambiente digital, com sua velocidade e superficialidade, possui a capacidade de potencializar as limitações da liderança, dificultando a influência e o direcionamento de esforços para alcançar os objetivos institucionais”. Para enfrentar essa adversidade, será cada vez mais necessário ao líder desenvolver competências ao longo da carreira. “O líder militar deve conhecer profundamente o contexto em que atua, cercando-se de assessores zelosos que não sejam meros repetidores de opiniões alheias, amplamente disseminadas nas redes sociais.”
Para o Estado-Maior, é necessário “fortalecer o respeito e a confiança mútua entre os integrantes do Exército, pilares mestres para a coesão da Instituição, com uma comunicação disciplinada, leal e transparente entre superiores, pares e subordinados”. O pensamento crítico serviria para ele se adequar “ao ambiente virtual” e lhe dar “melhor capacidade para avaliar, filtrar e lidar com as questões morais” diante “do incontrolável fluxo de estímulos que ele recebe”.
Pretende-se evitar a contaminação pelo radicalismo das redes sociais, para que casos como o dos coronéis que buscaram emparedar os comandantes para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva não se repitam mais. Trata-se de reafirmar a legitimidade por meio da legalidade. Sem a compreensão do peso que a legalidade tem na história militar da República, não se consegue explicar por que tantas vezes Jair Bolsonaro afirmava que estava agindo “dentro das quatro linhas da Constituição” ou mesmo a trajetória de militares como o marechal Henrique Teixeira Lott e o general Pery Bevilaqua.
Conservadores e anticomunistas, eles estiveram juntos durante a Novembrada de 1955 e a legalidade em 1961. Em 1964, Bevilaqua viu João Goulart do lado da ilegalidade, flertando com a quebra da disciplina e da hierarquia nas Forças Armadas. E se pôs contra. Em 1968, quando o regime publicou o AI-5, novamente viu a legalidade do outro lado. Ministro do Superior Tribunal Militar (STM), acabou cassado. Sem a legalidade, não havia, para ele, legitimidade.
Combate às Fake News
Para aumentar o conhecimento das questões éticas, o Estado-Maior propõe ampliar as ações para divulgar e cultuar os valores militares, a ética profissional e a liderança militar no âmbito do Exército Brasileiro, promovendo estudos, seminários, simpósios e workshops. Essas questões também devem ser tratadas nos itinerários formativos de todas as linhas de carreira, considerando suas abordagens teórica e prática.
O Exército vai ainda buscar “esclarecer ao público interno a importância da preservação da imagem da Instituição frente às informações falsas, confusas, descontextualizadas e superficiais”. Além disso, as organizações militares devem promover “eventos que abordem as consequências administrativas, civis e/ou criminais no caso de infração às normas relacionadas à ética profissional”, bem como “aprimorar e valorizar os canais de comunicação da Força, assegurando um fluxo de informações confiável e oportuno entre os diferentes escalões, mitigando as consequências negativas da disseminação de notícias falsas, que podem comprometer a coesão interna”.
Todos os comandantes também devem “intensificar ações com o intuito de orientar, continuamente, os integrantes da Instituição sobre a ética no mundo digital para o correto uso das redes e mídias sociais, com base nas normas e deveres dos militares”, e ainda “difundir de forma mais ampla e adequada ao público interno as ferramentas para análise sumária de dados, em particular quanto à fidedignidade da fonte e à veracidade do dado”.
Pretende-se ainda inserir no currículos das escolas militares e nas atividades da caserna “temas que ressaltem o conhecimento sobre a ética no mundo digital, incluindo a prevenção de ameaças cibernéticas”. Caberá ao Decex, por exemplo, “fortalecer o estudo da História Militar, em particular no que diz respeito à liderança militar praticada pelas nossas tropas e chefes militares do passado, com esteio no pensamento crítico e na busca por lições aprendidas”.
O departamento deve ainda estimular a realização de estudos de casos atuais, que “propiciem oportunidades de análise dos aspectos da liderança militar e da ética profissional”, e desenvolver o tema “ética no mundo digital” no Sistema de Educação e Cultura do Exército, com o intuito de internalizar valores e preceitos éticos e morais. Por fim, deve difundir a utilização ética das ferramentas que contêm Inteligência Artificial nos estabelecimentos de ensino para que os discentes sejam propagadores do assunto em suas futuras organizações militares.
O Departamento de Ciência e Tecnologia ficará responsável por incentivar as atividades de pesquisa, desenvolvimento, inovação e produção militar de tecnologias de IA, “com especial atenção aos aspectos éticos a ela relacionados, incluindo a constante busca pela redução de vieses discriminatórios, o respeito à privacidade de dados e a transparência dos processos e algoritmos de IA”. Ele também deve gerenciar “sistemas complexos como a IA, norteando a aquisição e o emprego destes sistemas em conformidade com os princípios éticos e os valores morais da Instituição”.
As ações devem incluir ainda os veteranos, divulgando as consequências administrativas e legais — civis e criminais — no caso de infração às normas relacionadas à ética profissional. E afirma: “Os valores e princípios éticos e morais devem constituir a base da liderança militar”. Nem seria preciso mais uma vez lembrar a conclusão de O Soldado e o Estado, de Samuel Huntington: “Sobre os soldados, defensores da ordem, recai uma pesada responsabilidade. Se abjurarem o espírito militar, destroem primeiro a si mesmo e, depois, a Nação.”
O documento do Estado-Maior conclui que “o exercício da liderança militar, em todos os níveis, exige principalmente exemplo e integridade de caráter”. Trata-se de uma lição dolorida para os quartéis, ainda mais quando coronéis e até oficiais generais se veem ameaçados com a perda do posto e patente e com a perspectiva do cárcere em razão dos ataques à sede dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023. E pela conspiração, pelas ofensas e pela incitação ao crime, à indisciplina e à deslealdade, não apenas contra os que se colocaram do lado da legalidade, mas dirigida aos que buscam colar as feridas deixadas por oportunistas e irresponsáveis, que colocaram seus interesses acima da instituição.