As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

PCC montou ‘rachadinha’ no gabinete de vereador ao se infiltrar no transporte público de São Paulo


Zé Pirueiro empregou como assessores dois acusados que devolviam parte dos seus vencimentos à facção; o vereador recolhia dinheiro do crime para financiar campanhas a prefeito e a deputado; a reportagem não conseguiu localizar a defesa dele

Por Marcelo Godoy
Atualização:

Não permitir à história que, precisamente, os contemporâneos dos grandes movimentos que caracterizam a sua época, os conheçam em seus inícios é uma lei inabalável. Essa é a formulação de Stefan Zweig em Incipit Hitler, o 15.º e último capítulo de seu livro de memórias, O mundo que eu vi, concluído em Petrópolis, em 1942. Zweig continuava: “Por isso, não posso verdadeiramente recordar-me de quando, pela primeira vez, ouvi o nome de Adolf Hitler, nome de que há anos, todo dia, quase todo segundo, somos obrigados a lembrar-nos a propósito de qualquer coisa.”

O ex-vereador José Carlos de Souza Nascimento, o Zé Pirueiro, condenado no caso Cooper-Suzan Foto: Reprodução / Estadão

A tragédia monumental de duas guerras e a destruição do mundo que ele testemunhara, a certeza de que todo o passado terminara e tudo o que fora realizado na Europa estava aniquilado, acompanhou Zweig desde o momento em que a guerra ressurgira em 1939. O contraste das trevas e das luzes não demorou a chegar ao Brasil. Milhares que ouviram no rádio a notícia da declaração de guerra da Inglaterra à Alemanha teriam também suas vidas envolvidas pela dimensão avassaladora da história.

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Esta não se alimenta apenas de reis e batalhas, de déspotas e democratas. A história está nas ruas, nos bairros e no cotidiano das vidas comuns, nas cidades. Um dia alguém escreverá a história do crime organizado no Brasil, como Salvatore Lupo fez com a Máfia siciliana. É possível que o pesquisador comece a folhear livros como Cobras e Lagartos, do jornalista Josmar Jozino, ou Máfia, poder e antimáfia, do jurista Wálter Maierovitch. Mas dificilmente se lembrará de quando ouvira pela primeira vez a sigla PCC.

É que até para os que acompanham os fatos ou investigam as ações do crime organizado no País se tornou difícil determinar quando o grupo carcerário se tornou uma gangue e, depois, uma quadrilha ou ainda uma facção até assumir a feição de uma organização criminosa. Uma coisa, no entanto, é certa: quando o PCC passou a se infiltrar no poder público e a lavar dinheiro, ele trilhou definitivamente o caminho das máfias, ameaçando o Estado brasileiro, como reafirmou Maierovitch em entrevista ao repórter Heitor Mazzoco.

Não é fácil perceber quando essas coisas começaram. Um exemplo é a Operação Munditia, deflagrada pelo Ministério Público Estadual na semana passada. Quando ela surpreendeu a ação de empresas de ônibus acusadas de lavar dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC) no transporte público de 12 cidades, ninguém prestou ao nome de Márcio Zeca da Silva. Ele era um dos 13 presos – três dos quais vereadores – em razão de fraudes em contratos que, somados, chegavam a R$ 200 milhões.

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Márcio Zeca da Silva, condenado no caso da Cooper-Suzan Foto: Reprodução / Estadão

Márcio foi condenado em 2023 a 17 anos e 6 meses de cadeia pelo juiz José Eugênio do Amaral Souza Neto, da 2.ª Vara Criminal de Suzano, na Grande São Paulo. Com ele, a promotoria afirmou ter encontrado 200 porções de cocaína em uma Mercedes. Ele atuaria no setor de transportes para o PCC há quase uma década e seria a ligação entre o esquema que levou ao cárcere os vereadores de Ferraz de Vasconcelos, Santa Isabel e Cubatão e o que seria mantido em Suzano, cidade com 300 mil habitantes da Grande São Paulo.

Uma cena revelou o tamanho do problema. Era dia 8 de novembro de 2017, quando um grupo de perueiros clandestinos resolveu fazer um protesto em Suzano. Os manifestantes traziam uma faixa onde se lia: “Prefeito Cumpra o Combinado”. As três letras iniciais de cada palavra estavam destacadas em vermelho, formando a sigla que deixava claro quem estava por trás do protesto: PCC, o Primeiro Comando da Capital.

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A história levou os promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) a iniciar uma investigação que terminou com a condenação de oito acusados, em 2023, a penas de 6 anos a 27 anos de cadeia – entre eles Márcio Zeca da Silva e Daniel Rodrigues da Silva, o Gordão ou Fiat, que exercia a função de “Final do Alto Tietê”, ou seja, era o chefe da facção na região.

Trecho da denúncia do MInistério Público com a imagem da faixa carregada por perueiros clandestinos em Suzano com as iniciais das palavras da faixa facção destacadas em vermelho, formando a sigla PCC Foto: Reprodução / Estadão

O que se passou em Suzano no fim da década passada é uma espécie de laboratório do que se tornaria a captura pela facção de parte do sistema de transporte no Estado, bem como de sua infiltração no serviço público, reproduzindo o clientelismo e outras práticas que contaminam a política tradicional. Até mesmo a “rachadinha”, com a apropriação de parte dos salários de funcionários do gabinete de um dos vereadores da cidade serviu para irrigar os cofres da facção.

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A investigação do Gaeco mostrou que Márcio Zeca da Silva tratava dos interesses da facção em licitações na Prefeitura. Seu irmão, Pedro Zeca da Silva é outro personagem dessa trama. É ele quem diz em uma das interceptações telefônicas: “Primeiro eu vou lá onde tem que ir, ver como que está o vencimento do contrato e montar o quebra cabeça, porque esse cara bateu a nave; vai fazer a licitação esse mês, como lá tem saldo ele não está preocupado”. Foi nas conversas de Márcio que aparece outro personagem dessa história: o então vereador José Carlos de Souza Nascimento, o Zé Pirueiro.

Eleito pelo PTB, ele era, segundo os promotores do Gaeco, o “principal braço político da organização criminosa na região”. O político atuaria “impetuosamente para o fomento dos interesses da facção, valendo-se, inclusive, de seu cargo de vereador”. O Ministério Público não tem dúvidas de que Zé Pirueiro promovia e financiava as atividades do PCC, além de defender os interesses do grupo, “como, por exemplo, quando realizou tratativas para a constituição de um time de futebol”.

Surgia aqui um novo interesse da facção: os investimentos no futebol. Tratava-se do Botafogo de Suzano, que disputava a liga do município. “Como se sabe, a exploração de atividades esportivas é um método muito utilizado por organizações criminosas para a lavagem de capitais”, alertaram os promotores. Zé Pirueiro tinha outro grande trunfo na mão: a liderança que exercia sobre cerca de 150 proprietários de vans que atuavam no transporte público da cidade por meio da Cooper-Suzan, a cooperativa que os reunia.

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Os contatos entre o político e a facção se aprofundaram a ponto de o grupo criminoso ter escolhido parte dos assessores de Zé Pirueiro. Dois casos foram documentados pelos promotores na denúncia. Eles envolviam os funcionários Cleiton Virgílio da Silva e Luis Alexandre Papalia, a fim de que “estes revertessem parte de seus vencimentos ao PCC”.

Dinheiro apreendido durante Operação Munditia, do Gaeco, contra PCC, prefeituras e câmaras Foto: Divulgação via MP

Em uma conversa gravada em 2 de novembro de 2017, Daniel, o Gordão, diz a Márcio Zeca da Silva que “o combinado era Cleiton, chefe de gabinete de ‘Zé Pirueiro’ e funcionário da cooperativa Coper-Suzan, repassar parte de sua remuneração (de R$ 8 mil) para o vereador (para o custeio da campanha) e parte para a organização”. O mesmo teria sido feito depois com Papalia, para que “todo mundo ganhe uma parte”.

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O vereador tentava ainda obter espaço para sua clientela no transporte escolar e na área da saúde do município. Assim foi com a mulher de um dos chefes da facção. Para o Gaeco, o conjunto das provas mostrava que a Cooper-Suzan era usada como fachada por integrantes do PCC para a exploração do tráfico de drogas na cidade, “com a participação, inclusive, de políticos da região”. O dinheiro do crime ajudou, portanto, a financiar campanhas políticas de candidatos a prefeito e a deputado no Alto Tietê.

A denúncia contra o grupo foi feita pelo Gaeco em 2018 e a condenação dos réus saiu em 2023. Até agora, o caso não foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, pois os réus recorreram da decisão, inclusive o vereador, que, condenado a 15 anos de prisão, recebeu o direito de apelar em liberdade. A sequência das investigações com a Operação Munditia mostrou que, se Zé Pirueiro ficou para trás, a facção achou novos políticos que aceitaram dinheiro em troca de favores e do patrocínio dos interesses do PCC nos municípios.

A sucessão desses fatos torna difícil saber hoje o dia em que o PCC surgiu nas ruas, bairros e cidades. Tudo parece ter ficado distante. A presença do crime organizado se mistura ao cotidiano. Um outro mundo começou a se infiltrar no poder local, criando novos desertos e purgatórios a serem atravessados. A sombra da luta contra essa máfia acompanha as notícias nos últimos 30 anos. Zweig escreveu: “Mas toda sombra é, em última análise, filha da luz. E só quem conheceu a claridade e as trevas, a guerra e a paz, a ascensão e a descida, viveu de fato.” Foram as linhas finais de suas memórias.

Não permitir à história que, precisamente, os contemporâneos dos grandes movimentos que caracterizam a sua época, os conheçam em seus inícios é uma lei inabalável. Essa é a formulação de Stefan Zweig em Incipit Hitler, o 15.º e último capítulo de seu livro de memórias, O mundo que eu vi, concluído em Petrópolis, em 1942. Zweig continuava: “Por isso, não posso verdadeiramente recordar-me de quando, pela primeira vez, ouvi o nome de Adolf Hitler, nome de que há anos, todo dia, quase todo segundo, somos obrigados a lembrar-nos a propósito de qualquer coisa.”

O ex-vereador José Carlos de Souza Nascimento, o Zé Pirueiro, condenado no caso Cooper-Suzan Foto: Reprodução / Estadão

A tragédia monumental de duas guerras e a destruição do mundo que ele testemunhara, a certeza de que todo o passado terminara e tudo o que fora realizado na Europa estava aniquilado, acompanhou Zweig desde o momento em que a guerra ressurgira em 1939. O contraste das trevas e das luzes não demorou a chegar ao Brasil. Milhares que ouviram no rádio a notícia da declaração de guerra da Inglaterra à Alemanha teriam também suas vidas envolvidas pela dimensão avassaladora da história.

Esta não se alimenta apenas de reis e batalhas, de déspotas e democratas. A história está nas ruas, nos bairros e no cotidiano das vidas comuns, nas cidades. Um dia alguém escreverá a história do crime organizado no Brasil, como Salvatore Lupo fez com a Máfia siciliana. É possível que o pesquisador comece a folhear livros como Cobras e Lagartos, do jornalista Josmar Jozino, ou Máfia, poder e antimáfia, do jurista Wálter Maierovitch. Mas dificilmente se lembrará de quando ouvira pela primeira vez a sigla PCC.

É que até para os que acompanham os fatos ou investigam as ações do crime organizado no País se tornou difícil determinar quando o grupo carcerário se tornou uma gangue e, depois, uma quadrilha ou ainda uma facção até assumir a feição de uma organização criminosa. Uma coisa, no entanto, é certa: quando o PCC passou a se infiltrar no poder público e a lavar dinheiro, ele trilhou definitivamente o caminho das máfias, ameaçando o Estado brasileiro, como reafirmou Maierovitch em entrevista ao repórter Heitor Mazzoco.

Não é fácil perceber quando essas coisas começaram. Um exemplo é a Operação Munditia, deflagrada pelo Ministério Público Estadual na semana passada. Quando ela surpreendeu a ação de empresas de ônibus acusadas de lavar dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC) no transporte público de 12 cidades, ninguém prestou ao nome de Márcio Zeca da Silva. Ele era um dos 13 presos – três dos quais vereadores – em razão de fraudes em contratos que, somados, chegavam a R$ 200 milhões.

Márcio Zeca da Silva, condenado no caso da Cooper-Suzan Foto: Reprodução / Estadão

Márcio foi condenado em 2023 a 17 anos e 6 meses de cadeia pelo juiz José Eugênio do Amaral Souza Neto, da 2.ª Vara Criminal de Suzano, na Grande São Paulo. Com ele, a promotoria afirmou ter encontrado 200 porções de cocaína em uma Mercedes. Ele atuaria no setor de transportes para o PCC há quase uma década e seria a ligação entre o esquema que levou ao cárcere os vereadores de Ferraz de Vasconcelos, Santa Isabel e Cubatão e o que seria mantido em Suzano, cidade com 300 mil habitantes da Grande São Paulo.

Uma cena revelou o tamanho do problema. Era dia 8 de novembro de 2017, quando um grupo de perueiros clandestinos resolveu fazer um protesto em Suzano. Os manifestantes traziam uma faixa onde se lia: “Prefeito Cumpra o Combinado”. As três letras iniciais de cada palavra estavam destacadas em vermelho, formando a sigla que deixava claro quem estava por trás do protesto: PCC, o Primeiro Comando da Capital.

A história levou os promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) a iniciar uma investigação que terminou com a condenação de oito acusados, em 2023, a penas de 6 anos a 27 anos de cadeia – entre eles Márcio Zeca da Silva e Daniel Rodrigues da Silva, o Gordão ou Fiat, que exercia a função de “Final do Alto Tietê”, ou seja, era o chefe da facção na região.

Trecho da denúncia do MInistério Público com a imagem da faixa carregada por perueiros clandestinos em Suzano com as iniciais das palavras da faixa facção destacadas em vermelho, formando a sigla PCC Foto: Reprodução / Estadão

O que se passou em Suzano no fim da década passada é uma espécie de laboratório do que se tornaria a captura pela facção de parte do sistema de transporte no Estado, bem como de sua infiltração no serviço público, reproduzindo o clientelismo e outras práticas que contaminam a política tradicional. Até mesmo a “rachadinha”, com a apropriação de parte dos salários de funcionários do gabinete de um dos vereadores da cidade serviu para irrigar os cofres da facção.

A investigação do Gaeco mostrou que Márcio Zeca da Silva tratava dos interesses da facção em licitações na Prefeitura. Seu irmão, Pedro Zeca da Silva é outro personagem dessa trama. É ele quem diz em uma das interceptações telefônicas: “Primeiro eu vou lá onde tem que ir, ver como que está o vencimento do contrato e montar o quebra cabeça, porque esse cara bateu a nave; vai fazer a licitação esse mês, como lá tem saldo ele não está preocupado”. Foi nas conversas de Márcio que aparece outro personagem dessa história: o então vereador José Carlos de Souza Nascimento, o Zé Pirueiro.

Eleito pelo PTB, ele era, segundo os promotores do Gaeco, o “principal braço político da organização criminosa na região”. O político atuaria “impetuosamente para o fomento dos interesses da facção, valendo-se, inclusive, de seu cargo de vereador”. O Ministério Público não tem dúvidas de que Zé Pirueiro promovia e financiava as atividades do PCC, além de defender os interesses do grupo, “como, por exemplo, quando realizou tratativas para a constituição de um time de futebol”.

Surgia aqui um novo interesse da facção: os investimentos no futebol. Tratava-se do Botafogo de Suzano, que disputava a liga do município. “Como se sabe, a exploração de atividades esportivas é um método muito utilizado por organizações criminosas para a lavagem de capitais”, alertaram os promotores. Zé Pirueiro tinha outro grande trunfo na mão: a liderança que exercia sobre cerca de 150 proprietários de vans que atuavam no transporte público da cidade por meio da Cooper-Suzan, a cooperativa que os reunia.

Os contatos entre o político e a facção se aprofundaram a ponto de o grupo criminoso ter escolhido parte dos assessores de Zé Pirueiro. Dois casos foram documentados pelos promotores na denúncia. Eles envolviam os funcionários Cleiton Virgílio da Silva e Luis Alexandre Papalia, a fim de que “estes revertessem parte de seus vencimentos ao PCC”.

Dinheiro apreendido durante Operação Munditia, do Gaeco, contra PCC, prefeituras e câmaras Foto: Divulgação via MP

Em uma conversa gravada em 2 de novembro de 2017, Daniel, o Gordão, diz a Márcio Zeca da Silva que “o combinado era Cleiton, chefe de gabinete de ‘Zé Pirueiro’ e funcionário da cooperativa Coper-Suzan, repassar parte de sua remuneração (de R$ 8 mil) para o vereador (para o custeio da campanha) e parte para a organização”. O mesmo teria sido feito depois com Papalia, para que “todo mundo ganhe uma parte”.

O vereador tentava ainda obter espaço para sua clientela no transporte escolar e na área da saúde do município. Assim foi com a mulher de um dos chefes da facção. Para o Gaeco, o conjunto das provas mostrava que a Cooper-Suzan era usada como fachada por integrantes do PCC para a exploração do tráfico de drogas na cidade, “com a participação, inclusive, de políticos da região”. O dinheiro do crime ajudou, portanto, a financiar campanhas políticas de candidatos a prefeito e a deputado no Alto Tietê.

A denúncia contra o grupo foi feita pelo Gaeco em 2018 e a condenação dos réus saiu em 2023. Até agora, o caso não foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, pois os réus recorreram da decisão, inclusive o vereador, que, condenado a 15 anos de prisão, recebeu o direito de apelar em liberdade. A sequência das investigações com a Operação Munditia mostrou que, se Zé Pirueiro ficou para trás, a facção achou novos políticos que aceitaram dinheiro em troca de favores e do patrocínio dos interesses do PCC nos municípios.

A sucessão desses fatos torna difícil saber hoje o dia em que o PCC surgiu nas ruas, bairros e cidades. Tudo parece ter ficado distante. A presença do crime organizado se mistura ao cotidiano. Um outro mundo começou a se infiltrar no poder local, criando novos desertos e purgatórios a serem atravessados. A sombra da luta contra essa máfia acompanha as notícias nos últimos 30 anos. Zweig escreveu: “Mas toda sombra é, em última análise, filha da luz. E só quem conheceu a claridade e as trevas, a guerra e a paz, a ascensão e a descida, viveu de fato.” Foram as linhas finais de suas memórias.

Não permitir à história que, precisamente, os contemporâneos dos grandes movimentos que caracterizam a sua época, os conheçam em seus inícios é uma lei inabalável. Essa é a formulação de Stefan Zweig em Incipit Hitler, o 15.º e último capítulo de seu livro de memórias, O mundo que eu vi, concluído em Petrópolis, em 1942. Zweig continuava: “Por isso, não posso verdadeiramente recordar-me de quando, pela primeira vez, ouvi o nome de Adolf Hitler, nome de que há anos, todo dia, quase todo segundo, somos obrigados a lembrar-nos a propósito de qualquer coisa.”

O ex-vereador José Carlos de Souza Nascimento, o Zé Pirueiro, condenado no caso Cooper-Suzan Foto: Reprodução / Estadão

A tragédia monumental de duas guerras e a destruição do mundo que ele testemunhara, a certeza de que todo o passado terminara e tudo o que fora realizado na Europa estava aniquilado, acompanhou Zweig desde o momento em que a guerra ressurgira em 1939. O contraste das trevas e das luzes não demorou a chegar ao Brasil. Milhares que ouviram no rádio a notícia da declaração de guerra da Inglaterra à Alemanha teriam também suas vidas envolvidas pela dimensão avassaladora da história.

Esta não se alimenta apenas de reis e batalhas, de déspotas e democratas. A história está nas ruas, nos bairros e no cotidiano das vidas comuns, nas cidades. Um dia alguém escreverá a história do crime organizado no Brasil, como Salvatore Lupo fez com a Máfia siciliana. É possível que o pesquisador comece a folhear livros como Cobras e Lagartos, do jornalista Josmar Jozino, ou Máfia, poder e antimáfia, do jurista Wálter Maierovitch. Mas dificilmente se lembrará de quando ouvira pela primeira vez a sigla PCC.

É que até para os que acompanham os fatos ou investigam as ações do crime organizado no País se tornou difícil determinar quando o grupo carcerário se tornou uma gangue e, depois, uma quadrilha ou ainda uma facção até assumir a feição de uma organização criminosa. Uma coisa, no entanto, é certa: quando o PCC passou a se infiltrar no poder público e a lavar dinheiro, ele trilhou definitivamente o caminho das máfias, ameaçando o Estado brasileiro, como reafirmou Maierovitch em entrevista ao repórter Heitor Mazzoco.

Não é fácil perceber quando essas coisas começaram. Um exemplo é a Operação Munditia, deflagrada pelo Ministério Público Estadual na semana passada. Quando ela surpreendeu a ação de empresas de ônibus acusadas de lavar dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC) no transporte público de 12 cidades, ninguém prestou ao nome de Márcio Zeca da Silva. Ele era um dos 13 presos – três dos quais vereadores – em razão de fraudes em contratos que, somados, chegavam a R$ 200 milhões.

Márcio Zeca da Silva, condenado no caso da Cooper-Suzan Foto: Reprodução / Estadão

Márcio foi condenado em 2023 a 17 anos e 6 meses de cadeia pelo juiz José Eugênio do Amaral Souza Neto, da 2.ª Vara Criminal de Suzano, na Grande São Paulo. Com ele, a promotoria afirmou ter encontrado 200 porções de cocaína em uma Mercedes. Ele atuaria no setor de transportes para o PCC há quase uma década e seria a ligação entre o esquema que levou ao cárcere os vereadores de Ferraz de Vasconcelos, Santa Isabel e Cubatão e o que seria mantido em Suzano, cidade com 300 mil habitantes da Grande São Paulo.

Uma cena revelou o tamanho do problema. Era dia 8 de novembro de 2017, quando um grupo de perueiros clandestinos resolveu fazer um protesto em Suzano. Os manifestantes traziam uma faixa onde se lia: “Prefeito Cumpra o Combinado”. As três letras iniciais de cada palavra estavam destacadas em vermelho, formando a sigla que deixava claro quem estava por trás do protesto: PCC, o Primeiro Comando da Capital.

A história levou os promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) a iniciar uma investigação que terminou com a condenação de oito acusados, em 2023, a penas de 6 anos a 27 anos de cadeia – entre eles Márcio Zeca da Silva e Daniel Rodrigues da Silva, o Gordão ou Fiat, que exercia a função de “Final do Alto Tietê”, ou seja, era o chefe da facção na região.

Trecho da denúncia do MInistério Público com a imagem da faixa carregada por perueiros clandestinos em Suzano com as iniciais das palavras da faixa facção destacadas em vermelho, formando a sigla PCC Foto: Reprodução / Estadão

O que se passou em Suzano no fim da década passada é uma espécie de laboratório do que se tornaria a captura pela facção de parte do sistema de transporte no Estado, bem como de sua infiltração no serviço público, reproduzindo o clientelismo e outras práticas que contaminam a política tradicional. Até mesmo a “rachadinha”, com a apropriação de parte dos salários de funcionários do gabinete de um dos vereadores da cidade serviu para irrigar os cofres da facção.

A investigação do Gaeco mostrou que Márcio Zeca da Silva tratava dos interesses da facção em licitações na Prefeitura. Seu irmão, Pedro Zeca da Silva é outro personagem dessa trama. É ele quem diz em uma das interceptações telefônicas: “Primeiro eu vou lá onde tem que ir, ver como que está o vencimento do contrato e montar o quebra cabeça, porque esse cara bateu a nave; vai fazer a licitação esse mês, como lá tem saldo ele não está preocupado”. Foi nas conversas de Márcio que aparece outro personagem dessa história: o então vereador José Carlos de Souza Nascimento, o Zé Pirueiro.

Eleito pelo PTB, ele era, segundo os promotores do Gaeco, o “principal braço político da organização criminosa na região”. O político atuaria “impetuosamente para o fomento dos interesses da facção, valendo-se, inclusive, de seu cargo de vereador”. O Ministério Público não tem dúvidas de que Zé Pirueiro promovia e financiava as atividades do PCC, além de defender os interesses do grupo, “como, por exemplo, quando realizou tratativas para a constituição de um time de futebol”.

Surgia aqui um novo interesse da facção: os investimentos no futebol. Tratava-se do Botafogo de Suzano, que disputava a liga do município. “Como se sabe, a exploração de atividades esportivas é um método muito utilizado por organizações criminosas para a lavagem de capitais”, alertaram os promotores. Zé Pirueiro tinha outro grande trunfo na mão: a liderança que exercia sobre cerca de 150 proprietários de vans que atuavam no transporte público da cidade por meio da Cooper-Suzan, a cooperativa que os reunia.

Os contatos entre o político e a facção se aprofundaram a ponto de o grupo criminoso ter escolhido parte dos assessores de Zé Pirueiro. Dois casos foram documentados pelos promotores na denúncia. Eles envolviam os funcionários Cleiton Virgílio da Silva e Luis Alexandre Papalia, a fim de que “estes revertessem parte de seus vencimentos ao PCC”.

Dinheiro apreendido durante Operação Munditia, do Gaeco, contra PCC, prefeituras e câmaras Foto: Divulgação via MP

Em uma conversa gravada em 2 de novembro de 2017, Daniel, o Gordão, diz a Márcio Zeca da Silva que “o combinado era Cleiton, chefe de gabinete de ‘Zé Pirueiro’ e funcionário da cooperativa Coper-Suzan, repassar parte de sua remuneração (de R$ 8 mil) para o vereador (para o custeio da campanha) e parte para a organização”. O mesmo teria sido feito depois com Papalia, para que “todo mundo ganhe uma parte”.

O vereador tentava ainda obter espaço para sua clientela no transporte escolar e na área da saúde do município. Assim foi com a mulher de um dos chefes da facção. Para o Gaeco, o conjunto das provas mostrava que a Cooper-Suzan era usada como fachada por integrantes do PCC para a exploração do tráfico de drogas na cidade, “com a participação, inclusive, de políticos da região”. O dinheiro do crime ajudou, portanto, a financiar campanhas políticas de candidatos a prefeito e a deputado no Alto Tietê.

A denúncia contra o grupo foi feita pelo Gaeco em 2018 e a condenação dos réus saiu em 2023. Até agora, o caso não foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, pois os réus recorreram da decisão, inclusive o vereador, que, condenado a 15 anos de prisão, recebeu o direito de apelar em liberdade. A sequência das investigações com a Operação Munditia mostrou que, se Zé Pirueiro ficou para trás, a facção achou novos políticos que aceitaram dinheiro em troca de favores e do patrocínio dos interesses do PCC nos municípios.

A sucessão desses fatos torna difícil saber hoje o dia em que o PCC surgiu nas ruas, bairros e cidades. Tudo parece ter ficado distante. A presença do crime organizado se mistura ao cotidiano. Um outro mundo começou a se infiltrar no poder local, criando novos desertos e purgatórios a serem atravessados. A sombra da luta contra essa máfia acompanha as notícias nos últimos 30 anos. Zweig escreveu: “Mas toda sombra é, em última análise, filha da luz. E só quem conheceu a claridade e as trevas, a guerra e a paz, a ascensão e a descida, viveu de fato.” Foram as linhas finais de suas memórias.

Não permitir à história que, precisamente, os contemporâneos dos grandes movimentos que caracterizam a sua época, os conheçam em seus inícios é uma lei inabalável. Essa é a formulação de Stefan Zweig em Incipit Hitler, o 15.º e último capítulo de seu livro de memórias, O mundo que eu vi, concluído em Petrópolis, em 1942. Zweig continuava: “Por isso, não posso verdadeiramente recordar-me de quando, pela primeira vez, ouvi o nome de Adolf Hitler, nome de que há anos, todo dia, quase todo segundo, somos obrigados a lembrar-nos a propósito de qualquer coisa.”

O ex-vereador José Carlos de Souza Nascimento, o Zé Pirueiro, condenado no caso Cooper-Suzan Foto: Reprodução / Estadão

A tragédia monumental de duas guerras e a destruição do mundo que ele testemunhara, a certeza de que todo o passado terminara e tudo o que fora realizado na Europa estava aniquilado, acompanhou Zweig desde o momento em que a guerra ressurgira em 1939. O contraste das trevas e das luzes não demorou a chegar ao Brasil. Milhares que ouviram no rádio a notícia da declaração de guerra da Inglaterra à Alemanha teriam também suas vidas envolvidas pela dimensão avassaladora da história.

Esta não se alimenta apenas de reis e batalhas, de déspotas e democratas. A história está nas ruas, nos bairros e no cotidiano das vidas comuns, nas cidades. Um dia alguém escreverá a história do crime organizado no Brasil, como Salvatore Lupo fez com a Máfia siciliana. É possível que o pesquisador comece a folhear livros como Cobras e Lagartos, do jornalista Josmar Jozino, ou Máfia, poder e antimáfia, do jurista Wálter Maierovitch. Mas dificilmente se lembrará de quando ouvira pela primeira vez a sigla PCC.

É que até para os que acompanham os fatos ou investigam as ações do crime organizado no País se tornou difícil determinar quando o grupo carcerário se tornou uma gangue e, depois, uma quadrilha ou ainda uma facção até assumir a feição de uma organização criminosa. Uma coisa, no entanto, é certa: quando o PCC passou a se infiltrar no poder público e a lavar dinheiro, ele trilhou definitivamente o caminho das máfias, ameaçando o Estado brasileiro, como reafirmou Maierovitch em entrevista ao repórter Heitor Mazzoco.

Não é fácil perceber quando essas coisas começaram. Um exemplo é a Operação Munditia, deflagrada pelo Ministério Público Estadual na semana passada. Quando ela surpreendeu a ação de empresas de ônibus acusadas de lavar dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC) no transporte público de 12 cidades, ninguém prestou ao nome de Márcio Zeca da Silva. Ele era um dos 13 presos – três dos quais vereadores – em razão de fraudes em contratos que, somados, chegavam a R$ 200 milhões.

Márcio Zeca da Silva, condenado no caso da Cooper-Suzan Foto: Reprodução / Estadão

Márcio foi condenado em 2023 a 17 anos e 6 meses de cadeia pelo juiz José Eugênio do Amaral Souza Neto, da 2.ª Vara Criminal de Suzano, na Grande São Paulo. Com ele, a promotoria afirmou ter encontrado 200 porções de cocaína em uma Mercedes. Ele atuaria no setor de transportes para o PCC há quase uma década e seria a ligação entre o esquema que levou ao cárcere os vereadores de Ferraz de Vasconcelos, Santa Isabel e Cubatão e o que seria mantido em Suzano, cidade com 300 mil habitantes da Grande São Paulo.

Uma cena revelou o tamanho do problema. Era dia 8 de novembro de 2017, quando um grupo de perueiros clandestinos resolveu fazer um protesto em Suzano. Os manifestantes traziam uma faixa onde se lia: “Prefeito Cumpra o Combinado”. As três letras iniciais de cada palavra estavam destacadas em vermelho, formando a sigla que deixava claro quem estava por trás do protesto: PCC, o Primeiro Comando da Capital.

A história levou os promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) a iniciar uma investigação que terminou com a condenação de oito acusados, em 2023, a penas de 6 anos a 27 anos de cadeia – entre eles Márcio Zeca da Silva e Daniel Rodrigues da Silva, o Gordão ou Fiat, que exercia a função de “Final do Alto Tietê”, ou seja, era o chefe da facção na região.

Trecho da denúncia do MInistério Público com a imagem da faixa carregada por perueiros clandestinos em Suzano com as iniciais das palavras da faixa facção destacadas em vermelho, formando a sigla PCC Foto: Reprodução / Estadão

O que se passou em Suzano no fim da década passada é uma espécie de laboratório do que se tornaria a captura pela facção de parte do sistema de transporte no Estado, bem como de sua infiltração no serviço público, reproduzindo o clientelismo e outras práticas que contaminam a política tradicional. Até mesmo a “rachadinha”, com a apropriação de parte dos salários de funcionários do gabinete de um dos vereadores da cidade serviu para irrigar os cofres da facção.

A investigação do Gaeco mostrou que Márcio Zeca da Silva tratava dos interesses da facção em licitações na Prefeitura. Seu irmão, Pedro Zeca da Silva é outro personagem dessa trama. É ele quem diz em uma das interceptações telefônicas: “Primeiro eu vou lá onde tem que ir, ver como que está o vencimento do contrato e montar o quebra cabeça, porque esse cara bateu a nave; vai fazer a licitação esse mês, como lá tem saldo ele não está preocupado”. Foi nas conversas de Márcio que aparece outro personagem dessa história: o então vereador José Carlos de Souza Nascimento, o Zé Pirueiro.

Eleito pelo PTB, ele era, segundo os promotores do Gaeco, o “principal braço político da organização criminosa na região”. O político atuaria “impetuosamente para o fomento dos interesses da facção, valendo-se, inclusive, de seu cargo de vereador”. O Ministério Público não tem dúvidas de que Zé Pirueiro promovia e financiava as atividades do PCC, além de defender os interesses do grupo, “como, por exemplo, quando realizou tratativas para a constituição de um time de futebol”.

Surgia aqui um novo interesse da facção: os investimentos no futebol. Tratava-se do Botafogo de Suzano, que disputava a liga do município. “Como se sabe, a exploração de atividades esportivas é um método muito utilizado por organizações criminosas para a lavagem de capitais”, alertaram os promotores. Zé Pirueiro tinha outro grande trunfo na mão: a liderança que exercia sobre cerca de 150 proprietários de vans que atuavam no transporte público da cidade por meio da Cooper-Suzan, a cooperativa que os reunia.

Os contatos entre o político e a facção se aprofundaram a ponto de o grupo criminoso ter escolhido parte dos assessores de Zé Pirueiro. Dois casos foram documentados pelos promotores na denúncia. Eles envolviam os funcionários Cleiton Virgílio da Silva e Luis Alexandre Papalia, a fim de que “estes revertessem parte de seus vencimentos ao PCC”.

Dinheiro apreendido durante Operação Munditia, do Gaeco, contra PCC, prefeituras e câmaras Foto: Divulgação via MP

Em uma conversa gravada em 2 de novembro de 2017, Daniel, o Gordão, diz a Márcio Zeca da Silva que “o combinado era Cleiton, chefe de gabinete de ‘Zé Pirueiro’ e funcionário da cooperativa Coper-Suzan, repassar parte de sua remuneração (de R$ 8 mil) para o vereador (para o custeio da campanha) e parte para a organização”. O mesmo teria sido feito depois com Papalia, para que “todo mundo ganhe uma parte”.

O vereador tentava ainda obter espaço para sua clientela no transporte escolar e na área da saúde do município. Assim foi com a mulher de um dos chefes da facção. Para o Gaeco, o conjunto das provas mostrava que a Cooper-Suzan era usada como fachada por integrantes do PCC para a exploração do tráfico de drogas na cidade, “com a participação, inclusive, de políticos da região”. O dinheiro do crime ajudou, portanto, a financiar campanhas políticas de candidatos a prefeito e a deputado no Alto Tietê.

A denúncia contra o grupo foi feita pelo Gaeco em 2018 e a condenação dos réus saiu em 2023. Até agora, o caso não foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, pois os réus recorreram da decisão, inclusive o vereador, que, condenado a 15 anos de prisão, recebeu o direito de apelar em liberdade. A sequência das investigações com a Operação Munditia mostrou que, se Zé Pirueiro ficou para trás, a facção achou novos políticos que aceitaram dinheiro em troca de favores e do patrocínio dos interesses do PCC nos municípios.

A sucessão desses fatos torna difícil saber hoje o dia em que o PCC surgiu nas ruas, bairros e cidades. Tudo parece ter ficado distante. A presença do crime organizado se mistura ao cotidiano. Um outro mundo começou a se infiltrar no poder local, criando novos desertos e purgatórios a serem atravessados. A sombra da luta contra essa máfia acompanha as notícias nos últimos 30 anos. Zweig escreveu: “Mas toda sombra é, em última análise, filha da luz. E só quem conheceu a claridade e as trevas, a guerra e a paz, a ascensão e a descida, viveu de fato.” Foram as linhas finais de suas memórias.

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