Uma semana antes de ir à cúpula do G-7 e enfrentar a ironia do colega ucraniano Volodmir Zelenski sobre o desencontro entre os dois, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi lançado em mais um conflito que envolve a Ucrânia. Era tarde de 15 de maio, uma segunda-feira, quando o assessor especial da Presidência, Celso Amorim, chegou ao Palácio do Planalto. Trazia consigo um artigo do professor Manuel Domingos com o título: Quo vadis, Lula?. A frase em latim lembra o evangelho apócrifo de Pedro, por meio do qual o professor chamava a atenção do presidente para que cumprisse sua tarefa diante de militares. Dizia o professor:
“Lula empenha-se pela paz em um mundo crispado. Exorta beligerantes e atores decisivos às negociações para finalizar a guerra. Projeta seu nome e resgata a diplomacia brasileira. O que pretende Lula quando permite uma demonstração de alinhamento do Exército brasileiro aos Estados Unidos e a seus fiéis escudeiros no teatro ucraniano?”
O motivo da queixa do professor era o 1.º Seminário Internacional de Doutrina Militar Terrestre do Exército Brasileiro, evento preparado pelo Comando de Operações Terrestres (Coter), para o qual foram convidados representantes dos EUA, da Alemanha, do Reino Unido, da França, da Espanha, da Finlândia, da Itália, da Holanda, de Portugal, da Suécia, da Índia, da África do Sul, do Egito, de Angola, do Japão, da Coreia do Sul, da Argentina, do Chile, entre outros. Há, portanto, países da Otan, dos Brics, do Mercosul, de língua portuguesa, árabes etc. E duas ausências: Rússia e China.
Em sua apresentação do evento, o general Theophilo Gaspar de Oliveira, do Coter, afirma que serão discutidos “conceitos e linhas de esforços para a superação das ameaças que vêm se apresentando no ambiente operacional, tanto dentro quanto fora do campo de batalha”. Theophilo é considerado pelos petistas como o mais bolsonarista dos generais do Alto-Comando – seu irmão, o também general Guilherme Theophilo foi candidato do PSDB ao governo do Ceará, em 2018 e, depois, secretário nacional de Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro, durante a gestão de Sérgio Moro na Justiça.
Para os petistas, a pauta do seminário “explicita o comprometimento político dos convidados: trata-se do conceito desenvolvido pelo Exército estadunidense de ‘operações multidomínio’, iniciativas desenvolvidas transversalmente em terra, no mar, no ar, no espaço e campo cibernético”. “Tal conceito vem sendo disseminado desde que os Estados Unidos definiram a China e a Rússia como ameaças ao seu poderio”, afirmou o professor Domingos.
Lula ouviu surpreso a queixa de Amorim. Não era a primeira. Naquela tarde, logo depois dele, o presidente teve agenda com o chanceler Mauro Vieira. Existe uma disputa entre o Itamaraty, o assessor especial da Presidência e o PT de um lado e o ministério da Defesa e os chefes militares do outro. Ela vai além das desconfianças já conhecidas antes do 8 de janeiro. A ideia de que os militares teriam uma política externa própria, em conflito com aquela que a diplomacia do governo do PT pretende exercer, é recorrente. Acusam a Defesa de alinhamento com os EUA e a Otan em detrimento da neutralidade pretendida por Amorim.
O assessor do presidente estava na Ucrânia no dia 9 de maio quando tomou conhecimento de que a Defesa havia recebido em 27 de abril uma nova solicitação de Kiev para a venda de até 450 unidades do blindado Guarani, na versão ambulância, produzido pela Iveco, em Minas. O veículo tem motor argentino e suspensão alemã e é parte do projeto de reequipamento do Exército brasileiro. O adido militar ucraniano, coronel Volodymyr Savchenko, afirmou em documento enviado ao ministro José Múcio Monteiro (Defesa), que os blindados seriam pintados nas cores do serviço de emergência e resgate ucraniano para transportar feridos e civis.
Amorim desconhecia o pedido – em 2022, outra solicitação havia sido feita, mas de blindados com a configuração para combate. A Defesa informou que recebeu a consulta. O tema estava sendo analisado. O desencontro dentro do governo era evidente. Para petistas, a venda de blindados, ainda que na versão ambulância, implodiria a política de neutralidade. Militares ouvidos pela coluna consideram muito importante para a indústria nacional de defesa a venda para a Ucrânia, pois a versão ambulância está prevista no programa Guarani e nada impediria que ela também fosse negociada com a Rússia.
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Além disso, o negócio faria o blindado ser testado “no teatro de operações”, aumentando assim a possibilidade de vendas futuras, criando empregos no Brasil e na Argentina. Após o fim da guerra na Ucrânia, uma série de países vai precisar repor seus estoques e os produtores que tiverem equipamentos testados e com eficácia comprovada estarão em vantagem. Diante da resistência do Itamaraty ao negócio, um oficial do Exército chegou a questionar se a nossa diplomacia representaria os interesses do Brasil ou os da Rússia.
As resistências ao negócio – no contexto de uma indústria de defesa cambaleante, que tem hoje a Avibrás em recuperação judicial – somaram-se às críticas ao seminário. Os militares foram surpreendidos pela atenção dada ao evento no Coter. A palavra “intriga” e “atraso” foram usadas para questionar a posição dos petistas. Compararam o caso à decisão do governo Jair Bolsonaro de retirar do ar o plano de combate do Exército à covid-19, em 2020, por achar que ele contrariava a ideia da “imunidade de rebanho”.
Dois dias após as queixas para Lula, na reunião do dia 17 da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara, o deputado Carlos Zarattini (PT-SP) expôs a posição dos petistas: “Precisamos organizar uma estratégia nacional de defesa ancorada na maioria da opinião do povo brasileiro. Tem também de aproximar essa estratégia da nossa diplomacia. A estratégia diplomática, por exemplo, no conflito da Rússia com a Ucrânia tem mantido uma posição de neutralidade, mas, muitas vezes, as nossas forças militares estão interagindo com um lado desse conflito, apoiado pela Otan. Precisamos abrir essa discussão e levar a uma posição de neutralidade.”
O alvo do deputado era o mesmo de Amorim e do Itamaraty. Logo depois dele, foi a vez de seu colega Arlindo Chinaglia (PT-SP) retomar o ataque aos EUA, criticando a “participação do Brasil no Comando Sul, com os Estados Unidos de fato no comando”. Isso tudo diante do ministro da Defesa e dos comandantes das Forças: Marcos Olsen (Marinha), Tomás Paiva (Exército) e Marcelo Damasceno (Força Aérea). Poucos ali entenderam as razões dos recados dos petistas. Ou sabiam que as queixas chegaram ao presidente.
Nos anos 1940, o general Góes Monteiro dizia que as Forças Armadas eram o instrumento da política externa de um Estado. Com a condição de que houvesse uma política externa. O cientista político Hans Morgenthau afirmava: “As políticas doméstica e internacional nada mais são do que duas manifestações diferentes do mesmo fenômeno: a luta pelo poder”. Desde então, continua indispensável aos Estados ter uma ideia clara de qual seja a sua estratégia. Esta deve levar em conta seus interesses reais nas relações internacionais e ter em mente a probabilidade do uso da força para garanti-los.
É nesse sentido que se deve orientar a doutrina de emprego e a organização das Forças Armadas. A questão seria saber o quanto um simples seminário para o intercâmbio cultural afeta ou provoca danos à política externa? Seria procurar chifre na cabeça de cavalo ou o encontro seria um símbolo de descompasso entre a Defesa e o Itamaraty? Ou pior, de uma disputa entre quem deve guiar a política externa e quem deve ser o meio pelo qual o Estado se serve para fazer valer os seus interesses?
Nenhum dos envolvidos nessa discussão acha que o intercâmbio para o conhecimento de doutrinas militares deve ser proibido. Um militar que vai à China aprender guerra assimétrica não se torna comunista assim como não será um agente ianque por estudar a doutrina do multidomínio. Mesmo a questão dos blindados deve ser decidida levando-se em conta a política nacional de exportação de materiais de emprego militar e a necessária revitalização da base industrial de defesa. Nos governos petistas anteriores, o Brasil negociou ou vendeu armas para Colômbia, Nigéria, Iraque, Burkina Fasso, Paquistão e outros países que viviam conflitos.
A discussão está longe de acabar. Um governo em que os atores têm agendas próprias estará sempre aberto a conflitos internos, ainda mais quando a coordenação entre as diferentes áreas deixa de ser feita. As velhas desconfianças da esquerda em relação aos militares foram renovadas pelo dia 8 de janeiro. Se elas traziam em seu bojo a necessária afirmação do controle civil objetivo sobre o poder militar, também pareciam se deixar contaminar por questões ideológicas que ajudavam mais a crispar o País do que a pacificá-lo. É nesse contexto que deve ser vista mais essa disputa no governo petista, sem esquecer que compreender as ideias políticas serve ao diálogo possível e não à afirmação de verdades perenes. Até quando se luta pelo poder.