“Eles querem dinheiro.” Era 16 de novembro de 2023, quando o MC Brisola escreveu para seu empresário, Vitor Hugo dos Santos. Três meses depois, foi a vez de Santos escrever para outro artista por ele assessorado: MC Ryan: “Então, eles queriam 1 milhão e meio, já baixamos para 800, depois foi para 500 e agora eu falei para eles que vão mandar um café lá para eles 50 mil.” O café pago no dia 28 de fevereiro de 2024 tinha um destino: policiais corruptos de São Paulo.
As conversas de Santos foram localizadas em seu celular, apreendido pela Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (FICCO), de São Paulo, da Polícia Federal (PF). Trata-se de um desdobramento da Operação Latus Actio, que apura a ligação de artistas e empresários do mundo do funk com a lavagem de dinheiro de integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), sonegação de impostos e loterias ilegais milionárias e ocultação de patrimônio milionários em carros de luxo, fazendas, adegas e barras de ouro.
A coluna procurou os MCs Ryan e Brisola por meio da produtora GR6, mas não obteve resposta. “A produtora lamenta os relatos de que artistas de seu cast foram no passado vítimas de achaque policial e torce para que os fatos sejam rapidamente esclarecidos, para que a indústria do funk que atua dentro da lei possa seguir se modernizando e gerando oportunidades nas comunidades periféricas do país”. A defesa de Santos tomou conhecimento dos achaques e diz que seu cliente é inocente das suspeitas contra ele.
Eram 14h33 de 28 de fevereiro de 2024 quando Santos iniciou uma longa conversa com MC Ryan. Famoso na cena do funk na cidade de São Paulo, Ryan é dono de um dos principais pontos de encontro desse gênero musical, o Bar do Bololô, no Tatuapé, na zona leste. Ali jovens podem fumar seu narguilé e os MCs estacionam Porsches, Ferraris e Lamborghinis. Sua conta no Instagram tem 14 milhões de seguidores onde ostenta a amizade com Neymar e cantor Gusttavo Lima, além de suas mulheres, seus carros e seu avião.
Ryan faria parte de um grupo de MCs e empresários ligados à maior produtora de funk do País – a GR6 – que encontrou uma forma de ampliar ainda mais os ganhos milionários com shows, bares, espetáculos e venda de músicas pela internet: a criação de bets, rifas e promoções na internet. E assim, além de fãs e seguidores, eles atraíram outro tipo de público: policiais corruptos, ávidos pelo dinheiro angariado, segundo as provas colhidas pela equipe do FICCO, do delegado Alexandre Custódio Neto, com as loterias ilegais.
Na conversa com Ryan, Santos conta que os policiais foram ao seu escritório e almoçou com eles. “Sem advogado, sem nada, desenrolei com eles (...) porque eles querem é mais dinheiro e aquela advogada lá tinha falado que tinha dinheiro, mas eles já entenderam que não vai ganhar esse dinheiro todo não... O máximo que vai morrer é uns 100 mil. Aí nós vamos ter de pagar esses caras e acabou.”
O MC então alerta o empresário que havia policiais em frente de sua casa, naquele momento. Ele temia que fosse outro achaque, de outros policiais. “F... que tá aqui na porta da minha casa for outra delegacia. Aí é f... Já querendo dinheiro também. Aí é f..., mano”. O artista parecia virar alvo constante de corruptos. No dia seguinte, Santos manda novo recado ao MC. “Mano, fala comigo. Para ‘nóis’ não ficar com esse bagulho na cabeça, eu mandei lá uns cem mil, pra gente finalizar isso. Dos caras da delegacia do centro da cidade.”
Ryan responde ao empresário pedindo dinheiro “para abater na rifa aqui” e relata que policiais passaram em sua casa com a desculpa de que procuravam um carro roubado. “Eu acho que já já nós ‘vai’ ter de pagar os ‘policias’ da minha delegacia também. Os caras passaram lá em casa, meteram o ‘migué’ aqui tinha carro roubado lá, mas os caras querem me trombar, eu tenho certeza disso.”
O artista então informa ao empresário a solução para a sucessão de achaques: “A gente tem de estar preparado. Vamos deixar algum gravata já na nossa. Ligeiro, tá ligado? Porque ‘baguio’ doido.” Gravata é como são chamados os advogados. O setor jurídico do PCC, por exemplo, é conhecido como Sintonia dos Gravatas. Depois de tratar dos achaques, Ryan começa a tratar com santos dos “negócios”.
“Vou pagar os 135 da moto pra você. E vou mandar mais 700 da rifa, ou seja, você vai receber 834 da rifa. (...) Esse 800 eu vou tirar para mandar pra você. E os 3 milhões eu vou comprar um sítio, tá ligado? Aí na próxima rifa eu vejo mais um pouquinho o seu lado, entendeu? Tá suave pra você assim, negão? Se falar que é isso mesmo, já mando o pix aí, os bagulhos. Foi 3,8 milhões pra mim e 3,8 milhões pro Buseira (Bruno Alexssander Souza Silva, um influencer com 11,8 milhões de seguidores no Instagram e sócio de Ryan).”
‘Polícia, eu pago 7¨%’
O MC então começa a listar os gastos com o esquema. Foram R$ 100 mil com publicações no Instagram. O bilhete premiado ganhou R$ 65 mil. Gastou ainda R$ 2,5 milhões em um carro e R$ 913 mil com motocicletas e R$ 1,7 milhão em uma casa. A moto para Ryan foi de R$ 135 mil (que ele enviou o dinheiro para Santos) e 5% ou R$ 695 mil com o site e o suporte do meio de pagamento. Ryan anotou: " Polícia eu pago 7%, porém eu fechei 150 mil”
Por fim, Ryan escreveu que a rifa arrecadou R$ 13,.9 milhões. O total de gastos foi de 6,26 milhões. Dividido R$ 3.817.900,00. Parte do Ryan R$ 6.452.900,00″ E o próprio MC explicou sua contabilidade: O carro não é meu, né, mano, era do mano da casa e nós compramos dele, tá ligado? Ou seja, foi o carro, a casa do Buseira, as motos, o bilhete premiado, deu ao todo aí 6.280.000 de gastos. Aí pra dividir pra cada um , 3 milhões e 800, que foi o lucro. Vai mandar pra mim, pra minha parte, contando com o meu carro, seis milhões e pouco.” Ou seja, a rifa dava ao artista dinheiro vivo e bens.
O dinheiro que Ryan disse que devia a Santos, seguindo a PF, foi encaminhado por Buseira por meio da empresa Buseira Digital, que conta como proprietária de cinco Porsches 911 e 49 motocicletas. Buseira, segundo a PF, já foi alvo de inquéritos da Polícia Civil de São Paulo e da PF em razão da exploração ilegal de jogos de azar e pelo não pagamento dos prêmios oferecidos. Os policiais da FICCO identificaram o sorteio promovido por Ryan e Buseira em fevereiro de 2024 do carro, da casa e da moto.
A entrega dos prêmios aconteceu no dia 8 de março. O ganhador da rifa, identificado pela FICCO como Eduardo Araújo, também promove suas “próprias rifas online e, da mesma forma que Ryan e Buseira, não atende às exigências legais”. Entre o sorteio e o pagamento da rifa, Ryan comenta com Santos sobre ver “os bagulhos da polícia”, numa referência, segundo a PF, “à propina que negociavam com policiais civis para que não fossem investigados por promoverem jogos de azar mediante a venda de rifas ilegais nas redes sociais”.
Em 3 de março, Ryan desabafa: “Os ‘bagulho’ da polícia ‘queria’ zoar meu instagram. Vamos trocar umas ideias com esses caras aí. (...)” Ele temia que os policiais derrubassem sua conta na rede social. “Não pagar o que os caras ‘quer’ aí, os caras restringiu o Instagram dele. Se restringir o meu vai dar o maior papo reto, vai dar a maior atrasada no nosso corre.” Ele pediu a Santos que negociasse com os policiais. “Tenta chegar pelo menos metade ali do que os caras querem, tá ligado? E pagar eles e eles deixarem a gente em paz.”
Santos respondeu então que o pagamento seria feito na segunda-feira. No dia 3 de março, o empresário respondeu: “Já era. Ficou 100 mil. Eles ‘pensa’ que você tem muito dinheiro. Aí eu falei que segunda ou terça levava o dinheiro na mão.”. Por fim, Santos faz um comentário sobre o policial corrupto. “Ele é tão pilantrinha que falou assim: ‘Agora, vocês ganharam um amigo, qualquer coisa é só chamar ‘nois’. O cara tá pegando dinheiro e tá falando que é nosso amigo agora”.
Ryan então responde: “É bom mesmo ser amigo dessas delegacias. Qualquer coisa ‘nois’ troca uma ideia, dá cinquentinha... melhor do que perder o Instagram onde ‘nois’ pode fazer milhões”. Para a FICCO, Ryan deixa claro que o “pagamento da propina é um negócio vantajoso para eles”. Dois dias depois da entrega dos prêmios, Ryan comenta com Santos que “os caras (policiais)” estão atrás do Buseira” no Rio de Janeiro.
É quando Santos revela que outros envolvidos nas rifas pagaram R$ 700 mil em propinas para policiais cariocas. “Mano, os ‘polícia’ daí (Rio) é louco. O bagulho é ilegal, mas eles estão batendo na tecla que não dão o prêmio.” Ele aconselha Ryan a “dar uma segurada” nas rifas, pois “os caras devem vir forte”. Ou seja, os achaques estavam se generalizando. “Até os policiais que não têm nada a ver, mano, começa a encher o saco.” Em agosto Ryan voltou a postar sobre rifas. E teve a ação acompanhada pela PF.
A rifa promovida por Ryan era compartilhada na plataforma do influencer Chris Dias, que tem 8,1 milhões de seguidores em sua conta no Instagram e foi alvo de uma operação policial no dia 29 de agosto, quando a 3ª Delegacia de Crimes Cibernéticos aprendeu 8 computadores, seis carros de luxo em imóveis de Dias. A coluna não conseguiu localizar Dias.
A máfia chinesa, as bets e MC Brisola
Durante as investigações, a polícia encontrou indícios de que Santos estaria ligado a sites de apostas online, as bets, promovendo-as. Em uma conversa, o empresário pede ao seu advogado que notifique uma empresa da “máfia chinesa” cujos sites de apostas online estavam sendo divulgados por Ryan. “O problema é esse da China. A que eles ‘posta’. Essa da China, doutor, é loucura. É tudo errado, eu já vou te falar a verdade (...). Só bandidagem, lavagem deve ser. E máfia também”. O advogado diz se tratar da “máfia do Brás”.
De acordo com a PF, eles estavam tratando da Kendo Serviços Digitais, que segundo a PF, pagou R$ 700 mil a Ryan. A empresa seria uma intermediadora da casa de apostas digitais identificada como chefe 777 e doce 888. Outra empresa de apostas que teria contato com Ryan seria a Cassino SSSBet, representada por Ricardo Lin. A coluna não conseguiu localizar Lin, a Cassino SSSBet bem como a Kendo Serviços.
Em outra conversa, localizada pela FICCO, entre Santos e Brisola, o artista comenta ter pagado R$ 20 mil para policiais civis de Santo André supostamente, segundo a FICCO, para “arquivar uma investigação registrada no 6.º Distrito Policial”. Brisola explica a situação e acusa os policiais de terem forjado a investigação. “É uma jogadinha. Vai lá, manda um ganso (informante) comprar, vai lá e faz um B.O., entendeu?”
Era 16 de novembro de 2023. Santos responde: “Mas você está pagando um polícia lá? Não né? Esses caras ficam ‘louco’. Você tem de ganhar um dinheiro e dar uma sumida. Esses caras ficam atrás de dinheiro até o dia 10, dia 20, é uma loucura.” E faz um comentário sobre qual o problema que ele via em pagar a propina. “Problema se fosse um só. Se desse dinheiro para um e parasse. O problema é que você vai ter que dar dinheiro para um monte.”
Brisola então conta qual a solução que ele encontrou. “Chamei o Fernando do Deic pra vê”. Ou seja, o artista foi reclamar com outro policial, do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic). No mensagens seguintes, Brisola revela que foi tudo resolvido. E conta que os corruptos queriam R$ 200 mil, mas ele conseguiu reduzir o achaque para R$ 20 mil.
Santos consta como um dos investigados na Operação Latus Actio em razão de suas ligações com o empresário Rodrigo Inácio de Lima Oliveira, dono da maior produtora de funk do País, a GR-6, que tem 41 milhões de inscritos em sua conta no Youtube. É ela quem cuida das carreiras de alguns dos mais importantes MCs do País, como Ryan e Brisola. Durante as investigações, a FICCO encontrou um comprovante de pagamento feito por Bárbara Alves Mota para a GR6, descrito como MC Brisola Baronesa”.
Tratava-se, segundo a PF da Adega Baronesa, de uma casa de shows na Liberdade, no centro de São Paulo, que teria sido criada por Francisca Alves da Silva, a Pretinha, em nome de sua filha Bárbara. Francisca é casada com Alejandro Herbas Camacho, o Marcolinha, irmão do líder máximo do PCC, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola. Francisca foi presa pela FICCO do Ceará, na Operação Primma Migratio, sob a acusação de envolvimento com a Loteria Fort e a Fourtbet, uma casa de apostas eletrônicas, a bet do PCC.
A PF investiga a hipótese da contratação de shows de artistas como forma de lavagem de dinheiro do crime organizado. Um desses shows foi contratado pela empresa FWM Produções e Eventos Ltda e seria realizado no Anhembi, em São Paulo, mas acabou cancelado em razão do assassinato, em 2018, do dono da DWM, o traficante de drogas Wagner Ferreira da Silva, o Cabelo Duro. Pelo menos foi o que disse, ao depor à FICCO, a viúva do criminoso, Marcellle de Oliveira Cabral Ferreira.
“A nossa empresa era a FWM, a gente produzia eventos, né, inclusive essa ligação com a GR6 foi num depósito que foi feito, porque a gente ia fazer um show é... no Anhembi, no qual a gente ia trazer Anitta, Gusttavo Lima, Ludmila”, afirmou ao depor. A FWM teve de pagar R$ 150 mil à GR6 como multa por causa do cancelamento do show. Cabelo Duro foi executado no Tatuapé, na zona leste, em razão de ter participado, no Ceará, dos assassinatos dos líderes do PCC Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e de Fabiano Alves de Souza, o Paca.
Por enquanto, os depoimentos colhidos pela polícia a respeito da GR6 indicam a venda de shows sem a emissão de notas fiscais, o que a empresa nega, e a relação de alguns dos artistas e de pessoas ligadas à empresa com pessoas com antecedentes criminais. Trata-se de uma situação diferente da enfrentada pela outra empresa investigada na operação Latus Actio, a Love Funk, do empresário Henrique Alexandre Barros Lima, conforme a coluna revelou na semana passada.
O que dizem a Secretaria da Segurança e as defesa dos empresário
A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo informou que a “Polícia Civil acompanha as investigações e desdobramentos da Operação Latus Actio, deflagrada pela Polícia Federal”. “Até o momento, não houve formalização de denúncias relacionadas aos fatos. Caso sejam oficializadas, a Corregedoria da Instituição adotará as medidas legais e administrativas cabíveis.”
Em nota, a GR6 informou ainda que: “Maior produtora da América Latina e parceira dos grandes selos de música globais, a GR6 está em dia com seus compromissos com a Receita e recolhe mais impostos federais do que a principal empresa de entretenimento listada na Bolsa brasileira”. O criminalista José Luis Oliveira Lima, que defende o empresário Rodrigo Inácio de Lima Oliveira obteve a devolução dos bens de seu cliente que haviam sido bloqueados pela Justiça.
De acordo com o habeas corpus apresentado pelo criminalista parta trancar a investigação contra seu cliente, a GR6, “por ser uma empresa criada na periferia de São Paulo, que produz conteúdo de música urbana como o funk e o rap, tem de lidar com o preconceito enraizado na sociedade”. De acordo com ele, o sucesso de pessoas que conseguiram vencer todos os obstáculos impostos por uma disparidade social é inaceitável, e automaticamente atrelado à prática criminosa”.
De acordo com Lima, a “empresa, no entanto, é responsável por sustentar mais de 300 famílias, o que mostra a importância da atividade que exerce”. “A GR6 é, hoje, uma das mais importantes empresas do segmento musical do mundo. E seu sucesso se deve, exclusivamente, à perseverança e ao trabalho de seu sócio, parceiros e colaboradores, cuja atuação incansável em prol da música urbana foi determinante para que, em 2021, o Grammy Latino adicionasse a categoria ‘Funk Brasileiro’ em sua premiação.”
De acordo com a defesa, hoje a GR6 é uma das maiores empresas mundiais no ramo musical. “Rodrigo é um dos maiores empresários e exemplos no mercado da música brasileira. Nesses quase 20 anos de carreira, Rodrigo jamais se envolveu em qualquer atividade ilícita, não tendo contra si qualquer condenação criminal. Em conclusão, Rodrigo é um empresário sério e honesto, que obteve sucesso comercial de forma regular e gradativa. Consta como sócio ostensivo em todas as suas empresas, em manifesta evidência de que não se esconde por trás de laranjas ou estruturas societárias complexas.”
E, assim, a FICCO-SP continua com suas investigações para convencer a Justiça de que os jogos ilegais e os indícios de sonegação de impostos colhidos são suficientes para sustentar a tese da existência de crime antecedentes a fim de os acusados respondam criminalmente pelos delito de lavagem de dinheiro, a exemplo do que tem sido decidido pelos tribunais do Ceará e de Pernambuco em outras investigações envolvendo a criminalidade organizada e as loterias ilegais na internet.