Caro leitor,
Nikita Kruchev desconfiava do que o aguardava quando foi chamado às pressas para Moscou para a reunião do Politburo, em 13 de outubro de 1964. A pauta sobre a crise na agricultura não o enganou. O secretário-geral do partido comentou com Anastas Mikoyan, então presidente da URSS: “Eles querem decidir sobre mim. Bem, se todos estiverem contra mim, não vou resistir”. O telefonema para Kruchev partira de Leonid Brezhnev, um jovem dirigente que lhe devia a carreira no partido.
Em tempos de um presidente de mau humor, que governa aos gritos em Brasília, insultando não apenas desafetos, mas também aliados, distribuindo culpas que buscam torná-lo irresponsável por qualquer ato do governo, é interessante saber como Kruchev chegou à noite de sua deposição. A história está em Brezhnev, The Making of a Statesman, primeira grande biografia escrita sobre o segundo mais longevo líder soviético – atrás apenas de Stalin. Recém-lançada nos Estados Unidos, ela é obra de Susanne Schattenberg, diretora do Centro de Pesquisa para Estudos do Leste Europeu, da Universidade de Bremen, na Alemanha.
Schattenberg conta que a conspiração que levou ao afastamento por “motivos de saúde” de Kruchev não deve o seu sucesso ao embaraço em que o líder meteu o País ao instalar mísseis em Cuba, em 1962. Ou à escassez de comida por trás do levante popular em Novocherkassk, quando 26 manifestantes foram mortos pelo Exército soviético. A despeito de serem problemas políticos importantes, tudo se podia arranjar, exceto a personalidade de Kruchev, seus modos e temperamento. Estes denunciavam o flerte do gensek com uma nova ditadura pessoal, ou na linguagem do partido, a “tendência de decidir tudo sozinho, passando por cima do princípio da liderança coletiva”.
Na reunião de 13 de outubro, Brezhnev foi o primeiro a apresentar as acusações contra o chefe. Pintou o retrato de um homem tosco: “Ele já não liga nem mesmo para as regras básicas de comportamento educado e xinga grosseiramente. Como se diz, ninguém é obrigado a ouvir isso. Até os mais rudes e grosseiros enrubescem. ‘Idiota, inútil, vagabundo, fedido, sujo, monte de merda, estraga-prazer, merda e bundão’. E esses são apenas os insultos publicáveis que ele usa”.
Amante da caça e bem humorado, Brezhnev era engenheiro, gostava de se vestir bem e zelava pela liturgia do poder e pela aparência. Era educado, afável sem ser fraco e procurava trabalhar em equipe. Tudo o contrário do estilo camponês rude de Kruchev. Não foi difícil para ele obter apoio nas fileiras comunistas. Stalin fora uma ameaça às suas vidas; Nikita, às suas carreiras. Brezhney permaneceu 18 anos no poder oferecendo aos colegas de partido confiança e estabilidade.
O homem de grossas sobrancelhas sabia o que isso significava em um partido que teve milhares de seus membros assassinados no Grande Terror, de 1937-1938, ou para os que passaram, sob Kruchev, a serem humilhados e ofendidos, além de removidos dos cargos pelo secretário-geral, uma situação que piorou muito depois que Nikita Sergeyevich derrotou a tentativa de golpe da velha guarda stalinista, em 1957.
Brezhnev e os demais conspiradores estavam tão seguros de sua posição, que permitiram a Kruchev ir para casa depois que a reunião foi suspensa para ser retomada no dia seguinte. Tomaram, é verdade, algumas precauções: Vladimir Semichastny, o poderoso diretor da KGB, trocou antes a escolta e os guarda-costas de Kruchev por gente de sua confiança e manteve todos os telefones do secretário-geral sob controle. No dia seguinte, estava tudo consumado. Permitiram a Kruchev se retirar para sua dacha, onde morreu em 1971.
Nos últimos quatro anos, Jair Bolsonaro alienou aliados, rompeu amizades, gritou em reuniões, xingou ministros, removeu amigos e multiplicou desafetos. “Os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade!”, disse na famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2021. Mesmo o caudaloso rio do orçamento secreto pode ser agora insuficiente para manter a lealdade dos companheiros do Centrão. Começam a surgir em Brasília desejos de que a Providência – ou a Petrobras – salve a todos ao mesmo tempo, preservando cargos, salários e prestígio. Conforme passam as pesquisas e o tempo das urnas se aproxima, é cada vez maior o número dos que lamentam ter vencido com Bolsonaro.
Candidato ao governo do Distrito Federal em 2018, o general Paulo Chagas é um exemplo. No começo do governo – que merecera o seu apoio – acabou enredado na apuração do inquérito conduzido por Alexandre Moraes, no STF, em razão de ameaças aos magistrados da Corte. Vieram os escândalos e as crises agravadas por Bolsonaro. Aos poucos, Chagas viu seus colegas humilhados e se distanciou do capitão. Hoje diz ser “ruim a permanência de Bolsonaro no poder, mas péssima a volta de Lula da Silva”. Tapará o nariz e votará em Bolsonaro, mas somente em um segundo turno.
Escreveu o general: “Aos que estão convencidos de que as eleições serão fraudadas eu digo que votarei da mesma forma e que esperarei a comprovação da fraude para me incorporar a eles na batalha judicial pela anulação do pleito, porque nenhum golpe ou ditadura serve para o Brasil”. O general deveria esclarecer o que disse. Há pessoas que ele conhece que, sob a alegação de fraude, querem desde já o cancelamento das eleições? A ideia do golpe é defendida em grupos de militares da reserva. E ganha força a cada pesquisa eleitoral – que fingem ignorar – que consolida o retrato da rejeição que o capitão amealhou.
Esses movimentos da reserva não passam despercebidos do Comando do Exército. Os amigos de Chagas não se preocupam se o governo procura pôr o Erário à serviço da reeleição de quem troca o gabinete no horário de trabalho por passeios de moto e de jet ski. Conspira-se mesmo assim contra as eleições porque não se quer entregar cargos e sinecuras conquistadas. Falam da corrupção petista, mas silenciam sobre a do atual governo. A fórmula de culpar o inimigo por seus males não deu certo com os russos. Nem mesmo eles aguentaram Kruchev. E os problemas dos colegas do general vão além de encontrar um Brezhnev.