As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Forças Armadas veem excessos em protesto bolsonarista, enquanto nos EUA generais condenaram invasão


Comparada com a nota dos generais americanos, documento dos brasileiros vê apenas excessos na ação dos inconformados com a eleição

Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor,

Quem comparou o documento assinado pelos chefes militares americanos seis dias após o ataque de extremistas de direita ao Capitólio com a nota dos comandantes militares brasileiros publicada pelo Estadão 12 dias depois de Jair Bolsonaro (PL) perder o segundo turno das eleições para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pôde ter uma ideia do tamanho do desafio para as relações civis-militares no País. Vejamos os momentos em que os oficiais generais dos dois países decidiram falar às instituições e ao povo de seus países.

Os comandantes Almir Garnier Santos (Marinha), Marco Antônio Freire Gomes (Exército) e Carlos de Almeida Baptista Junior (Aeronáutica) Foto: MD, MARCOS CORRÊA/PR E FAB
continua após a publicidade

Era 12 de janeiro de 2021, quando Mark Milley, o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, divulgou a carta assinada com outros sete oficiais generais. Tinha 20 linhas. Começava assim: “O povo americano tem confiado em suas Forças Armadas para protegê-lo e à sua Constituição por quase 250 anos”. O documento é muito claro ao afirmar que o ataque ao Capitólio era um “assalto direto ao Congresso e à ordem”. “Testemunhamos eventos que são inconsistentes com a obediência às leis, ao direito de liberdade de opinião e de reunião, pois estes não dão a ninguém o direito de usar a violência, a sedição e a insurreição.”

Milley e seus colegas prosseguiram com sua profissão de fé: “Nós defendemos a Constituição. Qualquer ruptura do processo constitucional não é apenas contra nossas tradições, valores e juramento, é contrário à lei”. Os chefes militares mostraram que o único lado que se pode esperar de quem ocupa tais cargos é a defesa da legalidade. A isenção e o apartidarismo não podem servir para fechar os olhos à violência quando esta vem do lado com o qual se simpatiza.

Nem se deve usar o histórico das ações do MST para justificar bloqueios de estradas e agressões a policiais feitos por apoiadores de Bolsonaro. Muito menos a liberdade de opinião justifica a incitação ao crime dos que vão aos quartéis pedir um golpe. Se a censura a quem quer que seja é deplorável em uma democracia, isso não significa que as pessoas não devam ser responsáveis pelo que dizem. E responsabilizadas. Não é papel das Forças Armadas moderar conflitos políticos, chamar de “excessos” aquilo que constitui crime ou dar pitos no Poder Judiciário. Todos esses pontos estavam na nota dos comandantes brasileiros.

continua após a publicidade

Mas o que está por trás dessa irrupção das Forças no cenário conturbado do País após a vitória de Lula? Quem leu apressadamente a nota dos comandantes não percebeu no último parágrafo três palavras que mostram seu parentesco com o pensamento do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército. Estão ali, na frase: “Assim, temos primado pela Legalidade, Legitimidade e Estabilidade, transmitindo aos nossos subordinados serenidade, confiança na cadeia de comando, coesão e patriotismo”.

Eis aqui todo o programa dos comandantes. Eles se colocaram como continuadores de Villas Bôas. Na crise que levou ao impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, o general chamava a estabilidade, a legalidade e a legitimidade de os três pilares da atuação da Força Terrestre. Defendia que o Exército deixasse de ser o Grande Mudo da República, conforme ensinara a Missão Militar Francesa, nos anos 1920. As transformações culturais após o fim da União Soviética, em 1991, teriam imposto radicais modificações no modo de comunicar das instituições. O grande mudo – pensavam os generais – precisava começar a falar.

O general Eduardo Villas Boas foi comandante do Exército brasileiro Foto: Ueslei Marcelino/Reuters
continua após a publicidade

É que o Exército estava cansado de apanhar calado. Queria enfrentar os agravos da academia, dos jornalistas e dos políticos. Villas Bôas incentivou que os generais sob seu comando ocupassem espaços. Sua meta era que o Exército voltasse a ser ouvido pela sociedade com naturalidade. Ao antropólogo Celso Castro, disse: “Teríamos de romper um patrulhamento que agia toda vez que um militar se pronunciava, rotulando de imediato como quebra de disciplina ou ameaça de golpe”.

O processo é descrito no capítulo Anatomia de um Tuíte, do livro Poder Camuflado, do jornalista Fabio Victor. Villas Bôas teve sucesso e arrastou para as redes sociais uma legião de militares da ativa. O problema é que o comandante destampou a caixa de pandora. Até sargentos começaram a dar palpites em transmissões de deputados federais sobre o valor do soldo. O que se viu foi o esgarçar da disciplina até que o sucessor de Villas Bôas, o general Edson Leal Pujol, pôs ordem na casa, disciplinando o uso das redes sociais, até porque, quem pode um dia aplaudir, pode, no dia seguinte, pensar que tem o direito de vaiar.

Pujol reagia ainda a uma outra mudança: o governo de Jair Bolsonaro identificava-se amplamente com os interesses das Forças Armadas. E também com o discurso de repúdio ao chamado politicamente correto e com os ataques aos partidos políticos que governaram o País na maior parte da Nova República, todos identificados com a esquerda. Se os militares sentiam vontade de falar nas gestões do PT ou de Michel Temer, não achavam mais isso preciso quando se consideraram no poder, com Bolsonaro. Podiam voltar ao silêncio.

continua após a publicidade

E assim foi que Pujol nunca teve conta no Twitter, ao contrário de Villas Bôas. Seu sucessor, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, congelou a conta na rede social depois de assumir o Exército, em março de 2021. O general Marco Antonio Freire Gomes, que o sucedeu na função, também não usa as redes sociais para se manifestar. Nem precisava. Nos últimos três anos há generais falando demais no Palácio, como Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos.

E isso para não falar do próprio presidente, que inaugurou formas agressivas e descontroladas para desorientar a oposição e se manter como o centro do noticiário. Não foi apenas o cercadinho e a rede de influencers e blogueiros amigos que abasteceram fanáticos, que produziam uma comunicação sem nenhuma institucionalidade. O próprio presidente se deixava envolver pelo gabinete do ódio, o grupo de assessores que rifou o general Rêgo Barros da função de porta-voz, depois de o militar buscar pôr ordem na casa.

O que é notável agora é que os comandantes das Forças tenham recuperado suas vozes no momento em que Bolsonaro silencia a sua. Desde que perdeu a eleição, o presidente fez apenas três publicações para os 15 milhões de seguidores de sua conta no Facebook – um dia antes do segundo turno, ele fizera 22, quase uma a cada hora. Impressiona ainda mais o fato de que a nota não carregava a assinatura do ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Oliveira, que é o representante político das Forças.

continua após a publicidade

Um dos maiores estudiosos dos temas relacionados à Defesa no País, o professor Eurico Lima de Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense, resumiu a situação criada pela nota dos comandantes com a seguinte frase: “Ela apaga a figura da liderança do ministro da Defesa.” Foi a primeira vez que isso aconteceu neste governo – nenhuma das fontes consultadas pela coluna soube apontar alguma outra oportunidade em que isso tenha ocorrido desde a criação do Ministério da Defesa, em 1999.

O presidente Jair Bolsonaro em solenidade militar; ao lado dele, à dir., o então comandante do Exército, Edson Leal Pujol, presta continência ao presidente Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

É preciso agora saber se a manifestação dos comandantes significa que o Grande Mudo voltará a falar – acompanhado das duas outras Forças – ou se a nota dos comandantes é apenas mais um símbolo da degradação institucional promovida pelo governo Bolsonaro. De qualquer forma, em um ou em outro caso, a instabilidade provocada por manifestos militares é só mais um dos fatos que o futuro governo de Lula da Silva terá de enfrentar. E não vai adiantar chamar o problema de “herança maldita”.

continua após a publicidade

Para reconstruir a institucionalidade será preciso mais do que votos. É necessário deixar o passado para trás, com todos os seus métodos e fardos, e construir um novo consenso para o País, que torne a democracia um valor universal. Mas também é preciso, como escreveu o professor Manuel Domingos, que o novo governo saiba comandar. “Não basta dizer ao militar que volte ao quartel. Voltar para fazer o quê?” O próprio professor responde: “A missão que lhe compete é se preparar para dissuadir ou abater estrangeiro.” Sem esquecer a defesa da Constituição e a obediência aos Poderes Constitucionais.

Caro leitor,

Quem comparou o documento assinado pelos chefes militares americanos seis dias após o ataque de extremistas de direita ao Capitólio com a nota dos comandantes militares brasileiros publicada pelo Estadão 12 dias depois de Jair Bolsonaro (PL) perder o segundo turno das eleições para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pôde ter uma ideia do tamanho do desafio para as relações civis-militares no País. Vejamos os momentos em que os oficiais generais dos dois países decidiram falar às instituições e ao povo de seus países.

Os comandantes Almir Garnier Santos (Marinha), Marco Antônio Freire Gomes (Exército) e Carlos de Almeida Baptista Junior (Aeronáutica) Foto: MD, MARCOS CORRÊA/PR E FAB

Era 12 de janeiro de 2021, quando Mark Milley, o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, divulgou a carta assinada com outros sete oficiais generais. Tinha 20 linhas. Começava assim: “O povo americano tem confiado em suas Forças Armadas para protegê-lo e à sua Constituição por quase 250 anos”. O documento é muito claro ao afirmar que o ataque ao Capitólio era um “assalto direto ao Congresso e à ordem”. “Testemunhamos eventos que são inconsistentes com a obediência às leis, ao direito de liberdade de opinião e de reunião, pois estes não dão a ninguém o direito de usar a violência, a sedição e a insurreição.”

Milley e seus colegas prosseguiram com sua profissão de fé: “Nós defendemos a Constituição. Qualquer ruptura do processo constitucional não é apenas contra nossas tradições, valores e juramento, é contrário à lei”. Os chefes militares mostraram que o único lado que se pode esperar de quem ocupa tais cargos é a defesa da legalidade. A isenção e o apartidarismo não podem servir para fechar os olhos à violência quando esta vem do lado com o qual se simpatiza.

Nem se deve usar o histórico das ações do MST para justificar bloqueios de estradas e agressões a policiais feitos por apoiadores de Bolsonaro. Muito menos a liberdade de opinião justifica a incitação ao crime dos que vão aos quartéis pedir um golpe. Se a censura a quem quer que seja é deplorável em uma democracia, isso não significa que as pessoas não devam ser responsáveis pelo que dizem. E responsabilizadas. Não é papel das Forças Armadas moderar conflitos políticos, chamar de “excessos” aquilo que constitui crime ou dar pitos no Poder Judiciário. Todos esses pontos estavam na nota dos comandantes brasileiros.

Mas o que está por trás dessa irrupção das Forças no cenário conturbado do País após a vitória de Lula? Quem leu apressadamente a nota dos comandantes não percebeu no último parágrafo três palavras que mostram seu parentesco com o pensamento do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército. Estão ali, na frase: “Assim, temos primado pela Legalidade, Legitimidade e Estabilidade, transmitindo aos nossos subordinados serenidade, confiança na cadeia de comando, coesão e patriotismo”.

Eis aqui todo o programa dos comandantes. Eles se colocaram como continuadores de Villas Bôas. Na crise que levou ao impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, o general chamava a estabilidade, a legalidade e a legitimidade de os três pilares da atuação da Força Terrestre. Defendia que o Exército deixasse de ser o Grande Mudo da República, conforme ensinara a Missão Militar Francesa, nos anos 1920. As transformações culturais após o fim da União Soviética, em 1991, teriam imposto radicais modificações no modo de comunicar das instituições. O grande mudo – pensavam os generais – precisava começar a falar.

O general Eduardo Villas Boas foi comandante do Exército brasileiro Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

É que o Exército estava cansado de apanhar calado. Queria enfrentar os agravos da academia, dos jornalistas e dos políticos. Villas Bôas incentivou que os generais sob seu comando ocupassem espaços. Sua meta era que o Exército voltasse a ser ouvido pela sociedade com naturalidade. Ao antropólogo Celso Castro, disse: “Teríamos de romper um patrulhamento que agia toda vez que um militar se pronunciava, rotulando de imediato como quebra de disciplina ou ameaça de golpe”.

O processo é descrito no capítulo Anatomia de um Tuíte, do livro Poder Camuflado, do jornalista Fabio Victor. Villas Bôas teve sucesso e arrastou para as redes sociais uma legião de militares da ativa. O problema é que o comandante destampou a caixa de pandora. Até sargentos começaram a dar palpites em transmissões de deputados federais sobre o valor do soldo. O que se viu foi o esgarçar da disciplina até que o sucessor de Villas Bôas, o general Edson Leal Pujol, pôs ordem na casa, disciplinando o uso das redes sociais, até porque, quem pode um dia aplaudir, pode, no dia seguinte, pensar que tem o direito de vaiar.

Pujol reagia ainda a uma outra mudança: o governo de Jair Bolsonaro identificava-se amplamente com os interesses das Forças Armadas. E também com o discurso de repúdio ao chamado politicamente correto e com os ataques aos partidos políticos que governaram o País na maior parte da Nova República, todos identificados com a esquerda. Se os militares sentiam vontade de falar nas gestões do PT ou de Michel Temer, não achavam mais isso preciso quando se consideraram no poder, com Bolsonaro. Podiam voltar ao silêncio.

E assim foi que Pujol nunca teve conta no Twitter, ao contrário de Villas Bôas. Seu sucessor, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, congelou a conta na rede social depois de assumir o Exército, em março de 2021. O general Marco Antonio Freire Gomes, que o sucedeu na função, também não usa as redes sociais para se manifestar. Nem precisava. Nos últimos três anos há generais falando demais no Palácio, como Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos.

E isso para não falar do próprio presidente, que inaugurou formas agressivas e descontroladas para desorientar a oposição e se manter como o centro do noticiário. Não foi apenas o cercadinho e a rede de influencers e blogueiros amigos que abasteceram fanáticos, que produziam uma comunicação sem nenhuma institucionalidade. O próprio presidente se deixava envolver pelo gabinete do ódio, o grupo de assessores que rifou o general Rêgo Barros da função de porta-voz, depois de o militar buscar pôr ordem na casa.

O que é notável agora é que os comandantes das Forças tenham recuperado suas vozes no momento em que Bolsonaro silencia a sua. Desde que perdeu a eleição, o presidente fez apenas três publicações para os 15 milhões de seguidores de sua conta no Facebook – um dia antes do segundo turno, ele fizera 22, quase uma a cada hora. Impressiona ainda mais o fato de que a nota não carregava a assinatura do ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Oliveira, que é o representante político das Forças.

Um dos maiores estudiosos dos temas relacionados à Defesa no País, o professor Eurico Lima de Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense, resumiu a situação criada pela nota dos comandantes com a seguinte frase: “Ela apaga a figura da liderança do ministro da Defesa.” Foi a primeira vez que isso aconteceu neste governo – nenhuma das fontes consultadas pela coluna soube apontar alguma outra oportunidade em que isso tenha ocorrido desde a criação do Ministério da Defesa, em 1999.

O presidente Jair Bolsonaro em solenidade militar; ao lado dele, à dir., o então comandante do Exército, Edson Leal Pujol, presta continência ao presidente Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

É preciso agora saber se a manifestação dos comandantes significa que o Grande Mudo voltará a falar – acompanhado das duas outras Forças – ou se a nota dos comandantes é apenas mais um símbolo da degradação institucional promovida pelo governo Bolsonaro. De qualquer forma, em um ou em outro caso, a instabilidade provocada por manifestos militares é só mais um dos fatos que o futuro governo de Lula da Silva terá de enfrentar. E não vai adiantar chamar o problema de “herança maldita”.

Para reconstruir a institucionalidade será preciso mais do que votos. É necessário deixar o passado para trás, com todos os seus métodos e fardos, e construir um novo consenso para o País, que torne a democracia um valor universal. Mas também é preciso, como escreveu o professor Manuel Domingos, que o novo governo saiba comandar. “Não basta dizer ao militar que volte ao quartel. Voltar para fazer o quê?” O próprio professor responde: “A missão que lhe compete é se preparar para dissuadir ou abater estrangeiro.” Sem esquecer a defesa da Constituição e a obediência aos Poderes Constitucionais.

Caro leitor,

Quem comparou o documento assinado pelos chefes militares americanos seis dias após o ataque de extremistas de direita ao Capitólio com a nota dos comandantes militares brasileiros publicada pelo Estadão 12 dias depois de Jair Bolsonaro (PL) perder o segundo turno das eleições para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pôde ter uma ideia do tamanho do desafio para as relações civis-militares no País. Vejamos os momentos em que os oficiais generais dos dois países decidiram falar às instituições e ao povo de seus países.

Os comandantes Almir Garnier Santos (Marinha), Marco Antônio Freire Gomes (Exército) e Carlos de Almeida Baptista Junior (Aeronáutica) Foto: MD, MARCOS CORRÊA/PR E FAB

Era 12 de janeiro de 2021, quando Mark Milley, o chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, divulgou a carta assinada com outros sete oficiais generais. Tinha 20 linhas. Começava assim: “O povo americano tem confiado em suas Forças Armadas para protegê-lo e à sua Constituição por quase 250 anos”. O documento é muito claro ao afirmar que o ataque ao Capitólio era um “assalto direto ao Congresso e à ordem”. “Testemunhamos eventos que são inconsistentes com a obediência às leis, ao direito de liberdade de opinião e de reunião, pois estes não dão a ninguém o direito de usar a violência, a sedição e a insurreição.”

Milley e seus colegas prosseguiram com sua profissão de fé: “Nós defendemos a Constituição. Qualquer ruptura do processo constitucional não é apenas contra nossas tradições, valores e juramento, é contrário à lei”. Os chefes militares mostraram que o único lado que se pode esperar de quem ocupa tais cargos é a defesa da legalidade. A isenção e o apartidarismo não podem servir para fechar os olhos à violência quando esta vem do lado com o qual se simpatiza.

Nem se deve usar o histórico das ações do MST para justificar bloqueios de estradas e agressões a policiais feitos por apoiadores de Bolsonaro. Muito menos a liberdade de opinião justifica a incitação ao crime dos que vão aos quartéis pedir um golpe. Se a censura a quem quer que seja é deplorável em uma democracia, isso não significa que as pessoas não devam ser responsáveis pelo que dizem. E responsabilizadas. Não é papel das Forças Armadas moderar conflitos políticos, chamar de “excessos” aquilo que constitui crime ou dar pitos no Poder Judiciário. Todos esses pontos estavam na nota dos comandantes brasileiros.

Mas o que está por trás dessa irrupção das Forças no cenário conturbado do País após a vitória de Lula? Quem leu apressadamente a nota dos comandantes não percebeu no último parágrafo três palavras que mostram seu parentesco com o pensamento do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército. Estão ali, na frase: “Assim, temos primado pela Legalidade, Legitimidade e Estabilidade, transmitindo aos nossos subordinados serenidade, confiança na cadeia de comando, coesão e patriotismo”.

Eis aqui todo o programa dos comandantes. Eles se colocaram como continuadores de Villas Bôas. Na crise que levou ao impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, o general chamava a estabilidade, a legalidade e a legitimidade de os três pilares da atuação da Força Terrestre. Defendia que o Exército deixasse de ser o Grande Mudo da República, conforme ensinara a Missão Militar Francesa, nos anos 1920. As transformações culturais após o fim da União Soviética, em 1991, teriam imposto radicais modificações no modo de comunicar das instituições. O grande mudo – pensavam os generais – precisava começar a falar.

O general Eduardo Villas Boas foi comandante do Exército brasileiro Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

É que o Exército estava cansado de apanhar calado. Queria enfrentar os agravos da academia, dos jornalistas e dos políticos. Villas Bôas incentivou que os generais sob seu comando ocupassem espaços. Sua meta era que o Exército voltasse a ser ouvido pela sociedade com naturalidade. Ao antropólogo Celso Castro, disse: “Teríamos de romper um patrulhamento que agia toda vez que um militar se pronunciava, rotulando de imediato como quebra de disciplina ou ameaça de golpe”.

O processo é descrito no capítulo Anatomia de um Tuíte, do livro Poder Camuflado, do jornalista Fabio Victor. Villas Bôas teve sucesso e arrastou para as redes sociais uma legião de militares da ativa. O problema é que o comandante destampou a caixa de pandora. Até sargentos começaram a dar palpites em transmissões de deputados federais sobre o valor do soldo. O que se viu foi o esgarçar da disciplina até que o sucessor de Villas Bôas, o general Edson Leal Pujol, pôs ordem na casa, disciplinando o uso das redes sociais, até porque, quem pode um dia aplaudir, pode, no dia seguinte, pensar que tem o direito de vaiar.

Pujol reagia ainda a uma outra mudança: o governo de Jair Bolsonaro identificava-se amplamente com os interesses das Forças Armadas. E também com o discurso de repúdio ao chamado politicamente correto e com os ataques aos partidos políticos que governaram o País na maior parte da Nova República, todos identificados com a esquerda. Se os militares sentiam vontade de falar nas gestões do PT ou de Michel Temer, não achavam mais isso preciso quando se consideraram no poder, com Bolsonaro. Podiam voltar ao silêncio.

E assim foi que Pujol nunca teve conta no Twitter, ao contrário de Villas Bôas. Seu sucessor, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, congelou a conta na rede social depois de assumir o Exército, em março de 2021. O general Marco Antonio Freire Gomes, que o sucedeu na função, também não usa as redes sociais para se manifestar. Nem precisava. Nos últimos três anos há generais falando demais no Palácio, como Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos.

E isso para não falar do próprio presidente, que inaugurou formas agressivas e descontroladas para desorientar a oposição e se manter como o centro do noticiário. Não foi apenas o cercadinho e a rede de influencers e blogueiros amigos que abasteceram fanáticos, que produziam uma comunicação sem nenhuma institucionalidade. O próprio presidente se deixava envolver pelo gabinete do ódio, o grupo de assessores que rifou o general Rêgo Barros da função de porta-voz, depois de o militar buscar pôr ordem na casa.

O que é notável agora é que os comandantes das Forças tenham recuperado suas vozes no momento em que Bolsonaro silencia a sua. Desde que perdeu a eleição, o presidente fez apenas três publicações para os 15 milhões de seguidores de sua conta no Facebook – um dia antes do segundo turno, ele fizera 22, quase uma a cada hora. Impressiona ainda mais o fato de que a nota não carregava a assinatura do ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Oliveira, que é o representante político das Forças.

Um dos maiores estudiosos dos temas relacionados à Defesa no País, o professor Eurico Lima de Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense, resumiu a situação criada pela nota dos comandantes com a seguinte frase: “Ela apaga a figura da liderança do ministro da Defesa.” Foi a primeira vez que isso aconteceu neste governo – nenhuma das fontes consultadas pela coluna soube apontar alguma outra oportunidade em que isso tenha ocorrido desde a criação do Ministério da Defesa, em 1999.

O presidente Jair Bolsonaro em solenidade militar; ao lado dele, à dir., o então comandante do Exército, Edson Leal Pujol, presta continência ao presidente Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

É preciso agora saber se a manifestação dos comandantes significa que o Grande Mudo voltará a falar – acompanhado das duas outras Forças – ou se a nota dos comandantes é apenas mais um símbolo da degradação institucional promovida pelo governo Bolsonaro. De qualquer forma, em um ou em outro caso, a instabilidade provocada por manifestos militares é só mais um dos fatos que o futuro governo de Lula da Silva terá de enfrentar. E não vai adiantar chamar o problema de “herança maldita”.

Para reconstruir a institucionalidade será preciso mais do que votos. É necessário deixar o passado para trás, com todos os seus métodos e fardos, e construir um novo consenso para o País, que torne a democracia um valor universal. Mas também é preciso, como escreveu o professor Manuel Domingos, que o novo governo saiba comandar. “Não basta dizer ao militar que volte ao quartel. Voltar para fazer o quê?” O próprio professor responde: “A missão que lhe compete é se preparar para dissuadir ou abater estrangeiro.” Sem esquecer a defesa da Constituição e a obediência aos Poderes Constitucionais.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.