O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) julgará neste ano um pedido da Procuradoria-Geral de Justiça (PGJ) para retirar referências religiosas do começo das sessões da Câmara de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo. De acordo com regimento interno da Casa Legislativa, o presidente deve dizer “sob a proteção de Deus iniciamos nossos trabalhos”, o que é inconstitucional, de acordo com a PGJ.
Em documento assinado pelo procurador-geral, Mario Luiz Sarrubbo, há citação de que “a expressão prevista no preceito impugnado da Câmara Municipal de São José do Rio Preto é inconstitucional. O Estado brasileiro é laico e garante a pluralidade de crenças”. O presidente da Câmara, Paulo Pauléra (PP), disse que o Legislativo continuará na briga para manter a frase inicial das sessões, que consta na Casa desde a década de 1960 (leia mais abaixo).
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No documento, Sarrubbo cita trecho de livro do jurista Celso Ribeiro Bastos, morto em 2003, que deixou publicações para cursos de direito constitucional.
Bastos diz que “a liberdade de organização religiosa tem uma dimensão muito importante no seu relacionamento com o Estado. Três modelos são possíveis: fusão, união e separação. O Brasil enquadra-se inequivocamente neste último desde o advento da República, com a edição do decreto n. 119-A, de 17 de janeiro de 1890, que instaurou a separação entre a Igreja e o Estado. O Estado brasileiro tornou-se, desde então, laico, ou não-confessional. Isto significa que ele se mantém indiferente às diversas igrejas que podem livremente constituir-se, para o que o direito presta a sua ajuda pelo conferimento do recurso à personalidade jurídica. Portanto, as igrejas funcionam sob o manto da personalidade jurídica que lhes é conferida nos termos da lei civil. Destarte, o princípio fundamental é o da não-colocação de dificuldades e embaraços à criação de igrejas. Pelo contrário, há até um manifesto intuito constitucional de estimulá-las, o que é evidenciado pela imunidade tributária de que gozam”.
O procurador-geral afirma no documento que ao invocar Deus nas sessões, o que é comum em diversas Câmaras pelo Brasil, o Poder Legislativo cria uma exclusividade religiosa aos cristãos e deixa de fora muçulmanos, por exemplo.
“Não compete ao Poder Legislativo municipal criar preferência por determinada religião – como o faz pela invocação a ‘Deus’ para iniciar a sessão legislativa na Câmara – voltada exclusivamente aos seguidores dos princípios cristãos, alijando outras crenças presentes tradicionalmente no tecido social brasileiro como a judaica, a muçulmana, etc, bem como de outras que não ostentem essa percolação, justamente à vista da laicidade do Estado brasileiro”, afirmou Sarrubbo.
No dia 12 de dezembro de 2023, o desembargador Ricardo Dip, que é relator do caso, enviou solicitação à Câmara de São José do Rio Preto para prestar informações sobre o assunto. O presidente da Câmara, Paulo Pauléra (PP), foi notificado no dia 20 daquele mês. Após as contrarrazões do Poder Legislativo, o processo seguirá rito para julgamento.
Jurisprudência é favorável ao Ministério Público
Esta não é a primeira vez que o Ministério Público aciona uma Câmara solicitando a retirada de citações religiosas. Desde 2019, ao menos outras seis cidades paulistas foram levadas à Justiça pelo mesmo motivo. São elas: São Carlos, Araraquara, Itapecerica da Serra, Taquaritinga, Araçatuba e Catanduva.
Em novembro de 2023, o Tribunal de Justiça acolheu pedido do MP e determinou que a Câmara de Araraquara parasse com citações bíblicas no começo das sessões. A Justiça proibiu também que uma bíblia permanecesse aberta durante os trabalhos em plenário.
Em maio, foi a vez da Câmara de Araçatuba ser julgado pelo TJ. No caso, foi considerado inconstitucional o presidente da Câmara dizer no começo das sessões “sob a proteção de Deus iniciamos nossos trabalhos”. A decisão ainda proibiu que um vereador fizesse leitura de um trecho bíblico por até três minutos.
O desembargador Tarcísio Ferreira Vianna Cotrim afirmou que o “Município de Araçatuba, por se tratar de ente público integrante de Estado laico, não pode manifestar filiação a determinada religião em detrimento das inúmeras outras existentes sob pena de tolher de seus cidadãos o direito e a liberdade de escolher a orientação religiosa que melhor lhes aprouver ou mesmo de optar por se abster de professar qualquer tipo de crença”.
Para Viana Cotrim, a Câmara de Araçatuba violou o artigo 5º da Constituição, que versa sobre igualdade entre todas as pessoas do Brasil - sem distinção de qualquer natureza.
Ministros do Supremo julgam assunto há mais de 10 anos
No documento peticionado junto ao TJ-SP, Sarrubbo cita ainda decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinaram fim de citações religiosas no Poder Legislativo. A mais antiga é uma decisão do ex-ministro Marco Aurélio de Mello, que, em abril de 2012, afirmou que “a garantia do Estado laico obsta que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais”.
Já em 2018, o ministro Dias Toffoli disse em um julgamento que “nenhum ente da federação está autorizado a incorporar preceitos e concepções, seja da Bíblia ou de qualquer outro livro sagrado, a seu ordenamento jurídico”.
No ano seguinte, Edson Fachin, ao analisar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), disse que “ao conter predileção por uma orientação religiosa a norma atacada quebra não apenas o dever de neutralidade estatal, como também viola liberdade religiosa e de crença dos demais integrantes...que não professam a mesma fé”.
Presidente da Câmara diz que levará caso até as últimas instâncias
O presidente da Câmara de Rio Preto, Paulo Pauléra (PP), disse ao Estadão que não vê problema na frase ser citada ao iniciar as sessões da Câmara. Para ele, o corpo jurídico do Poder Legislativo brigará até o Supremo Tribunal Federal (STF), se for necessário, para manter “a tradição”.
“A frase está na Câmara, se não me falha a memória, desde 1960, e existe em quase todos os municípios do Brasil. O que a gente podia fazer, é o que fizemos. Contestamos juridicamente. Em um primeiro momento, o Ministério Público em Rio Preto foi favorável a continuar [a frase religiosa nas sessões]. Agora, tivemos procurador contrário. Então, vamos brigar na Justiça até as últimas instâncias para poder manter essa tradição, que no nosso entendimento não cria nenhum problema”, afirmou o presidente do Poder Legislativo.