Modelo do Bolsa Família não é suficiente para erradicar fome, diz Frei Betto


Responsável pelo programa Fome Zero no primeiro governo de Lula, o dominicano afirma que é necessário introduzir a dimensão educativa nas políticas sociais para o governo não se tornar um ‘balcão de benefícios’

Por Marcelo Godoy
Foto: TABA BENEDICTO
Entrevista comCarlos Alberto Libânio ChristoAssessor da FAO

Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, conheceu a fome no Brasil quando passou cinco anos vivendo em uma favela de Vitória, no Espírito Santo. Responsável pelo programa Fome Zero no primeiro governo Lula, o dominicano se tornou crítico do programa que o sucedeu, o Bolsa Família, por entender que ele não garante a solução permanente para o problema. Segundo ele, seus resultados são suscetíveis às mudanças econômicas e políticas porque o programa não exige que os beneficiários se tornem produtivos nem lhes dá a consciência crítica da cidadania. Sua profecia se realizou no governo de Jair Bolsonaro, quando a fome voltou ao Brasil, atingindo milhões, tornando-se um desafio renovado que o novo governo terá de enfrentar. Para tanto, Luiz Inácio Lula da Silva obteve os recursos para financiar o auxílio de R$ 600 às mães e de R$ 150 por filho até 6 anos. Betto, que atualmente é assessor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), está otimista e preocupado. “Se não se introduzir a dimensão educativa nas políticas sociais, nós vamos ter um governo balcão de benefícios.” Leia, a seguir, sua entrevista.

Frei Betto, na biblioteca da Ordem do Pregadores (Dominicanos), em Perdizes, na zona oeste de São Paulo. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Por ser compensatório, o senhor diz que o Bolsa Família não garante a emancipação das famílias a fim de obter a erradicação permanente do problema. Ou seja, se a política ou a economia sofrem abalos, a fome pode voltar. Esse seria o problema do Bolsa Família?

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Essa questão para mim é fundamental. Toda a minha discordância com o fim do Fome zero e a criação do Bolsa Família foi exatamente essa. O Fome Zero era um programa emancipatório porque ele incluía uma cesta de mais ou menos 60 diferentes programas, entre eles de capacitação profissional em que a família beneficiária em três ou quatro anos estaria em condição de produzir a própria renda e ficaria independente do governo. O Bolsa Família é bom, mas compensatório, não é emancipatório. Quem sai do Bolsa Família corre o risco de voltar para a miséria. Foi essa a minha discordância. Depois, porque o Fome Zero era controlado pelos comitês gestores nos municípios. E chegamos a implantar em 2,5 municípios e isso gerou uma revolta dos prefeitos, pois aquelas lideranças populares estavam se destacando e ameaçando as velhas oligarquias. Além do que, como não tinham nenhuma autoridade sobre o cadastro, eles não podiam colocar os cabos eleitorais , os parentes etc. Eles se rebelaram. Foram ao Planalto e ameaçaram sabotar o governo na base e o governo se intimidou e aí veio o Bolsa Família.

O que é fundamental em uma política de combate à fome?

Eu considero fundamental em uma política de combate à fome, para vencer a insegurança alimentar, dois procedimentos: primeiro a qualificação para que os beneficiários estejam em condições de produzir a própria renda. Não basta como condicionalidade a carteira de vacina e a frequência à escola das crianças. Deveria ter mais duas condicionalidades: primeiro essa, a qualificação profissional, e segundo, a educação política.

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O que seria essa educação política?

Vou usar um termo do Paulo Freire: usar uma metodologia, uma pedagogia que tire a pessoa da consciência ingênua para a consciência crítica. Em outras palavras: a pessoa ter uma consciência de cidadania, o que é democracia e que o governo não está fazendo favor a ela, que ela é governo, ela é a referencia principal. O governo é servidor para ela. Essa educação política a meu ver é fundamental para que as pessoas tenham um benefício participativo e não meramente assistencialista.

Para que o Estado não seja de novo capturado por interesses privados que se contrapõe ao interesse comum?

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Exatamente isso. Você não pode imaginar que o Estado é um caminhão tanque que chega em uma zona de seca e com uma torneirinha para cada um. Mas a visão que se tem é essa, pois não há um trabalho de educação.

O futuro governo não devia assumir os seus erros do passado no combate à forme. Criou-se um programa que tinha fragilidades e elas se mostraram claras a partir do momento que a fome volta. Além de não ter feito um programa emancipatório, pode-se dizer que a rendição do governo aos prefeitos cobrou um preço depois em permitir que essa flagelo voltasse ao País?

Muito. Muito porque o programa foi sendo descaracterizado. Eu estive em Bananeiras, no interior da Paraíba, há dois anos, e as pessoas me disseram que ali o cartão do Bolsa Família não é mais a mulher que vai à caixa pegar o dinheiro. É o filho. E muitos para gastar em drogas. A coisa foi se afrouxando na medida em que passou a ser monitorado pelas prefeituras.

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Qual a perspectiva de que esses erros não se repitam?

Eu acho que há. Eu diria que sim. O Wellington (Dias, futuro ministro do Desenvolvimento Social) é uma pessoa bem escolhida porque ele realmente tem um dom administrativo excepcional. Não foi à toa que o Fome Zero começou no Piauí. Isso tem muito a ver com a figura do Wellington.

Luiz Inácio Lula da Silva aperta a mão do presidente da Câmara, Arthur Lira, durante a negociação da PEC da Transição. Sergio Lima / AFP) 
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Há um ano, o senhor chamou Bolsonaro de Bolsonero e dizia que ele tinha uma lira que ele tocava enquanto o Brasil, a Amazônia pegava fogo. E essa lira era o Arthur Lira. Essa mesma lira será apoiada pelo PT para permanecer onde está, na presidência da Câmara. Ela será agora tocada pelo governo Lula. Como a música que vai sair daí pode ser diferente daquela do governo Bolsonaro se o instrumento é o mesmo?

Marcelo, é muito subjetivo o que eu vou lhe dizer. Mas eu estou convencido que o Lula hoje tem muita consciência do que devia ter feito e não fez. E mais. Possivelmente essa é sua última chance, sai da frente que eu vou ir com trator. Está aí na própria escolha do Ministério. Até acho que se o governo for bem, em 2026, ele será candidato de novo. Ele tem consciência disso. Agora, não dá para errar. Tem de fazer. Por outro lado, ele dá nó em pingo d’água. Veja aí a PEC da Transição, uma coisa de um gênio político. Ninguém imaginava que alguém que nem tomou posse ainda fosse capaz de conseguir isso que ele conseguiu. Mas ele terá de alguma maneira manter boas relações com um Congresso que é totalmente adverso. Não tem como. A questão é criar base políticas para daqui a dois anos colocar um candidato dele a frente da Câmara e do Senado. Ele tem de suportar o Lira em uma permanente queda de braço, como fez agora e graças ao Supremo deu uma rasteira no Lira. A minha visão é essa. Toda essa demora dele em nomear os ministros que não são do PT tem a ver com isso.

Como essa visão de não fazer concessões se adapta com um Congresso hostil e com um presidente eleito com uma vantagem de 1% dos votos? Lula desta vez não foi eleito só com os votos da esquerda. Isso cria um tipo de pressão por compromisso. Não é preciso aglutinar forças políticas em vez de tratorar?

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Eu acho que, nos mandatos anteriores, as concessões foram feitas quase com isonomia. Dessa vez não. Desta vez, ele vai manter o controle da situação. A hegemonia do processo político ele não admite perder. Mas é difícil em um País como o Brasil acabar com as causas da fome. Acabar com ela é fazer a reforma agrária, mas eu duvido que ele tenha condições políticas e ousadia para fazer. Ele poderia ter feito alguma reforma agrária antes, pois tinha tamanho apoio popular. O Lula hoje tem duas vias para garantir a governabilidade: primeiro o acerto político com os partidos e depois a mobilização popular.

Não pode ficar com uma cara populista?

Sim. Pode. Mas não importa, contanto que você tenha o povo mobilizado e algumas reformas estruturais sendo feitas. Na democracia o ator principal é o povo. Nós é que pagamos o salário deles e elegemos.

Em 1946, o Josué de Castro publicou seu livro Geografia da Fome, cujo subtítulo era Pão ou Aço. Ele remete a um dilema que era de se industrializar a economia ou se atacar o problema da fome. Esse dilema vem sendo reproposto por Lula, que disse que entre o mercado e erradicação da fome, ele fica com a segunda. Mas economistas dizem que esse é um falso dilema, que é possível desenvolver a economia e ao mesmo tempo combater a fome. O senhor acha que esse é um falso dilema?

Acho. Acho que é um falso dilema justamente. Veja na crise de 2008. O que Lula fez? Pôs dinheiro na mão do povo e aumentou o consumo, que é a mesma coisa que ele está fazendo agora com a PEC da Transição, com R$ 600 e mais R$ 150 para cada criança. Ele sabe e isso é verdade: quanto mais dinheiro na mão do povo mais a economia gira e reduz a desigualdade e social. Mas isso tem de ser feito com pedagogia, de uma maneira inteligente e não como mero donativo ao povo. Essa para mim é a questão fundamental. Não pode estabelecer políticas sociais que não tenham contrapartida dos beneficiários. Isso é uma questão educativa. Se não se introduzir a dimensão educativa nas políticas sociais, nós vamos ter um governo de balcão de benefícios em vez da realização de direitos.

A fome só ressurge no debate político no País há dois anos. O Josué de Castro dizia que havia um silencio em torno da fome. A fome ainda é um tabu político no Brasil?

Josué de Castro, autor de 'Geografia da Fome', desembarca em São Paulo, em 1959 Foto: Arquivo / Estadão

Eu acredito que as pessoas não tem ideia da dimensão da fome, o que ela representa na vida das pessoas que passam fome. Eu morei cinco anos em uma favela, em Vitória, no Espírito Santo. Olha, eu não convivi com miséria, mas com muita pobreza. É um sufoco muito grande. É uma humilhação. A questão moral até afeta mais que a falta de comida. Você não ter uma renda para poder levar o filho no médico, ficar na fila do INSS não sei quanto tempo para ser atendido. A pobreza no Brasil é muito grande. Fico impressionado quando penso que temos 33 milhões pessoas com fome e 125 milhões em insegurança alimentar. Praticamente metade da população brasileira, é muito grave. E isso se dá pela total desigualdade. Vai ter de mexer na estrutura tributária, o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. Eu espero que venha acontecer, pois sem esses complementos não se combaterá a fome.

Quando se insiste na questão fiscal, não se trata de maldade ou desprezo pelo sofrimento das pessoas. Mas a certeza de que o descontrole econômico vai causar sofrimentos principalmente para os mais pobres. Essa arquitetura financeira não é delicada e não pode causar efeitos contrários ao desejados?

Minha lógica é outra. Esses economistas pecam porque não vão à causa: porque existe fome, miséria e gente na rua. Nunca falam em reformas estruturais. Não falam em reforma agrária. Quando falam em reforma tributária é para facilitar a vida dos ricos. É uma lógica de trabalhar os efeitos e não as causas. O grande problema do capitalismo é que ele é um pronto-socorro que vai pingar mercúrio cromo nas pessoas afetadas pelo sistema. Não vai. É preciso mudar as estruturas. Você fala em teto fiscal? Eu concordo, mas concordo da seguinte maneira: o volume de desoneração fiscal no Brasil a favor dos mais ricos é assombroso. A concentração de renda nesse País é um negócio assustador. Nos EUA tem 200 bancos com agencia na rua e aqui só tem seis, e assim mesmo dois são públicos. O que mais me constrange é que o Brasil e a Argentina são os dois únicos países das três Américas onde nunca teve uma reforma agrária.

"Estou otimista", disse Frei Betto sobre o novo governo. "Eu tenho um adágio: vamos guardar o pessimismo para dias melhores."  Foto: Taba Benedicto/Estadão

É possível se recuperar a ideia do Josué Castro, de analisar a fome por meio do conceito da ecologia? E estruturar o combate à fome dentro da visão de uma retomada econômica do ponto de vista sustentável. Ou seja, a garantia da segurança alimentar tem de estar ligada á segurança do planeta?

Na minha tese sim. Mas na cabeça desse pessoal não. Eu, por exemplo, acho que é uma grande farsa esse negócio de ESG. Agora mudou o figurino. Aí eu abro a televisão e vejo a Vale falar nisso em verde e Brumadinho e Mariana? Essa capacidade que os sistema tem de se prestar atenção no varejo e não chegar ao atacado e suas conexões é uma coisa impressionante. Isso é uma questão epistemológica seríssima. Não há possibilidade de tocar no deus capital. Isso o velho Marx falava no século 19.

Mas as empresas e os políticos sabem que não podem dar as costas à esse tema. O dinheiro do Fundo Amazônia tem efeitos práticos, que mudam o cotidiano das pessoas. O mundo financeiro descobre que os consumidores tem uma perspectiva mais crítica. João Paulo II via a centralidade do trabalho na vida das pessoas e Francisco vê a ecologia. Há um deslocamento do tema...

Francisco fala dos três “T’: trabalho, teto e terra.

A sustentabilidade deixa de ser uma ideia de poucos e passa a ser compartilhada por mais gente...

Sim, a coisas evoluem. Eu me lembro do Chico Mendes sendo ridicularizado pela esquerda porque defendia a questão ecológica. Diziam que era bobagem. Participei de várias reuniões com o Chico Mendes e o pessoal ridicularizava. Que cuidar de natureza, a gente tem de cuidar da luta de classes e hoje todo mundo dá razão a ele... Era um visionário. Eu acho que a questão ecológica está ligada a um desenvolvimento mais saudável do mundo. Se você investe nas comunidades que tem uma relação direta com a natureza, isso é algo fantástico. Veja o caso da Amazônia: quanto mais cresce o desmatamento, mais cresce o desequilíbrio.

Queimada em Santo Antonio do Matupi, sul do Amazonas; o local foi atingido por um incêndio provocado. FOTO GABRIELA BILO / ESTADAO Foto: Gabriela Biló/Estadão

E isso vai ter impacto na produção de alimentos?

Vai ter impacto em tudo. Na qualidade de vida das pessoas. Imagina quantos biliardários americanos estão agora isolados em suas mansões sem eletricidade. E isso acontece porque ninguém quer perder dinheiro. Isso exige muita educação. Quando você entra nos dominicanos, você vai a um cartório e assina um documento que tudo o que você tem e vier a ter como herança de família pertence á comunidade e não a você. E isso, cara, é de uma liberdade incrível.

Eu sinto que o senhor está otimista com o futuro governo...

Estou otimista. Eu tenho um adágio: vamos guardar o pessimismo para dias melhores. Eu estou otimista e preocupado. Otimista porque eu tenho esse princípio, enfim, da minha vida que tem a ver com toda essa história - embora hoje eu me sinta um ING, um indivíduo não governamental. Jamais voltaria a trabalhar para governo. Não tenho vocação para duas coisas: administração pública e iniciativa privada. Mas, por outro lado, conheço bem todo esse processo e sei que vai ser um embate difícil, sobretudo agora com essa cultura bolsonarista, que vai durar muito tempo. Esse não é um fenômeno apenas nacional, mas mundial.

Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, conheceu a fome no Brasil quando passou cinco anos vivendo em uma favela de Vitória, no Espírito Santo. Responsável pelo programa Fome Zero no primeiro governo Lula, o dominicano se tornou crítico do programa que o sucedeu, o Bolsa Família, por entender que ele não garante a solução permanente para o problema. Segundo ele, seus resultados são suscetíveis às mudanças econômicas e políticas porque o programa não exige que os beneficiários se tornem produtivos nem lhes dá a consciência crítica da cidadania. Sua profecia se realizou no governo de Jair Bolsonaro, quando a fome voltou ao Brasil, atingindo milhões, tornando-se um desafio renovado que o novo governo terá de enfrentar. Para tanto, Luiz Inácio Lula da Silva obteve os recursos para financiar o auxílio de R$ 600 às mães e de R$ 150 por filho até 6 anos. Betto, que atualmente é assessor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), está otimista e preocupado. “Se não se introduzir a dimensão educativa nas políticas sociais, nós vamos ter um governo balcão de benefícios.” Leia, a seguir, sua entrevista.

Frei Betto, na biblioteca da Ordem do Pregadores (Dominicanos), em Perdizes, na zona oeste de São Paulo. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Por ser compensatório, o senhor diz que o Bolsa Família não garante a emancipação das famílias a fim de obter a erradicação permanente do problema. Ou seja, se a política ou a economia sofrem abalos, a fome pode voltar. Esse seria o problema do Bolsa Família?

Essa questão para mim é fundamental. Toda a minha discordância com o fim do Fome zero e a criação do Bolsa Família foi exatamente essa. O Fome Zero era um programa emancipatório porque ele incluía uma cesta de mais ou menos 60 diferentes programas, entre eles de capacitação profissional em que a família beneficiária em três ou quatro anos estaria em condição de produzir a própria renda e ficaria independente do governo. O Bolsa Família é bom, mas compensatório, não é emancipatório. Quem sai do Bolsa Família corre o risco de voltar para a miséria. Foi essa a minha discordância. Depois, porque o Fome Zero era controlado pelos comitês gestores nos municípios. E chegamos a implantar em 2,5 municípios e isso gerou uma revolta dos prefeitos, pois aquelas lideranças populares estavam se destacando e ameaçando as velhas oligarquias. Além do que, como não tinham nenhuma autoridade sobre o cadastro, eles não podiam colocar os cabos eleitorais , os parentes etc. Eles se rebelaram. Foram ao Planalto e ameaçaram sabotar o governo na base e o governo se intimidou e aí veio o Bolsa Família.

O que é fundamental em uma política de combate à fome?

Eu considero fundamental em uma política de combate à fome, para vencer a insegurança alimentar, dois procedimentos: primeiro a qualificação para que os beneficiários estejam em condições de produzir a própria renda. Não basta como condicionalidade a carteira de vacina e a frequência à escola das crianças. Deveria ter mais duas condicionalidades: primeiro essa, a qualificação profissional, e segundo, a educação política.

O que seria essa educação política?

Vou usar um termo do Paulo Freire: usar uma metodologia, uma pedagogia que tire a pessoa da consciência ingênua para a consciência crítica. Em outras palavras: a pessoa ter uma consciência de cidadania, o que é democracia e que o governo não está fazendo favor a ela, que ela é governo, ela é a referencia principal. O governo é servidor para ela. Essa educação política a meu ver é fundamental para que as pessoas tenham um benefício participativo e não meramente assistencialista.

Para que o Estado não seja de novo capturado por interesses privados que se contrapõe ao interesse comum?

Exatamente isso. Você não pode imaginar que o Estado é um caminhão tanque que chega em uma zona de seca e com uma torneirinha para cada um. Mas a visão que se tem é essa, pois não há um trabalho de educação.

O futuro governo não devia assumir os seus erros do passado no combate à forme. Criou-se um programa que tinha fragilidades e elas se mostraram claras a partir do momento que a fome volta. Além de não ter feito um programa emancipatório, pode-se dizer que a rendição do governo aos prefeitos cobrou um preço depois em permitir que essa flagelo voltasse ao País?

Muito. Muito porque o programa foi sendo descaracterizado. Eu estive em Bananeiras, no interior da Paraíba, há dois anos, e as pessoas me disseram que ali o cartão do Bolsa Família não é mais a mulher que vai à caixa pegar o dinheiro. É o filho. E muitos para gastar em drogas. A coisa foi se afrouxando na medida em que passou a ser monitorado pelas prefeituras.

Qual a perspectiva de que esses erros não se repitam?

Eu acho que há. Eu diria que sim. O Wellington (Dias, futuro ministro do Desenvolvimento Social) é uma pessoa bem escolhida porque ele realmente tem um dom administrativo excepcional. Não foi à toa que o Fome Zero começou no Piauí. Isso tem muito a ver com a figura do Wellington.

Luiz Inácio Lula da Silva aperta a mão do presidente da Câmara, Arthur Lira, durante a negociação da PEC da Transição. Sergio Lima / AFP) 

Há um ano, o senhor chamou Bolsonaro de Bolsonero e dizia que ele tinha uma lira que ele tocava enquanto o Brasil, a Amazônia pegava fogo. E essa lira era o Arthur Lira. Essa mesma lira será apoiada pelo PT para permanecer onde está, na presidência da Câmara. Ela será agora tocada pelo governo Lula. Como a música que vai sair daí pode ser diferente daquela do governo Bolsonaro se o instrumento é o mesmo?

Marcelo, é muito subjetivo o que eu vou lhe dizer. Mas eu estou convencido que o Lula hoje tem muita consciência do que devia ter feito e não fez. E mais. Possivelmente essa é sua última chance, sai da frente que eu vou ir com trator. Está aí na própria escolha do Ministério. Até acho que se o governo for bem, em 2026, ele será candidato de novo. Ele tem consciência disso. Agora, não dá para errar. Tem de fazer. Por outro lado, ele dá nó em pingo d’água. Veja aí a PEC da Transição, uma coisa de um gênio político. Ninguém imaginava que alguém que nem tomou posse ainda fosse capaz de conseguir isso que ele conseguiu. Mas ele terá de alguma maneira manter boas relações com um Congresso que é totalmente adverso. Não tem como. A questão é criar base políticas para daqui a dois anos colocar um candidato dele a frente da Câmara e do Senado. Ele tem de suportar o Lira em uma permanente queda de braço, como fez agora e graças ao Supremo deu uma rasteira no Lira. A minha visão é essa. Toda essa demora dele em nomear os ministros que não são do PT tem a ver com isso.

Como essa visão de não fazer concessões se adapta com um Congresso hostil e com um presidente eleito com uma vantagem de 1% dos votos? Lula desta vez não foi eleito só com os votos da esquerda. Isso cria um tipo de pressão por compromisso. Não é preciso aglutinar forças políticas em vez de tratorar?

Eu acho que, nos mandatos anteriores, as concessões foram feitas quase com isonomia. Dessa vez não. Desta vez, ele vai manter o controle da situação. A hegemonia do processo político ele não admite perder. Mas é difícil em um País como o Brasil acabar com as causas da fome. Acabar com ela é fazer a reforma agrária, mas eu duvido que ele tenha condições políticas e ousadia para fazer. Ele poderia ter feito alguma reforma agrária antes, pois tinha tamanho apoio popular. O Lula hoje tem duas vias para garantir a governabilidade: primeiro o acerto político com os partidos e depois a mobilização popular.

Não pode ficar com uma cara populista?

Sim. Pode. Mas não importa, contanto que você tenha o povo mobilizado e algumas reformas estruturais sendo feitas. Na democracia o ator principal é o povo. Nós é que pagamos o salário deles e elegemos.

Em 1946, o Josué de Castro publicou seu livro Geografia da Fome, cujo subtítulo era Pão ou Aço. Ele remete a um dilema que era de se industrializar a economia ou se atacar o problema da fome. Esse dilema vem sendo reproposto por Lula, que disse que entre o mercado e erradicação da fome, ele fica com a segunda. Mas economistas dizem que esse é um falso dilema, que é possível desenvolver a economia e ao mesmo tempo combater a fome. O senhor acha que esse é um falso dilema?

Acho. Acho que é um falso dilema justamente. Veja na crise de 2008. O que Lula fez? Pôs dinheiro na mão do povo e aumentou o consumo, que é a mesma coisa que ele está fazendo agora com a PEC da Transição, com R$ 600 e mais R$ 150 para cada criança. Ele sabe e isso é verdade: quanto mais dinheiro na mão do povo mais a economia gira e reduz a desigualdade e social. Mas isso tem de ser feito com pedagogia, de uma maneira inteligente e não como mero donativo ao povo. Essa para mim é a questão fundamental. Não pode estabelecer políticas sociais que não tenham contrapartida dos beneficiários. Isso é uma questão educativa. Se não se introduzir a dimensão educativa nas políticas sociais, nós vamos ter um governo de balcão de benefícios em vez da realização de direitos.

A fome só ressurge no debate político no País há dois anos. O Josué de Castro dizia que havia um silencio em torno da fome. A fome ainda é um tabu político no Brasil?

Josué de Castro, autor de 'Geografia da Fome', desembarca em São Paulo, em 1959 Foto: Arquivo / Estadão

Eu acredito que as pessoas não tem ideia da dimensão da fome, o que ela representa na vida das pessoas que passam fome. Eu morei cinco anos em uma favela, em Vitória, no Espírito Santo. Olha, eu não convivi com miséria, mas com muita pobreza. É um sufoco muito grande. É uma humilhação. A questão moral até afeta mais que a falta de comida. Você não ter uma renda para poder levar o filho no médico, ficar na fila do INSS não sei quanto tempo para ser atendido. A pobreza no Brasil é muito grande. Fico impressionado quando penso que temos 33 milhões pessoas com fome e 125 milhões em insegurança alimentar. Praticamente metade da população brasileira, é muito grave. E isso se dá pela total desigualdade. Vai ter de mexer na estrutura tributária, o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. Eu espero que venha acontecer, pois sem esses complementos não se combaterá a fome.

Quando se insiste na questão fiscal, não se trata de maldade ou desprezo pelo sofrimento das pessoas. Mas a certeza de que o descontrole econômico vai causar sofrimentos principalmente para os mais pobres. Essa arquitetura financeira não é delicada e não pode causar efeitos contrários ao desejados?

Minha lógica é outra. Esses economistas pecam porque não vão à causa: porque existe fome, miséria e gente na rua. Nunca falam em reformas estruturais. Não falam em reforma agrária. Quando falam em reforma tributária é para facilitar a vida dos ricos. É uma lógica de trabalhar os efeitos e não as causas. O grande problema do capitalismo é que ele é um pronto-socorro que vai pingar mercúrio cromo nas pessoas afetadas pelo sistema. Não vai. É preciso mudar as estruturas. Você fala em teto fiscal? Eu concordo, mas concordo da seguinte maneira: o volume de desoneração fiscal no Brasil a favor dos mais ricos é assombroso. A concentração de renda nesse País é um negócio assustador. Nos EUA tem 200 bancos com agencia na rua e aqui só tem seis, e assim mesmo dois são públicos. O que mais me constrange é que o Brasil e a Argentina são os dois únicos países das três Américas onde nunca teve uma reforma agrária.

"Estou otimista", disse Frei Betto sobre o novo governo. "Eu tenho um adágio: vamos guardar o pessimismo para dias melhores."  Foto: Taba Benedicto/Estadão

É possível se recuperar a ideia do Josué Castro, de analisar a fome por meio do conceito da ecologia? E estruturar o combate à fome dentro da visão de uma retomada econômica do ponto de vista sustentável. Ou seja, a garantia da segurança alimentar tem de estar ligada á segurança do planeta?

Na minha tese sim. Mas na cabeça desse pessoal não. Eu, por exemplo, acho que é uma grande farsa esse negócio de ESG. Agora mudou o figurino. Aí eu abro a televisão e vejo a Vale falar nisso em verde e Brumadinho e Mariana? Essa capacidade que os sistema tem de se prestar atenção no varejo e não chegar ao atacado e suas conexões é uma coisa impressionante. Isso é uma questão epistemológica seríssima. Não há possibilidade de tocar no deus capital. Isso o velho Marx falava no século 19.

Mas as empresas e os políticos sabem que não podem dar as costas à esse tema. O dinheiro do Fundo Amazônia tem efeitos práticos, que mudam o cotidiano das pessoas. O mundo financeiro descobre que os consumidores tem uma perspectiva mais crítica. João Paulo II via a centralidade do trabalho na vida das pessoas e Francisco vê a ecologia. Há um deslocamento do tema...

Francisco fala dos três “T’: trabalho, teto e terra.

A sustentabilidade deixa de ser uma ideia de poucos e passa a ser compartilhada por mais gente...

Sim, a coisas evoluem. Eu me lembro do Chico Mendes sendo ridicularizado pela esquerda porque defendia a questão ecológica. Diziam que era bobagem. Participei de várias reuniões com o Chico Mendes e o pessoal ridicularizava. Que cuidar de natureza, a gente tem de cuidar da luta de classes e hoje todo mundo dá razão a ele... Era um visionário. Eu acho que a questão ecológica está ligada a um desenvolvimento mais saudável do mundo. Se você investe nas comunidades que tem uma relação direta com a natureza, isso é algo fantástico. Veja o caso da Amazônia: quanto mais cresce o desmatamento, mais cresce o desequilíbrio.

Queimada em Santo Antonio do Matupi, sul do Amazonas; o local foi atingido por um incêndio provocado. FOTO GABRIELA BILO / ESTADAO Foto: Gabriela Biló/Estadão

E isso vai ter impacto na produção de alimentos?

Vai ter impacto em tudo. Na qualidade de vida das pessoas. Imagina quantos biliardários americanos estão agora isolados em suas mansões sem eletricidade. E isso acontece porque ninguém quer perder dinheiro. Isso exige muita educação. Quando você entra nos dominicanos, você vai a um cartório e assina um documento que tudo o que você tem e vier a ter como herança de família pertence á comunidade e não a você. E isso, cara, é de uma liberdade incrível.

Eu sinto que o senhor está otimista com o futuro governo...

Estou otimista. Eu tenho um adágio: vamos guardar o pessimismo para dias melhores. Eu estou otimista e preocupado. Otimista porque eu tenho esse princípio, enfim, da minha vida que tem a ver com toda essa história - embora hoje eu me sinta um ING, um indivíduo não governamental. Jamais voltaria a trabalhar para governo. Não tenho vocação para duas coisas: administração pública e iniciativa privada. Mas, por outro lado, conheço bem todo esse processo e sei que vai ser um embate difícil, sobretudo agora com essa cultura bolsonarista, que vai durar muito tempo. Esse não é um fenômeno apenas nacional, mas mundial.

Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, conheceu a fome no Brasil quando passou cinco anos vivendo em uma favela de Vitória, no Espírito Santo. Responsável pelo programa Fome Zero no primeiro governo Lula, o dominicano se tornou crítico do programa que o sucedeu, o Bolsa Família, por entender que ele não garante a solução permanente para o problema. Segundo ele, seus resultados são suscetíveis às mudanças econômicas e políticas porque o programa não exige que os beneficiários se tornem produtivos nem lhes dá a consciência crítica da cidadania. Sua profecia se realizou no governo de Jair Bolsonaro, quando a fome voltou ao Brasil, atingindo milhões, tornando-se um desafio renovado que o novo governo terá de enfrentar. Para tanto, Luiz Inácio Lula da Silva obteve os recursos para financiar o auxílio de R$ 600 às mães e de R$ 150 por filho até 6 anos. Betto, que atualmente é assessor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), está otimista e preocupado. “Se não se introduzir a dimensão educativa nas políticas sociais, nós vamos ter um governo balcão de benefícios.” Leia, a seguir, sua entrevista.

Frei Betto, na biblioteca da Ordem do Pregadores (Dominicanos), em Perdizes, na zona oeste de São Paulo. Foto: Taba Benedicto/Estadão

Por ser compensatório, o senhor diz que o Bolsa Família não garante a emancipação das famílias a fim de obter a erradicação permanente do problema. Ou seja, se a política ou a economia sofrem abalos, a fome pode voltar. Esse seria o problema do Bolsa Família?

Essa questão para mim é fundamental. Toda a minha discordância com o fim do Fome zero e a criação do Bolsa Família foi exatamente essa. O Fome Zero era um programa emancipatório porque ele incluía uma cesta de mais ou menos 60 diferentes programas, entre eles de capacitação profissional em que a família beneficiária em três ou quatro anos estaria em condição de produzir a própria renda e ficaria independente do governo. O Bolsa Família é bom, mas compensatório, não é emancipatório. Quem sai do Bolsa Família corre o risco de voltar para a miséria. Foi essa a minha discordância. Depois, porque o Fome Zero era controlado pelos comitês gestores nos municípios. E chegamos a implantar em 2,5 municípios e isso gerou uma revolta dos prefeitos, pois aquelas lideranças populares estavam se destacando e ameaçando as velhas oligarquias. Além do que, como não tinham nenhuma autoridade sobre o cadastro, eles não podiam colocar os cabos eleitorais , os parentes etc. Eles se rebelaram. Foram ao Planalto e ameaçaram sabotar o governo na base e o governo se intimidou e aí veio o Bolsa Família.

O que é fundamental em uma política de combate à fome?

Eu considero fundamental em uma política de combate à fome, para vencer a insegurança alimentar, dois procedimentos: primeiro a qualificação para que os beneficiários estejam em condições de produzir a própria renda. Não basta como condicionalidade a carteira de vacina e a frequência à escola das crianças. Deveria ter mais duas condicionalidades: primeiro essa, a qualificação profissional, e segundo, a educação política.

O que seria essa educação política?

Vou usar um termo do Paulo Freire: usar uma metodologia, uma pedagogia que tire a pessoa da consciência ingênua para a consciência crítica. Em outras palavras: a pessoa ter uma consciência de cidadania, o que é democracia e que o governo não está fazendo favor a ela, que ela é governo, ela é a referencia principal. O governo é servidor para ela. Essa educação política a meu ver é fundamental para que as pessoas tenham um benefício participativo e não meramente assistencialista.

Para que o Estado não seja de novo capturado por interesses privados que se contrapõe ao interesse comum?

Exatamente isso. Você não pode imaginar que o Estado é um caminhão tanque que chega em uma zona de seca e com uma torneirinha para cada um. Mas a visão que se tem é essa, pois não há um trabalho de educação.

O futuro governo não devia assumir os seus erros do passado no combate à forme. Criou-se um programa que tinha fragilidades e elas se mostraram claras a partir do momento que a fome volta. Além de não ter feito um programa emancipatório, pode-se dizer que a rendição do governo aos prefeitos cobrou um preço depois em permitir que essa flagelo voltasse ao País?

Muito. Muito porque o programa foi sendo descaracterizado. Eu estive em Bananeiras, no interior da Paraíba, há dois anos, e as pessoas me disseram que ali o cartão do Bolsa Família não é mais a mulher que vai à caixa pegar o dinheiro. É o filho. E muitos para gastar em drogas. A coisa foi se afrouxando na medida em que passou a ser monitorado pelas prefeituras.

Qual a perspectiva de que esses erros não se repitam?

Eu acho que há. Eu diria que sim. O Wellington (Dias, futuro ministro do Desenvolvimento Social) é uma pessoa bem escolhida porque ele realmente tem um dom administrativo excepcional. Não foi à toa que o Fome Zero começou no Piauí. Isso tem muito a ver com a figura do Wellington.

Luiz Inácio Lula da Silva aperta a mão do presidente da Câmara, Arthur Lira, durante a negociação da PEC da Transição. Sergio Lima / AFP) 

Há um ano, o senhor chamou Bolsonaro de Bolsonero e dizia que ele tinha uma lira que ele tocava enquanto o Brasil, a Amazônia pegava fogo. E essa lira era o Arthur Lira. Essa mesma lira será apoiada pelo PT para permanecer onde está, na presidência da Câmara. Ela será agora tocada pelo governo Lula. Como a música que vai sair daí pode ser diferente daquela do governo Bolsonaro se o instrumento é o mesmo?

Marcelo, é muito subjetivo o que eu vou lhe dizer. Mas eu estou convencido que o Lula hoje tem muita consciência do que devia ter feito e não fez. E mais. Possivelmente essa é sua última chance, sai da frente que eu vou ir com trator. Está aí na própria escolha do Ministério. Até acho que se o governo for bem, em 2026, ele será candidato de novo. Ele tem consciência disso. Agora, não dá para errar. Tem de fazer. Por outro lado, ele dá nó em pingo d’água. Veja aí a PEC da Transição, uma coisa de um gênio político. Ninguém imaginava que alguém que nem tomou posse ainda fosse capaz de conseguir isso que ele conseguiu. Mas ele terá de alguma maneira manter boas relações com um Congresso que é totalmente adverso. Não tem como. A questão é criar base políticas para daqui a dois anos colocar um candidato dele a frente da Câmara e do Senado. Ele tem de suportar o Lira em uma permanente queda de braço, como fez agora e graças ao Supremo deu uma rasteira no Lira. A minha visão é essa. Toda essa demora dele em nomear os ministros que não são do PT tem a ver com isso.

Como essa visão de não fazer concessões se adapta com um Congresso hostil e com um presidente eleito com uma vantagem de 1% dos votos? Lula desta vez não foi eleito só com os votos da esquerda. Isso cria um tipo de pressão por compromisso. Não é preciso aglutinar forças políticas em vez de tratorar?

Eu acho que, nos mandatos anteriores, as concessões foram feitas quase com isonomia. Dessa vez não. Desta vez, ele vai manter o controle da situação. A hegemonia do processo político ele não admite perder. Mas é difícil em um País como o Brasil acabar com as causas da fome. Acabar com ela é fazer a reforma agrária, mas eu duvido que ele tenha condições políticas e ousadia para fazer. Ele poderia ter feito alguma reforma agrária antes, pois tinha tamanho apoio popular. O Lula hoje tem duas vias para garantir a governabilidade: primeiro o acerto político com os partidos e depois a mobilização popular.

Não pode ficar com uma cara populista?

Sim. Pode. Mas não importa, contanto que você tenha o povo mobilizado e algumas reformas estruturais sendo feitas. Na democracia o ator principal é o povo. Nós é que pagamos o salário deles e elegemos.

Em 1946, o Josué de Castro publicou seu livro Geografia da Fome, cujo subtítulo era Pão ou Aço. Ele remete a um dilema que era de se industrializar a economia ou se atacar o problema da fome. Esse dilema vem sendo reproposto por Lula, que disse que entre o mercado e erradicação da fome, ele fica com a segunda. Mas economistas dizem que esse é um falso dilema, que é possível desenvolver a economia e ao mesmo tempo combater a fome. O senhor acha que esse é um falso dilema?

Acho. Acho que é um falso dilema justamente. Veja na crise de 2008. O que Lula fez? Pôs dinheiro na mão do povo e aumentou o consumo, que é a mesma coisa que ele está fazendo agora com a PEC da Transição, com R$ 600 e mais R$ 150 para cada criança. Ele sabe e isso é verdade: quanto mais dinheiro na mão do povo mais a economia gira e reduz a desigualdade e social. Mas isso tem de ser feito com pedagogia, de uma maneira inteligente e não como mero donativo ao povo. Essa para mim é a questão fundamental. Não pode estabelecer políticas sociais que não tenham contrapartida dos beneficiários. Isso é uma questão educativa. Se não se introduzir a dimensão educativa nas políticas sociais, nós vamos ter um governo de balcão de benefícios em vez da realização de direitos.

A fome só ressurge no debate político no País há dois anos. O Josué de Castro dizia que havia um silencio em torno da fome. A fome ainda é um tabu político no Brasil?

Josué de Castro, autor de 'Geografia da Fome', desembarca em São Paulo, em 1959 Foto: Arquivo / Estadão

Eu acredito que as pessoas não tem ideia da dimensão da fome, o que ela representa na vida das pessoas que passam fome. Eu morei cinco anos em uma favela, em Vitória, no Espírito Santo. Olha, eu não convivi com miséria, mas com muita pobreza. É um sufoco muito grande. É uma humilhação. A questão moral até afeta mais que a falta de comida. Você não ter uma renda para poder levar o filho no médico, ficar na fila do INSS não sei quanto tempo para ser atendido. A pobreza no Brasil é muito grande. Fico impressionado quando penso que temos 33 milhões pessoas com fome e 125 milhões em insegurança alimentar. Praticamente metade da população brasileira, é muito grave. E isso se dá pela total desigualdade. Vai ter de mexer na estrutura tributária, o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. Eu espero que venha acontecer, pois sem esses complementos não se combaterá a fome.

Quando se insiste na questão fiscal, não se trata de maldade ou desprezo pelo sofrimento das pessoas. Mas a certeza de que o descontrole econômico vai causar sofrimentos principalmente para os mais pobres. Essa arquitetura financeira não é delicada e não pode causar efeitos contrários ao desejados?

Minha lógica é outra. Esses economistas pecam porque não vão à causa: porque existe fome, miséria e gente na rua. Nunca falam em reformas estruturais. Não falam em reforma agrária. Quando falam em reforma tributária é para facilitar a vida dos ricos. É uma lógica de trabalhar os efeitos e não as causas. O grande problema do capitalismo é que ele é um pronto-socorro que vai pingar mercúrio cromo nas pessoas afetadas pelo sistema. Não vai. É preciso mudar as estruturas. Você fala em teto fiscal? Eu concordo, mas concordo da seguinte maneira: o volume de desoneração fiscal no Brasil a favor dos mais ricos é assombroso. A concentração de renda nesse País é um negócio assustador. Nos EUA tem 200 bancos com agencia na rua e aqui só tem seis, e assim mesmo dois são públicos. O que mais me constrange é que o Brasil e a Argentina são os dois únicos países das três Américas onde nunca teve uma reforma agrária.

"Estou otimista", disse Frei Betto sobre o novo governo. "Eu tenho um adágio: vamos guardar o pessimismo para dias melhores."  Foto: Taba Benedicto/Estadão

É possível se recuperar a ideia do Josué Castro, de analisar a fome por meio do conceito da ecologia? E estruturar o combate à fome dentro da visão de uma retomada econômica do ponto de vista sustentável. Ou seja, a garantia da segurança alimentar tem de estar ligada á segurança do planeta?

Na minha tese sim. Mas na cabeça desse pessoal não. Eu, por exemplo, acho que é uma grande farsa esse negócio de ESG. Agora mudou o figurino. Aí eu abro a televisão e vejo a Vale falar nisso em verde e Brumadinho e Mariana? Essa capacidade que os sistema tem de se prestar atenção no varejo e não chegar ao atacado e suas conexões é uma coisa impressionante. Isso é uma questão epistemológica seríssima. Não há possibilidade de tocar no deus capital. Isso o velho Marx falava no século 19.

Mas as empresas e os políticos sabem que não podem dar as costas à esse tema. O dinheiro do Fundo Amazônia tem efeitos práticos, que mudam o cotidiano das pessoas. O mundo financeiro descobre que os consumidores tem uma perspectiva mais crítica. João Paulo II via a centralidade do trabalho na vida das pessoas e Francisco vê a ecologia. Há um deslocamento do tema...

Francisco fala dos três “T’: trabalho, teto e terra.

A sustentabilidade deixa de ser uma ideia de poucos e passa a ser compartilhada por mais gente...

Sim, a coisas evoluem. Eu me lembro do Chico Mendes sendo ridicularizado pela esquerda porque defendia a questão ecológica. Diziam que era bobagem. Participei de várias reuniões com o Chico Mendes e o pessoal ridicularizava. Que cuidar de natureza, a gente tem de cuidar da luta de classes e hoje todo mundo dá razão a ele... Era um visionário. Eu acho que a questão ecológica está ligada a um desenvolvimento mais saudável do mundo. Se você investe nas comunidades que tem uma relação direta com a natureza, isso é algo fantástico. Veja o caso da Amazônia: quanto mais cresce o desmatamento, mais cresce o desequilíbrio.

Queimada em Santo Antonio do Matupi, sul do Amazonas; o local foi atingido por um incêndio provocado. FOTO GABRIELA BILO / ESTADAO Foto: Gabriela Biló/Estadão

E isso vai ter impacto na produção de alimentos?

Vai ter impacto em tudo. Na qualidade de vida das pessoas. Imagina quantos biliardários americanos estão agora isolados em suas mansões sem eletricidade. E isso acontece porque ninguém quer perder dinheiro. Isso exige muita educação. Quando você entra nos dominicanos, você vai a um cartório e assina um documento que tudo o que você tem e vier a ter como herança de família pertence á comunidade e não a você. E isso, cara, é de uma liberdade incrível.

Eu sinto que o senhor está otimista com o futuro governo...

Estou otimista. Eu tenho um adágio: vamos guardar o pessimismo para dias melhores. Eu estou otimista e preocupado. Otimista porque eu tenho esse princípio, enfim, da minha vida que tem a ver com toda essa história - embora hoje eu me sinta um ING, um indivíduo não governamental. Jamais voltaria a trabalhar para governo. Não tenho vocação para duas coisas: administração pública e iniciativa privada. Mas, por outro lado, conheço bem todo esse processo e sei que vai ser um embate difícil, sobretudo agora com essa cultura bolsonarista, que vai durar muito tempo. Esse não é um fenômeno apenas nacional, mas mundial.

Entrevista por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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