Quando o Centro de Comunicação Social do Exército completou 40 anos, em 2021, o hoje chefe do Estado Maior – à época general de Divisão Richard Fernandez Nunes – gostou da ideia de fazermos um pequeno livro entrevistando todos os chefes do departamento. Adotei a organização do projeto junto com o historiador militar Carlos Daróz. Os depoimentos foram agrupados sob o título “A Evolução do Grande Mudo”. Na apresentação, o general Richard define o trabalho: “Do silêncio eloquente à criteriosa interatividade”.
Foi mais ou menos o que aconteceu com o Exército Brasileiro. Ele cita a conclusão de “O Soldado e o Estado”, do americano Samuel Huntington (1927-2008), em que o cientista político chega a afirmar que “o maior serviço que eles (os soldados) podem prestar a si mesmos é servir em silêncio”. Richard argumenta que a “liberdade de ação obtida por um Exército é condicionada pela legitimidade alcançada para seus propósitos, a qual, por sua vez, pressupõe o apoio da opinião pública. Logo, a comunicação é essencial para a estratégia militar”.
As semanas em que fizemos as entrevistas me permitiram conhecer e ouvir as histórias de generais já reformados, quase sempre passados dos 70 anos, com visões quase sempre equivalentes no sentido de que soldado bom é soldado calado. E, episódios pelos quais eles haviam passado no esforço de fazer “o mudo”, dizer algumas palavras àqueles profissionais sofridos, cerceados, calejados das histórias de torturas, desaparecimento e mortes.
Visitas faziam parte desses rituais de aproximação. Geralmente, o general marcava o encontro com o diretor de redação. Foi assim que, em tom de brincadeira, um deles lembrou que estivera com Octávio Frias de Oliveira (1912-2007) que estava acompanhado pelo jornalista – à época um dos principais do jornal – Gilberto Dimenstein (1956-2020) e que, conversa vai, conversa vem, reclamou ao “seu Otávio” que o repórter era muito “comunista”. Antes que Frias pudesse responder, o general, lembra que, mais uma vez em tom de brincadeira, afirmou: “Se ele continuar assim, terei que pendurá-lo no pau de arara”. Pau de arara era o instrumento de tortura usado contra “os inimigos”, nas prisões e quartéis. A expressão foi retirada da entrevista.
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Nesses tempos, o Exército fazia um trabalho hercúleo para se livrar da mão pesada dos governos militares, da pecha das torturas, das prisões, da censura, dos atos institucionais, dos desaparecidos. Esquecer a memória do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), o Vlado, assassinado em um presídio em São Paulo, ou do operário Manuel Fiel Filho (1927-1976) não é fácil. Estão aí, até hoje. Assim como o então deputado Rubens Paiva (1929-1971), assassinado, cujo corpo nunca foi encontrado e segundo me cochichou ao pé de ouvido um desses generais: “esse foi pro fundo do mar” e que agora, está no mar de emoções dos espectadores do filme “Ainda estou aqui”, que concorre ao Oscar.
Registramos no livro 40 anos desse trabalho feito pelos militares para mostrar à opinião pública – levando jornalistas aos mais recônditos lugares deste imenso País para que vejam o trabalho que as tropas fazem pela Nação.
Mas eis que, muitos anos depois, um capitão reformado pôs fim a todo esse trabalho. Jair Bolsonaro trouxe à tona as memórias que se queriam esquecer. Deu poder àqueles que até hoje lamentam o fim da ditadura e, segundo os inquéritos, queriam matar um presidente da República, um vice e um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Nas palavras de um oficial general, será preciso uma catarse nas Forças Armadas para, quem sabe e não se sabe quando, consigam voltar onde pararam.