São poucas as chances de que a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos seja recriada oficialmente no próximo 25 de outubro, data que marca o assassinato do então diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, nas instalações do DOI-Codi em São Paulo, em 1975. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem sendo aconselhado a postergar a decisão, defendida pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, para um momento mais “favorável”. Leia-se, não agora em meio à CPMI do 8 de Janeiro e dos vazamentos da delação premiada do tenente-coronel Mauro César Cid, ex-ajudante de ordens do então presidente Jair Bolsonaro que, inclusive, foi o responsável pela extinção da Comissão.
Para tentar evitar que aumente a tensão com os militares, o próprio ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, tem se empenhado em articulações com a pasta dos Direitos Humanos e Cidadania que possam adiar a recriação da Comissão. A interlocutores, Múcio tem feito questão de dizer que nem ele ou o governo são contra. Mas apenas acredita que este não seria o melhor momento para voltar à discussão dos crimes da ditadura e que, por enquanto, seria mais produtivo pensar em medidas que possam pacificar e não piorar um cenário que já é complexo.
Ativistas de direitos humanos têm cobrado de Lula que a Comissão seja criada, conforme promessa escrita no relatório da transição do governo. Para aqueles que são favoráveis ao cumprimento do compromisso sem mais demora, um governo de esquerda não pode compactuar com o “esquecimento”. Um dos últimos casos analisados pela Comissão foi o da morte do militante da Ação Popular (AP) Fernando Santa Cruz (pai do ex-presidente da OAB Felipe Santa Cruz), em fevereiro de 1974. Para a Comissão, foi uma morte “não natural, violenta e causada pelo Estado brasileiro”. Depois desse relatório, ela foi sendo esvaziada até desaparecer completamente, atendendo às reivindicações dos militares.
De acordo com levantamento feito pela Comissão Nacional da Verdade, 191 brasileiros que resistiram à ditadura foram mortos, 210 estão até hoje desaparecidos, e foram localizados apenas 33 corpos, totalizando 434 militantes mortos e desaparecidos. E os agentes dos órgãos de repressão do Estado que foram até agora identificados, responsáveis pelas torturas e assassinatos, totalizam 337.
Já conforme levantamento da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH-PR), criada em dezembro de 1995, estima-se que pelo menos 50 mil pessoas tenham sido presas somente nos primeiros meses da ditadura militar, e cerca de 20 mil brasileiros passaram por sessões de tortura. Além disso, existem 7.367 acusados e 10.034 atingidos na fase de inquérito em 707 processos judiciais por crime contra a segurança nacional; sem falar nas milhares de prisões políticas não registradas, nas quatro condenações à pena de morte, nos aproximadamente 130 banidos, nos 4.862 cassados, nas levas de exilados e nas centenas de camponeses assassinados.
Mas, entre os que ponderam que o governo espere mais um tempo para instalar a Comissão Especial, o argumento é de que essa seria uma agenda muito complexa e de poucos dividendos políticos. Principalmente neste momento em que a sociedade brasileira continua cindida desde que Bolsonaro perdeu a reeleição. Outro argumento que tem sido usado é o de que Lula acaba de assinar um decreto que institui um grupo de trabalho interministerial para atualizar a Política Nacional de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa. O texto foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) de sexta-feira passada e determina que 12 ministérios sugiram medidas para atualizar o tema. Existe o receio de que, com o confronto, a tarefa não vá prosperar.
No caso dos militares, a pauta tem tudo para ser como acender um fósforo ao lado de um tonel de gasolina. Oficiais militares rejeitam terminantemente uma nova discussão sobre “mortos e desaparecidos na ditadura” e lembram do que consideram “estragos” que aconteceram e do “barulho” provocado pelas investigações da Comissão nos quartéis. Esses mesmos oficiais ponderam que a sociedade brasileira deveria olhar para a frente, “esquecer” essa pauta, e temem que o assunto recrudesça ainda mais no próximo ano, quando o golpe de 64 completa 60 anos.
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Na visão desses oficiais, é preciso refutar essa agenda que estaria sendo impulsionada por doutrinas como a da “Justiça de Transição”. O nome foi dado ao período e aos procedimentos que foram e são usados para reestabelecer o Estado democrático de direitos nos países que viveram regimes de exceção, crimes contra os direitos humanos, e ao modo como eles repararam esses danos. A “Justiça de Transição” foi usada na Argentina e no Chile que viveram ditaduras sangrentas e julgaram e puniram exemplarmente os responsáveis, como o ex-presidente argentino Jorge Rafael Videla que morreu na prisão.
No Brasil, a Lei da Anistia impediu que isso acontecesse. O instrumento libertou presos políticos e permitiu o regresso do exterior de militantes exilados, porém e segundo ativistas, concedeu também uma “auto anistia” aos agentes do Estado envolvidos em ações repressivas, de torturas e mortes após o golpe de 1964. Oficiais do Exército reconhecem que “houve coisas muito erradas”. Mas segundo eles, “essa ferida precisa fechar”.