Chefe da missão de observação eleitoral enviada pela União Interamericana de Órgãos Eleitoral (Uniore) ao Brasil, Lorenzo Córdova foi categórico ao defender o sistema eletrônico de votação. “Não há possibilidade de fraude nas eleições brasileiras”, disse ele. Na sua avaliação, o modelo é “íntegro e intocado”, discurso que destoa dos ataques, sem provas, do presidente Jair Bolsonaro (PL).
“Durante décadas, o Brasil tem sido um ponto de referência para vários países, especialmente por causa das urnas eletrônicas, que fazem uso de tecnologias de qualidade”, afirmou Córdova, em entrevista exclusiva ao Estadão. “O resultado é que as urnas eletrônicas são suficientemente fortes para resistir a qualquer ataque e evitar tentativas de manipulação”, completou ele.
As missões internacionais de observação eleitoral desempenham um papel fundamental nas eleições deste ano. Caberá a esses grupos de especialistas estrangeiros produzir relatórios minuciosos sobre a qualidade do sistema eleitoral brasileiro, o que pode desbancar alegações de manipulação dos resultados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A Uniore deve emitir um comunicado parcial ainda na noite deste domingo, 2.
Além de chefiar um grupo com dezenas de observadores eleitorais no Brasil, Córdova preside o Instituto Nacional Eleitoral do México, entidade semelhante ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Disse que as eleições gerais do Brasil são de extrema importância para definir os rumos do continente americano, pois, caso uma democracia da envergadura da brasileira caia perante uma escalada autoritária, todos os países da região estarão ameaçados.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Em relatório parcial divulgado pela Uniore, os técnicos da instituição disseram que fariam um diagnóstico sobre o sistema eletrônico de votação. Com as informações que a Uniore dispõe até o momento, o sr.consegue atestar que a urna eletrônica é confiável?
A tarefa da observação internacional, neste momento, é a de contribuir com a integridade dos sistemas eleitorais de cada Nação, especialmente num País como o Brasil, que tem uma longa tradição de integridade das instituições eleitorais. Durante décadas, o Brasil tem sido um ponto de referência para vários países, especialmente por causa das urnas eletrônicas que fazem uso de tecnologias de qualidade. Este é o sentido da missão da Uniore no Brasil. Nós não temos o interesse de interferir nos assuntos políticos locais, pois são um assunto do povo brasileiro. Mas temos uma preocupação com a desqualificação do sistema eleitoral que, por diversas vezes, se mostrou íntegro e intocado. É um ponto de referência para todo o continente.
Lorenzo Córdova, chefe da Uniore
O presidente Jair Bolsonaro tem utilizado as urnas eletrônicas para fomentar um discurso, sem provas, de que poderia haver manipulação dos resultados por técnicos do TSE. Há algum indicativo de fraude nas eleições brasileiras?
Nós entendemos que há uma disputa de poder muito dura no Brasil e não devemos interferir, ou pior, fazer parcerias com qualquer político. Porém, de acordo com as evidências que a nossa missão coletou, assumimos que não há possibilidade de fraude nas eleições brasileiras, o que significa dizer que não há possibilidade de manipulação das urnas eletrônicas. Com base nas informações que nós coletamos, posso dizer que não há meios de uma fraude estar em curso.
De qualquer forma, o presidente ironizou a presença da missão da OEA no Brasil ao perguntar: “Vêm observar o que?”. Qual é a sua avaliação sobre essa tentativa de desqualificar a missão? O posicionamento dele no curso do processo eleitoral fará parte da análise técnica da Uniore?
É importante sublinhar que a lógica da missão de observação nos novos contextos de desafios às democracias mudou. As missões têm a lógica de criar a confiança pública no sistema eleitoral e a função de observar as autoridades eleitorais. No final de cada missão, nós fazemos recomendações. A ideia é seguir a lógica de “accountabilty”, que faz parte de toda democracia. Vindo de fora para observar o que um determinado País está fazendo há a necessidade de deixar claro (aos competidores) que eles não estão sendo observados apenas por autoridades locais, mas também por especialistas internacionais. Nós também temos uma contribuição a dar: defender a democracia, que não é um assunto particular ou pessoal. A democracia brasileira não é importante somente para os brasileiros. É importante para todo o continente. Se a democracia brasileira cair, nós teremos uma crise porque haverá uma lógica contagiosa. A integridade eleitoral não importa a um só país. É uma conquista de todo o continente. Então, proteger a democracia brasileira é um assunto que gera preocupação. Todos os países da América Latina e muitos outros fora do continente têm essa preocupação.
Lorenzo Córdova, chefe da Uniore
Nós não desejamos interferir na democracia brasileira, mas nós estamos aqui para evitar isso que é um problema e um desafio em todos os lugares do mundo: o descrédito da via democrática. Porque isso pode acontecer futuramente em outros países. O que os políticos estão fazendo ou dizendo não é da nossa conta. Nós não podemos julgar o presidente Bolsonaro ou o candidato Lula, ou qualquer outro candidato. A nossa preocupação é quando a atividade política tenta explodir a democracia. Neste caso (sobre as manifestações de Bolsonaro), nós seremos muito cuidadosos no nosso relatório. Não julgaremos, porque não viemos aqui para isso. O único que pode julgar o processo eleitoral brasileiro é o TSE.
Qual será a posição da missão num eventual cenário de tentativa de golpe de Estado, caso o presidente Bolsonaro seja derrotado nas eleições e não aceite o resultado das urnas. Como a Uniore reagirá caso essa situação extrema se torne real?
Temos o compromisso de não interferir nos assuntos internos do País. Uma parte desse assunto cabe somente ao povo brasileiro, mas nós já nos preparamos para diversos cenários e temos informações de que o Brasil tem instituições fortes. O papel do Exército e a colaboração deles com o TSE é fundamental (numa situação assim). Até onde sabemos, são as Forças Armadas que distribuem as urnas eletrônicas. Nós temos muita confiança nas instituições brasileiras.
É muito importante não jogar na lógica da catástrofe, porque é preciso ter confiança no processo eleitoral. Não é nossa função julgar se algo está certo ou errado, mas o que acontece no Brasil partiu de um assédio contra as instituições eleitorais. Enfim, quando temos atores que não fazem um compromisso democrático, a democracia está em risco.
O sr. considera a possibilidade de se pronunciar ou apresentar uma carta pública em defesa do resultado das eleições brasileiras, caso surja um cenário de crise?
Eu espero que não, mesmo que eventualmente aconteçam eventos como este. O que eu quero dizer é que nós temos muita confiança nas autoridades brasileiras. É algo para ser levado em consideração, apesar de haver acusações contra as urnas eletrônicas. O modelo eletrônico de votação tem uma tradição de confiança pública e o TSE também é conhecido como uma instituição de nível elevado.
Aconteceu muitas vezes na história mundial das democracias se esvaziarem, mas não acredito que este seja o caso aqui no Brasil. Eu acho que um dia depois das eleições, não importa se a disputa será resolvida em primeiro ou em segundo turno, devemos ter em mente que o futuro da confiança na democracia começa imediatamente.
Lorenzo Córdova, chefe da Uniore
A democracia brasileira não está no paraíso. Há uma série de forças depreciativas, mas eu acredito que, no final do dia, mais uma vez, as eleições serão a recriação de um grande País.
Em relatório divulgado em agosto, a Uniore disse reconhecer o papel desempenhado pelas Forças Armadas “na contribuição para a modernização tecnológica dos processos eleitorais no Brasil, mais especificamente no cuidado e uso da urna eletrônica”.Os questionamentos dos militares às urnas e a proposta de fazer uma “auditoria paralela” da votação fazem parte de uma tentativa de contribuir ou visam tumultuar o processo eleitoral?
Se essas atividades estão acontecendo por meio de canais institucionais, é inevitável que venham a colaborar, para se traduzir em confiança no processo eleitoral. Os procedimentos de auditoria foram discutidos no contexto da Comissão de Transparência Eleitoral, que é institucional. Existem diversas propostas de auditoria feitas por diferentes entidades, como o Tribunal de Contas da União e a Polícia Federal. Muitas dessas recomendações já estão sendo executadas, outras não.
Eu acho que o Brasil pode tirar disso tudo várias lições para o futuro. A primeira é não iniciar uma discussão como essa tão perto da eleição. Um ano antes da disputa é muito perto. Tem uma expressão que nós usamos no México que é: devemos discutir os assuntos quentes nos momentos frios. Eu não creio que haverá uma ruptura democrática. Não creio que o resultado dessa auditoria possa ser usado para contestar os resultados das eleições. No entanto, tudo pode acontecer e é melhor que estejamos preparados para a tempestade perfeita.
Qual deve ser o papel das Forças Armadas numa democracia saudável? Os militares deveriam estar envolvidos em discussões eleitorais?
O papel das Forças Armadas nas democracias é preservar a paz social. Os militares podem contribuir com a discussão pública, mas sem que haja envolvimento em assuntos políticos. As Forças Armadas devem promover a estabilidade social e política, assim como as polícias. As Forças Armadas não são pessoas que portam armas, mas, sim, uma instituição fundamental para os países e isso demanda distância da política. Numa democracia, militares participam, não interferem, principalmente se a participação for feita por canais institucionais, como foi o convite do TSE para que participasse da Comissão de Transparência.