Após um ano e quatro meses de mandato, a segurança pública segue como um ponto frágil na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para reverter o quadro, o titular da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), Mário Sarrubbo, acredita que o combate ao crime organizado deve ser a prioridade número um. E o sucesso nessa luta exige inteligência, alto índice de solução de crimes e baixa letalidade policial.
Ex-procurador-geral de Justiça de São Paulo, Sarrubbo aposta na estratégia de asfixia financeira das facções, reforço das equipes de investigação de crimes nos Estados e, ainda, aumento dos efetivos das polícias estaduais para alcançar a meta traçada.
Questionado sobre a má avaliação do governo na área, o chefe da Senasp afirmou que a pandemia acentuou as desigualdades e levou a um aumento da criminalidade com reflexos ainda colhidos pela gestão atual. Mas reconhece que o governo não pode ficar “em berço esplêndido” aguardando a melhoria do cenário econômico para então resolver a questão da segurança. Confira a seguir, trechos da entrevista:
O senhor está na secretaria há cerca de dois meses. Qual diagnóstico já conseguiu fazer e quais são as situações mais urgentes e prioritárias a serem atacadas?
Segurança pública é, de fato, pauta prioritária hoje no Brasil, talvez a pauta número 1. O presidente da República nos pede que os programas sejam efetivos, com respostas consistentes. A pauta prioritária é combate ao crime organizado. O que estamos fazendo é procurar ser um órgão articulador das forças de combate. Ao longo desses dois meses, foram várias ações e operações. A gente precisa conjugar duas diretrizes que nos parecem fundamentais. Ações integradas com muita inteligência para que a gente possa avançar notadamente no fluxo financeiro e na lavagem de dinheiro. E o ponto número dois são ações integradas até com outros ministérios para retomada dos territórios ocupados.
As pesquisas de opinião mostram que o governo Lula tem sua pior avaliação exatamente na área da segurança. É possível reverter isso sem adotar uma política baseada na repressão com a força bruta que acarreta alta taxa de letalidade?
Não tenho dúvida de que sim. Na verdade, nós precisamos trabalhar muito mais a inteligência do que a força. Para o governo federal, a ideia é que um trabalho efetivo, que traz resultados, é um trabalho de inteligência. A melhor maneira de combater o crime organizado é através do combate à lavagem de dinheiro. O crime organizado acaba quando você estanca o fluxo financeiro dele. E, para fazer isso, você não precisa de força. Precisa de inteligência. Esse é um investimento que entendemos ser fundamental.
A opinião pública entende dessa forma?
Acho que a opinião pública vai entender quando a gente apresentar dados da diminuição ou dados muito positivos de que estamos combatendo com eficiência a criminalidade organizada. Os números já estão melhorando de um ano e meio para cá. Quando a gente conseguir dar respostas que sejam efetivas com operações que sejam de baixíssima ou nenhuma letalidade, com inteligência e estratégia, atingindo o fluxo financeiro das organizações criminosas, ou mesmo trabalhando com policiamento com câmeras nas grandes cidades, prisões em flagrante de preferência sem lesões ou morte, priorizando a vida, a população vai entender. Não tenho dúvida que esse é o melhor modelo e o modelo que queremos aqui no ministério.
Quais são os fatores que levaram, na sua opinião, o governo Lula ter essa baixa avaliação quando o assunto é segurança?
Não podemos esquecer que estamos vivendo ainda um período pós-pandemia, que foi muito difícil para a humanidade como um todo, e mais difícil ainda para países como o Brasil, que tem um déficit social muito grande. Evidente que a alta criminalidade tem uma relação quase direta com a desigualdade social, que foi acentuada nos últimos anos também em função da pandemia. Isso acaba trazendo uma sensação de insegurança maior. Quanto mais ausência de Estado, mais desigualdade social a gente tem, mais material humano a gente tem à disposição do crime, seja organizado ou não.
Se você quer falar de segurança pública, olhe para a floresta e não para a árvore. É óbvio que não podemos ficar em berço esplêndido falando ‘é um problema econômico, só vai melhorar quando melhorar a economia, emprego, renda, educação’. Isso está sendo trabalhado com muita eficiência pelo governo, mas esses resultados demoram um pouco para aparecer. Nós não vamos nos apoiar nisso para dizer ‘não temos nada o que fazer na segurança pública’. Temos o dever de avançar, de criar políticas.
O senhor já tem um planejamento do que pretende fazer a partir do diagnóstico feito nesse início de gestão?
Nas próximas semanas, vamos apresentar alguns projetos importantes de articulação e integração de forças. Vamos trabalhar vários itens de segurança cidadã nos Estados. De câmeras corporais a instrução de policiais militares e civis. E vamos olhar também para as próprias forças policiais. Temos muitos policiais afastados por questões de saúde mental. Queremos também aumentar o índice de esclarecimento de crimes, aumentar a efetividade e o número de policiais nas ruas. Esses são temas muito importantes quando se fala de segurança pública. Estamos com vários projetos saindo do forno.
Além do combate às grandes organizações criminosas, existe também a violência urbana, um problema sério e cotidiano para os cidadãos. O governo também pretende focar nessa direção ou este é um tema prioritariamente dos Estados?
Quando falamos em reforçar a estrutura das polícias civil e militar, estamos falando principalmente de segurança urbana. Temos visto efetivos muito baixos. Queremos entender qual é o tamanho ideal para cada Estado e poder, de alguma maneira, induzir boas políticas para se criar forças policiais que sejam adequadas às complexidades de cada Estado. Estamos trabalhando essa questão, além da saúde mental e da estrutura das polícias e da vida do policial, que é alguém que tem sofrido muito. Isso também é segurança urbana.
Além disso, somos entusiastas do sistema de câmeras corporais. Já ficou provado que ela aumenta sobremaneira o número de prisões e de apreensões. É um componente que potencializa o trabalho das polícias. Em segundo lugar, ela diminui a letalidade policial. O terceiro lugar, e não menos importante, é que ela diminui também a letalidade dos policiais militares. Ou seja, morrem menos policiais, menos pessoas da população e aumenta o número de prisões e de apreensões. Vamos ter uma política muito forte nessa questão das câmaras corporais.
O Ministério da Justiça vai obrigar os Estados a implementarem as câmeras corporais?
Ninguém pode obrigar ninguém a nada, mas a gente vai fomentar, induzir essa boa política. Temos meios de induzir.
Como?
Temos, por exemplo, como induzir por meio do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP). Existem experiências positivas em alguns Estados. As nossas forças já estão com alguma experiência, como é o caso da Polícia Rodoviária Federal (PRF). A gente acredita que essa pode ser uma política muito positiva.
O que exatamente o senhor pretende fazer em relação ao efetivo das polícias estaduais?
As polícias civis, muitas vezes, têm um número muito pequeno de investigadores. Nosso trabalho é fomentar uma estrutura que nos permita melhorar o índice de esclarecimento de crimes. Estamos pensando também em polícia científica. É um braço importante do sistema porque é ela que vai analisar o local do crime, que vai fazer o trabalho de balística. A polícia científica é algo que está no nosso radar para reforço, reestruturação. Dou sempre um exemplo importante: quando acontece um homicídio, a preservação do local do crime é fundamental. E a gente, por incrível que pareça, ainda não tem essa cultura do jeito que tem que ser. Em muitos lugares isso ainda é deficiente e prejudica o esclarecimento do caso.
Como o ministério da Justiça pode ajudar no aumento do número de policiais nos Estados?
Estamos estudando métricas para entender essa lógica e ajudar os Estados de alguma maneira. Eu sei que a questão orçamentária é muito séria para todos nós, mas temos a obrigação de construir caminhos e é isso que nós estamos estudando para entender qual deve ser o tamanho (das tropas) e em cima desse tamanho a gente procurar ajudar. O FNSP tem limites, seja em termos de numerário seja em termos de regra para ser utilizado. Mas a gente pode pensar caminhos, sempre com criatividade.
Seria um programa de repasse específico para aumento de efetivo?
Não. O FNSP não pode ser usado de qualquer modo. Imagine que tenho recursos do fundo para um determinado projeto, como a compra de veículos, armas e capacetes. Esse dinheiro estava travado e agora ele começa a andar. Chegando no Estado, o governo que antes tinha essa despesa agora não tem mais. Então ele pode usar o recurso que seria utilizado para essa compra com outro fim.
O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, comentou recentemente sobre o interesse em apresentar uma PEC (proposta de emenda à Constituição) da Segurança. Ela daria mais autonomia à pasta para formulação de políticas públicas. O que o senhor, como secretário, quer dentro dessa proposta?
Não tem nada de concreto ainda, mas o que o ministro pensou é, na verdade, a importância de a União poder criar diretrizes, ainda que genéricas, de políticas públicas na área de segurança. Hoje a gente tem um papel muito restrito. É uma ideia de que a União possa formular políticas daqui olhando o Brasil como um todo, sem tirar a autonomia dos Estados. Isso está em construção. Ainda é muito cedo para se falar nessa PEC.
Mas essa construção das políticas públicas por Brasília não é algo que a Lei do Sistema Único da Segurança Pública (SUSP), de 2018, já permite que aconteça?
A lei do SUSP permite, mas nós queremos ir um pouco além. A ideia é constitucionalizar. Por isso que é uma PEC para que a gente possa efetivamente ter um substrato maior. Mas veja, ainda é algo muito vago. Eu volto a insistir: na nossa visão, na visão do ministro, a PEC que está sendo construída é para fazer com que a União pudesse formular políticas e diretrizes genéricas nas políticas de segurança pública, para que houvesse um direcionamento da União para essas políticas, respeitadas as autonomias dos Estados. Que a gente pudesse intervir de uma forma um pouco mais efetiva, dado que a União tem a visão macro do País.
E hoje já não é dessa forma?
É muito limitada a nossa forma não só de intervir, mas de articular essa política. O mais importante é que a gente precisa estar dialogando. Queria poder aumentar a possibilidade de a gente avançar e propor efetivamente políticas que possam ser diretrizes. O SUSP é uma ferramenta muito boa. O que queremos é constitucionalizar a visão do SUSP para ficar mais ou menos no mesmo patamar do SUS. Talvez a gente pudesse avançar. Mas quando se fala nessa PEC, insisto, ela ainda não existe. Está sendo construída e será construída com diálogo com governadores e com o Congresso Nacional.
Desde o início do governo, vimos uma relação tensa do ministério com o Congresso. Como o senhor tem se relacionado com os parlamentares? Pretende fazer uma aproximação, sobretudo com a chamada ‘bancada da bala’?
Sem dúvida. Já fui visitar o deputado Alberto Fraga (PL-DF). Não tenho a menor dificuldade, respeitamos demais o Congresso Nacional. O ministro esteve na Comissão de Segurança Pública da Câmara, foi uma reunião importante para o Executivo. Como podemos avançar? É dialogando, que é o que a gente tem feito com o Senado e com a Câmara. E vamos estar sempre abertos. E daqui para aquela Casa quero ter um tapete vermelho para irmos e dialogarmos bastante.
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O senhor mencionou a ida do ministro à Comissão. Nessa ocasião, um dos pleitos dos deputados foi a revisão do decreto sobre armas. Qual sua posição sobre o assunto?
Isso vai ser construído sempre com diálogo. O ministro esteve lá e ouviu. Isso está sendo objeto de estudo e diálogo. Quero crer que a gente consiga encontrar caminhos. Evidente que a política do governo federal é diferente das anteriores, no sentido que entendemos ser preciso ter um controle da circulação das armas. Isso é fundamental. Não vamos abrir mão desse controle. Mas a gente pode ouvir, dialogar e construir soluções que possam atender determinados pleitos que venham do Congresso ou de quem quer que seja. Estamos sempre abertos ao diálogo. Estamos debatendo esse tema internamente e junto com a Câmara vamos encontrar o melhor caminho.
Então há espaço para uma revisão?
Não estou dizendo que há espaço para uma revisão. Estou dizendo que estamos ouvindo quais os pleitos especificamente e que isso está sendo objeto de estudo dentro do ministério. A palavra final, evidentemente, não é minha. É do ministro Lewandowski junto com o presidente Lula. O presidente assumiu uma política muito clara de redução das armas em circulação e essa é a pauta prioritária aqui, sem sombra de dúvidas. Mas evidente que temos que respeitar o Congresso e com cautela, com calma, e com todos dados e pareceres, o ministro Lewandowski e o presidente Lula darão a palavra final.
É possível que essa integração entre governo federal e Estados vá além de operações pontuais? Como isso pode se converter em uma política sólida e de longo prazo?
Quero que o Brasil seja um exemplo de operações integradas, de Norte a Sul. Que no Brasil as forças policiais se sentem à mesma mesa, de forma absolutamente horizontal, discutam políticas, tenham um trabalho de inteligência muito forte. E que possam produzir operações integradas, que desarticulem efetivamente o crime organizado e tragam resultados que sejam positivos. Isso não é uma ‘bala de prata’, muito pelo contrário. Isso na verdade é uma política que precisa ser feita no Brasil de hoje e que estamos muito empenhados em construir a partir da Senasp.
O senhor ainda não fez nenhuma reunião do Conselho Nacional de Segurança Pública. Já definiu a data do primeiro encontro?
Não, mas teremos ainda neste semestre. É prioridade absoluta. Temos um respeito muito grande. Assumimos numa condição difícil, o ministro assumiu com (a crise da fuga do presídio em) Mossoró, então isso acaba atropelando um pouco nossa agenda. A gente tem uma data, mas ainda não bati o martelo com o presidente. Certeza que teremos ainda no primeiro semestre.
Por falar em Mossoró, a fuga prejudicou ainda mais a credibilidade do governo em relação à segurança pública?
Aquilo foi absolutamente isolado. O sistema é seguro. Temos total confiança. A gente estava assumindo quando tudo isso aconteceu. Então, nosso foco foi cuidar disso para que pudesse restabelecer a ordem. Paralelamente a gente sempre soube que não era algo que pudesse ser imputado a A ou B desta gestão e nem de gestão alguma. Havia ali uma falha pontual de procedimento. Não é algo sistêmico. Ao contrário, os presídios são, sim, seguros, inclusive Mossoró, tanto que (os foragidos) voltaram para lá. Temos total confiança. Isso é um fato passado para nós.