Estradas bloqueadas e militantes acampados nas portas de unidades militares em todo o País. O silêncio de Jair Bolsonaro, interrompido apenas na manhã do dia 30, e a perspectiva de que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva subisse a rampa do Palácio do Planalto diminuíram a intensidade dos embates entre eleitores dos dois candidatos que se enfrentaram no segundo turno da eleição.
À medida que o petista formava seu Ministério com o menor número de companheiros de partido de seus três mandatos e com mais espaço para partidos de centro – União Brasil, PSD e MDB ficaram cada um com três pastas – o acerto político se consolidava. E isso antes que cessassem as discussões familiares e a paz voltasse às redes sociais.
Durante a Copa do Mundo do Catar, duas cenas marcaram o grau de polarização: a torcida contra Neymar e as ofensas a Gilberto Gil. O principal jogador brasileiro era culpado diante de metade do País por ter feito campanha pela reeleição de Jair Bolsonaro. Já o cantor baiano era visto pela outra metade como parte do exército inimigo que ameaçava a Nação com a volta de Lula ao poder. O terceiro turno que tomava as ruas em novembro deixou pessimista o cientista político Luiz Felipe d’Avila, que enfrentou os dois na disputa presidencial como candidato do partido Novo. “Se a gente quiser recuperar o orgulho de ser brasileiro temos de parar de querer o mal do Neymar e de criticar o Gil. Se tem duas coisas de que devemos nos orgulhar é a música popular brasileira e o futebol. Se começamos a criticar as poucas coisas de excelência, aí que não vamos a lugar nenhum.”
O que falta ainda definir nesse cenário é o papel que deve ter o agora ex-presidente e seu movimento, o bolsonarismo. “Não é só terceiro turno, mas a presença efetiva do ponto de vista formal e institucional e da mobilização das redes e nas ruas da extrema direita. Com a posse de Lula, esse movimento vai se reciclar”, afirmou o historiador Alberto Aggio. Para d’Avila, o papel da alt right no Brasil dependerá da capacidade da direita democrática de se reorganizar. “A força dele (Bolsonaro) vai aumentar ou diminuir de acordo com a capacidade de se organizar dessa nova direita. Sem isso, Bolsonaro continuará forte.”
Trumpismo
Para o cientista político Marco Aurélio Nogueira, pode-se fazer paralelos entre a situação do País e o que aconteceu em outros lugares onde a extrema direita deixou o poder. Mas o caso mais próximo parece ser o americano, com a derrota de Donald Trump para Joe Biden. A própria ida de Bolsonaro para a Flórida, onde o ex-presidente americano mantém seu QG em Mar-a-Lago, reforça a ideia de que haveria uma espécie de articulação internacional da extrema direita.
“Daí o paralelismo com Trump. Há muitas aproximações entre Eduardo Bolsonaro e o trumpismo”, disse Nogueira. Para d’Avila, o filho do ex-presidente deve liderar a ala antiliberal e reacionária do bolsonarismo. “Se não surgir força capaz de capturar isso, esse pessoal vai ficar na alçada dele (Eduardo Bolsonaro).”
Na opinião de Nogueira, essa situação mostra que o terceiro turno no Brasil se alimenta de uma orientação internacional e incentiva manifestações, reforçando a conflagração social e promovendo um cerco ao governo, que terá de levar em conta isso em seus cálculos políticos. “Não vejo como isso desaparecerá a curto prazo no mandato de Lula.”
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Na avaliação do cientista político, a permanência dos acampamentos bolsonaristas é uma estratégia da tensão. Ela visa complicar a vida do futuro governo e manter alta a temperatura na sociedade, mirando duas pontas do processo: o político e o sociocultural. “O terceiro turno e isso: a manutenção da temperatura tão alta quanto possível na sociedade e um teste para ver até onde o governo resiste. O resultado vai depender do que acontecer em termos de desempenho de Lula, da política que vai praticar e do acertos que fará no Congresso.”
Nogueira lembrou que o futuro governo emergiu das urnas com metade da população na oposição e vai ter de construir uma maioria e com o PT. “Um partido que tem uma trajetória complicada, que é de tentar controlar tudo, cargos, ministérios e decisões, e compartilhar pouco”, disse.
Professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), o cientista político Marco Antonio Teixeira concorda com Nogueira. Para ele, o papel dos líderes será fundamental para definir o cenário que teremos em 2023. “É preciso saber se Bolsonaro quer fazer uma oposição institucional ou se quer uma oposição a qualquer custo.”
Durante o fim de semana, em grupos de WhatsApp bolsonaristas, militantes reclamavam da ausência de Bolsonaro. Diziam que estava tudo pronto para a “intervenção militar”, mas faltava a presença do líder. No meio da tarde, a confirmação de que o então presidente voou para a Flórida, onde deve permanecer em janeiro, causou frustração.
Primeiros meses
Havia até postagens que xingavam o brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da Força Aérea, e tido entre os militares como o mais bolsonarista dos comandantes das três Forças. Baptista Júnior foi quem primeiro teve a ideia de passar o comando antes de posse de Lula. Foi demovido pelo novo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho. E acabou sendo chamado de “melancia” pela militância bolsonarista. Havia ainda pedidos de novos bloqueios de estradas e aeroportos.
Para Teixeira, além da postura de Bolsonaro, o que o governo Lula produzir perante a opinião pública também vai definir a reação da militância que ainda resiste na frente dos quartéis. Se Lula não apresentar bons resultados e for conflitivo, até os grupos moderados vão estar na rua contra o governo. Os primeiros meses do governo Lula serão cruciais.
Em um ponto todos concordam: a oposição bolsonarista no Parlamento deve perder força em razão da cooptação de parte dos eleitos pelo PL, pelo Republicanos e pelo PP para o apoio ao governo por meio da distribuição de cargos e verbas. Para Aggio, Lula será novamente “a expressão de Brasil torto, que avança tortuosamente, mas dá a sensação de que não muda nada”. “É o eterno transformismo, que tem o lado positivo no plano político, que é a democracia, mas cujas releitura e reiteração marcarão seu terceiro mandato.”
O transformismo é um conceito criado pelo pensador Antonio Gramsci para se referir ao processo de cooptação de lideranças radicais na Itália do século 19 pelos moderados. “Que será transformismo não há dúvida alguma. Não se aponta absolutamente nada de forma radical, ele (Lula) vai resolver na base do varejo. Não há grande orientação guiando seu governo.” Teixeira conclui que o desempenho do novo governo dependerá de sua capacidade de envolver o máximo de atores sociais na administração. “O PT dialoga bem com o trabalho, precisa dialogar mais com o capital.”