Um estrangeiro desavisado que chegar ao Brasil hoje e se dispuser a observar o debate público ficará surpreso ao perceber que a figura mais falada da arena política — e a mais temida — é um juiz da corte máxima do País. Pensará, também, que a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) é um problema apenas para quem adora espalhar fake news nas redes sociais, torceu para que as Forças Armadas dessem um golpe entre novembro de 2022 e janeiro de 2023 ou se atiraria de um precipício caso o ex-presidente Jair Bolsonaro ordenasse.
Ao se fiar apenas no retrato do momento, as percepções desse estrangeiro estariam completamente equivocadas. As polêmicas que envolvem o STF e especificamente o ministro Alexandre de Moraes não afetam apenas a direita bolsonarista e nem vão se encerrar quando o bilionário Elon Musk resolver procurar outros alvos para suas postagens.
O pior é que uma boa parcela dos brasileiros sofre do mesmo equívoco do tal estrangeiro fictício, presa que está no retrato do momento da disputa entre parlamentares de oposição e STF ou dos xingamentos de bolsonaristas a ministros da corte nas redes sociais. É preciso olhar para o passado recente e entender como chegamos até aqui. Ao fazê-lo, descobrimos que o poder individual e coletivo dos onze integrantes do STF cresce gradualmente há anos, em perfeita desarmonia com o Legislativo e o Executivo, e que isso, a depender das circunstâncias, afeta todo o espectro político — além de contribuir para perpetuar um dos aspectos da desigualdade social no País, o do acesso à Justiça.
Eis o que demonstra, com muito didatismo, o livro “STF: Como Chegamos Até Aqui?” (Avis Rara; 128 páginas; R$ 39,90), do jornalista Duda Teixeira, que chega esta semana às livrarias. Não se trata de uma obra com histórias de bastidores da nossa Corte Suprema, mas de um livro-reportagem que recorre a documentos históricos e a entrevistas com juízes, desembargadores, advogados e acadêmicos, entre historiadores e antropólogos, para entender o que levou à hipertrofia do tribunal constitucional, como isso impacta na política e na vida nacional e o que ainda pode ser feito a respeito.
O STF nasceu em 1890, inspirado na Suprema Corte americana, para guardar e aplicar a Constituição, intervindo apenas “em espécie e por provocação de parte”. Ou seja, nada dessa história de abrir investigações, iniciar processos, proibir a circulação de informações ou mandar prender gente por conta própria como vemos atualmente. No que se refere às regras para que os Três Poderes pudessem impor freios uns aos outros de forma equilibrada, as coisas por aqui não saíram tão bem quanto nos Estados Unidos. No período em que os americanos tiveram uma constituição, os brasileiros tiveram sete.
Ao longo da história da nossa República, o STF teve momentos melhores e outros piores, como durante a última ditadura, quando a composição do tribunal foi alterado ao gosto dos militares por meio da mudança no número de ministros e da cassação de alguns integrantes. Mas foi a Constituição de 1988 que lançou as sementes para que a corte fosse adquirindo um protagonismo e um poder crescentes ao longo das décadas seguintes. Para começar, “a Carta ampliou a quantidade de instituições que podem perguntar ao STF se uma lei é ou não constitucional”, escreve Teixeira. Antes, só a Procuradoria-Geral da República podia fazer isso. Atualmente, qualquer partido nanico consegue inundar o STF com questionamentos, como de fato acontece.
Além disso, há centenas de políticos e autoridades que só podem ser julgados pelo STF quando acusados de algum crime — é o famoso foro privilegiado. Os ministros do STF também precisam decidir sobre pedidos de habeas corpus e representam a quarta (!) e última instância judicial do País, caso haja alguma questão constitucional envolvida em processos que chegam de todo o Judiciário.
Pouco a pouco, a corte foi adquirindo a tradição de assumir papeis que cabem ao Legislativo e ao Executivo sob a desculpa de decidir a constitucionalidade de leis e políticas públicas. Isso começou a ocorrer com mais frequência já no governo de Fernando Henrique Cardoso, ganhou força nos primeiros mandatos de Lula e saiu do controle a partir da gestão de Jair Bolsonaro, que por não conseguir lidar com o Congresso deixava que tudo fosse judicializado.
O livro é rico em exemplos dos avanços do STF sobre atribuições do governo ou do Parlamento. Analisados em conjunto e em uma perspectiva cronológica, permitem compreender como a corte ganhou musculatura. Tem para todos os gostos. Há, por exemplo, o julgamento sobre pesquisas com células-tronco, em 2008, em que o STF passou por cima de uma lei discutida e aprovada no Parlamento, enquanto um dos ministros tentou tipificar um novo crime em cima de suas próprias suposições morais e filosóficas e outro aproveitou a oportunidade para expandir as situações em que o aborto é permitido. Mais recentemente, há a discussão atual em torno da Lei Antidrogas, com os integrantes da corte se dispondo a definir detalhes como a quantidade de maconha que separa um usuário de um traficante.
Decisões contraditórias da corte, às vezes com intervalos curtos de tempo e com idas e vindas de um mesmo ministro, são citadas em bom número no livro. Assim, o STF muda o entendimento sobre como deve ser um processo de impeachment de um presidente (Fernando Collor e Dilma Rousseff não tiveram o mesmo tratamento), da mesma forma que é capaz de aplicar com maior ou menor liberalidade uma mesma regra constitucional, a de que parlamentares só podem ser presos em flagrante de crime inafiançável, a depender das circunstâncias políticas.
Teixeira argumenta que, pela Constituição, o senador petista Delcídio Amaral não poderia ter sido preso em 2015, nem o deputado bolsonarista Daniel Silveira, em 2021. Em ambos os casos, ministros do STF fizeram um contorcionismo interpretativo para considerar que os crimes eram permanentes, permitindo a prisão “em flagrante” dos políticos.
Em outro exemplo, um entendimento da Corte que serviu para afastar do cargo o deputado Eduardo Cunha, em 2016, não valeu depois para os senadores Renan Calheiros e Aécio Neves. E praticamente a mesma composição do STF, com um intervalo de poucos anos, suspendeu a nomeação de Lula como ministro de Dilma, de Cristiane Brasil para o Ministério do Trabalho de Michel Temer e de Alexandre Ramagem como diretor da Polícia Federal sob Bolsonaro, em três episódios de interferência indevida e injustificável em prerrogativas do presidente da República.
Fica claro no livro que os ministros do STF se permitem tomar decisões disparatadas como essas — julgando não com base no Direito, mas em interesses pessoais ou políticos — por uma variedade de razões. Entre elas está o fato de que a Corte cria as próprias regras sobre como proceder em determinadas situações. Em 2023, por exemplo, o tribunal anulou trecho do Código de Processo Civil que impedia juízes de atuar em casos a cargo de bancas de advocacia de parentes (os escritórios das esposas de quatro ministros têm processos na Corte, alguns envolvendo disputas bilionárias).
A outra é que, por não haver nenhuma instância acima do STF, seus integrantes dão de ombros para regras da magistratura, para prazos e para procedimentos sem precisar temer qualquer sanção. É o que permite que eles abram processos de ofício e distribuam para o relator que quiserem, sem obedecer à norma do sorteio, como fez o ministro Dias Toffoli com o inquérito das fake news, também chamado de inquérito do fim do mundo.
Também se sobressaem o fator vaidade e a questão do vínculos políticos. No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, muitos ministros do STF falam fora dos autos em entrevistas, palestras e aulas e apreciam os holofotes dos julgamentos televisionados. Ao mesmo tempo, não se privam da companhia de figuras influentes da política nacional ou de empresários em festas ou viagens particulares — mesmo que essas pessoas enfrentem processos no próprio STF.
O autor aborda também o acesso privilegiado de certos advogados a ministros do Supremo, prática conhecida jocosamente como “embargos auriculares”. Ou seja, a imparcialidade dos integrantes da nossa mais alta Corte é colocada em dúvida, com boas razões, com frequência. E eles não parecem se incomodar muito com isso. Desde que, claro, ninguém diga nada.
Críticas diretas a ministros do STF são muito mal recebidas. Alguns deles tratam de processar os autores das opiniões negativas na primeira instância da Justiça, contando com a alta probabilidade de que os juízes pensarão duas vezes antes de tomar uma decisão que vá contra aquele que está no topo da magistratura.
Outros partem para algo mais rápido e efetivo: a censura. Foi uma reportagem sobre Dias Toffoli na revista Crusoé, da qual Teixeira é editor, o que motivou, no início, o interminável inquérito das fake news. E foram críticas diretas a Alexandre de Moraes que o levaram, em alguns dos casos que agora vêm à tona com mais detalhes, a ordenar a suspensão de perfis ou conteúdos das redes sociais.
Essa postura dos ministros do STF, que deveriam entender que receber críticas faz parte da descrição do cargo, é comparada por Teixeira ao crime contra a “pessoa do rei ou seu Estado real”, previsto nas Ordenações Filipinas, conjunto de leis da coroa portuguesa que vigorou entre os séculos XVII e XIX. Dizia seu livro quinto, título VI, que o “lesa-majestade (...) é um crime tão grave e abominável, que os antigos sabedores o estranharam e o comparavam à lepra”.
A Suprema Corte brasileira que emerge do livro “STF — Como chegamos até aqui” é implacável com os pobres, como mostram exemplos de penas duras que foram mantidas para ladrões de galinhas, de bermudas ou de macacos automotivos, e garantista com poderosos, a ponto, escreve o autor, de reverter entendimento anterior sobre a possibilidade de prisão em segunda instância para favorecer Lula, em 2019, “fulanizando” a jurisprudência. Compreender e reconhecer seus excessos interessa a todos os brasileiros, independente de posicionamento político. E, apesar dos ecos das Ordenações Filipinas, criticar abertamente sua atuação ainda é a melhor forma de pressionar seus integrantes a conter o próprio poder.