Anistia é um termo jurídico que significa perdão. Em uma palavra, é isso que o projeto de lei n.º 3.317/2023 busca obter para Jair Bolsonaro (PL) e para todos os condenados pela Justiça Eleitoral de outubro de 2016 até o dia em que a proposta venha a ser efetivamente aprovada.
De autoria do deputado Sanderson (PL-RS), o projeto de lei proposto na sexta-feira, 30, na Câmara é uma reação à decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que, por cinco a dois, declarou o ex-presidente inelegível por abuso do poder político e dos meios de comunicação.
Ao lado do parlamentar gaúcho há mais 49 deputados que assinam a coautoria do projeto. Estão na lista partidos mais alinhados ao bolsonarismo, como PL, PP, Republicanos e Patriotas, e também siglas do Centrão – União Brasil, MDB e PSD. Como mostrou o Estadão, Sanderson afirma que a lista de apoiadores é maior e chega a 70 assinaturas.
Se vier a ser aprovada, a lei anistiará não apenas a condenação de Bolsonaro no TSE, mas a de outros políticos, como Deltan Dallagnol (Podemos-PR), cassado por decisão da Corte no começo de maio. Como o texto prevê aplicação da lei retroativa a outubro de 2016, condenações eleitorais das quatro últimas eleições perderão a punibilidade. Na prática, serão “perdoadas”.
Para o professor da FGV e cientista político Eduardo Grin, o projeto de lei é uma ferramenta de disputa política e busca reforçar uma narrativa de que o Poder Judiciário age de forma enviesada. “Esse projeto já nasce morto. Ele não tem condições de ser aprovado. É uma forma de manter a base militante bolsonarista engajada e alimentar o discurso que Bolsonaro já vinha adotando antes mesmo da condenação, de vitimização.”
Eduardo Grin, cientista político e professor da FGV
Se aprovado, o projeto de lei pode minimizar as condutas praticadas pelo ex-presidente, condenado pelo TSE por causa de uma reunião com embaixadores estrangeiros, na qual ele questionou a lisura do processo eleitoral. “Diante de tudo o que Bolsonaro fez, se ele não fosse punido, quem mais seria?”, questiona Grin.
Inconstitucionalidade e interferência entre Poderes
De um lado, a concessão de anistia está prevista na Constituição como uma prerrogativa tanto do presidente da República quanto do Congresso Nacional. De outro, o projeto de lei apresentado por Sanderson é visto por especialistas como inconstitucional, pela interferência que se propõe a fazer no Judiciário. Se aprovado, o PL revogará decisões da Justiça Eleitoral dos últimos sete anos.
“É cassar a própria Justiça Eleitoral. A inconstitucionalidade está na usurpação de competência que não é própria ao Congresso”, explica Guilherme Amorim Campos da Silva, doutor em Direito do Estado pela PUC, professor da Fadisp e sócio do Rubens Naves Santos Jr. Advogados. Para ele, o projeto visa “revogar a independência de outro Poder republicano”.
Guilherme Amorim Campos da Silva, advogado e professor da Fadisp
O projeto tem, na sua justificativa, o propósito de ser um benefício coletivo. Para o professor, isso é uma forma de “revesti-lo de uma roupagem de constitucionalidade”, o que não basta para sustentar a legalidade da proposta. “Se for sancionado, acabará sendo objeto de uma ação declaratória de inconstitucionalidade para o Supremo.”
Quais crimes estão fora do projeto de lei?
Não é qualquer punição da Justiça Eleitoral que pode ser beneficiada pelo projeto de lei n.º 3.317/2023. O texto da proposta tem um rol extenso de exceções, sobre as quais o perdão não incide – como tráfico de drogas, tortura, racismo, abuso de autoridade e lavagem de dinheiro, crimes de competência da Justiça comum. Sobram, com isso, as condenações como as de Bolsonaro, motivadas em atos políticos, e as multas eleitorais.
Veja os crimes que ficam fora do projeto de lei:
- Atos de improbidade administrativa (enriquecimento ilícito ou dano ao erário no exercício do mandato, cargo, emprego ou função pública)
- Crimes contra a administração pública e o patrimônio público
- Crimes eleitorais com pena maior que oito anos
- Abuso de autoridade
- Lavagem ou ocultação de bens, diretos e valores
- Tráfico de drogas, racismo, tortura, terrorismo e hediondos
- Crimes conta a vida e dignidade sexual
- Integrar organização criminosa
- Ter as contas de campanha rejeitadas
- Corrupção eleitoral, captação ilícita de sufrágio, doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha e falsidade ideológica eleitoral (caixa dois)
Precedentes
Essa não é a primeira vez que a ferramenta da anistia está sendo pensada por políticos bolsonaristas para contornar decisões de tribunais superiores. Em abril do ano passado, a deputada Carla Zambelli (PL-SP) propôs um projeto de lei que anistiaria pessoas que cometeram crimes de natureza política entre o primeiro dia de 2019 e abril de 2022. A proposta visava beneficiar o ex-deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), que havia sido condenado a oito anos e nove meses de prisão por ataques à democracia. O caso dele não era eleitoral.
“É uma medida pensada para jogar para a plateia”, avalia o professor da FGV e cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira. “Se a a população estivesse preocupada com isso, teria se mobilizado durante o processo de julgamento. Os próprios bolsonaristas já incorporaram a punição.” O ex-presidente, dias antes da conclusão do julgamento, admitiu que a sua condenação era “quase unanimidade”. Teixeira pontua também uma mudança de postura: “Está longe de ser aquele Bolsonaro que ameaçava todo mundo”.
Marco Antonio Carvalho Teixeira, cientista político e professor da FGV
No caso de Silveira, ele havia atacado ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e incitado, pelas redes sociais, o fechamento da Corte. No dia 21 de abril, dez dos 11 ministros votaram pela sua condenação e perda do mandato. Um dia depois, o ex-presidente Bolsonaro publicou um decreto no qual concedia um indulto ao ex-deputado, enfrentando a decisão dos ministros do STF. Por oito a dois, o perdão foi derrubado pela Corte Constitucional.